Opinião

Algumas dúvidas sinceras sobre o projeto de atualização do Código Civil

Autor

  • é doutor em Direito pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) professor adjunto da Faculdade de Direito da UPE (Universidade de Pernambuco) e da UniFafire membro da Comissão Especial de Responsabilidade Civil do Conselho Federal da OAB e advogado.

    Ver todos os posts

23 de abril de 2025, 7h01

No dia 31 de janeiro de 2025, o senador Rodrigo Pacheco protocolou o Projeto de Lei nº 4 de 2025, que versa sobre a reforma e atualização do Código Civil de 2002. Trata-se de projeto que incorporou integralmente as disposições do anteprojeto elaborado pela comissão de juristas presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão (do Superior Tribunal de Justiça), e que contou com dois relatores gerais, a professora Rosa Nery e o professor Flávio Tartuce.

Spacca

No ano ado, nos manifestamos em diversas ocasiões sobre as fragilidades do anteprojeto, seja em artigos publicados em portais jurídicos [1], em entrevistas a grandes jornais brasileiros [2], ou nas palestras que ministramos para o Tribunal de Justiça de Mato Grosso [3] ou para o Instituto dos Advogados de Pernambuco [4].

Há que se reconhecer que a comissão foi integrada por grandes professores, magistrados e advogados. O que se questiona aqui é a coerência do projeto com as diretrizes apontadas pela comissão. O professor Flávio Tartuce, relator geral, aponta que o texto do Código Civil já tem mais de “cinquenta anos de elaboração e que, por óbvio, encontra-se muito desatualizado” [5]. Nesta toada, acrescenta Tartuce que “o texto do Código Civil foi atualizado e reformado para se retirarem lacunas e para se inserir na norma a posição hoje consolidada da doutrina e da jurisprudência” [6].

Em razão dessas orientações gerais, cabe-nos fazer alguns questionamentos:

1) se a premissa é de atualizar apenas o texto “antiquado”, com mais de 50 anos, porque o artigo 91-A do projeto resolve excluir os animais do âmbito dos bens, enquanto a Lei nº 15.046, de 17 de dezembro de 2024 (que autoriza a criação do Cadastro Nacional de Animais Domésticos) confere aos animais domésticos tratamento próprio de bens móveis? A Lei nº 15.046/2024 prevê que o Cadastro deverá conter o endereço do proprietário (artigo 2º, IV, b), e que o proprietário deverá informar também a venda ou a doação do animal (artigo 2º, V). Uma lei publicada em dezembro de 2024 é uma lei antiga? Faz-se necessária a atualização?

2) atentando ainda para a premissa de atualizar o texto desatualizado e a inserção da posição consolidada na doutrina e na jurisprudência, porque o artigo 406 do Projeto pretende fixar a taxa legal de juros de mora em 1% ao mês, enquanto a Lei nº 14.905, de 28 de junho de 2024 alterou o artigo 406 do Código Civil para estabelecer que a taxa legal de juros de mora é a taxa Selic? Ademais, como tal proposta trazida no projeto pode representar a posição consolidada na jurisprudência se a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça decidiu no dia 21/8/2024 (REsp 1.795.982/SP) que a taxa de juros de mora a que se refere o art. 406 do Código Civil é a taxa Selic?

3) a Lei nº 15.040, de 09 de dezembro de 2024, institui o novo Marco Legal dos Seguros Privados. Com vacatio legis de um ano, esta lei revogará o inciso II do § 1º do artigo 206 e os artigos 757 a 802 do Código Civil de 2002. O Projeto de Lei n. 4/2025, contudo, pretende repristinar o inciso II do § 1º do artigo 206 do Código Civil, e os artigos 757, 758, 759, 760, 762, 763, 765, 766, 768, 769, 771, 772, 776, 778 e 779 do Código Civil. A Nova Lei dos Seguros Privados, que é de dezembro de 2024, está desatualizada? Faz sentido um Projeto de Lei que pretende atualizar o Código Civil (Lei Geral) pretender derrogar lei especial?

4) Se a ideia do Projeto de Lei nº 4/2025 não é no sentido de regular “no âmbito do Direito de Família a união poliafetiva ou o trisal”, porque altera a redação da regra do artigo 550 do Código Civil para deixar de mencionar o cônjuge adúltero [7]? Porque deixa de fazer referência ao concubino na proposta de nova redação da regra do artigo 1.642, V? Porque prevê o reconhecimento de efeitos patrimoniais ao concubinato na regra do parágrafo único do artigo 1.564-D [8]?

5) Ao revogar a regra do artigo 1.523, IV do Código Civil vigente [9], que permite o casamento entre tutor e pupilo ou entre curador e curatelado, apenas depois de cessada a tutela e a curatela e prestadas as respectivas contas, o projeto de atualização não facilitará abusos praticados por tutores e curadores em relação ao patrimônio das pessoas sob proteção? Como o tutor poderá consentir em relação ao casamento do pupilo com ele mesmo, posto que antes da cessação da tutela?

Spacca

6) Se a orientação da comissão é no sentido de observar a jurisprudência consolidada, como explicar — ante a tese fixada pelo STF no julgamento do Tema 529 sob o regime da repercussão geral (“A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro”) —, a proposta de revogação da regra do artigo 1.801, III do Código Civil [10], que proíbe a nomeação do concubino do testador casado na qualidade de herdeiro testamentário?

7) Se a orientação da Comissão não é no sentido de regular as uniões poliafetivas ou trisais, porque pretendem revogar a regra do artigo 1.534 do Código Civil [11], que obriga a celebração do casamento em edifício ível ao público durante a cerimônia? Como alguém poderá arguir o impedimento relacionado ao fato de um dos noivos já ser casado se o casamento for celebrado secretamente? A quem interessa a celebração de casamentos secretos?

8) Se a intenção da comissão não é favorecer uniões concubinárias ou incestuosas, porque o Projeto pretende revogar a regra do artigo 1.962, III do Código Civil [12], que permite ao autor da herança deserdar descendente que mantém relações adulterinas e incestuosas com a madrasta ou padrasto?

9) Se a proposta da comissão é no sentido de inserir na norma a posição consolidada na jurisprudência, porque propõe revogar o artigo 1.641 do Código Civil [13], se na verdade o STF deu interpretação conforme a Constituição ao referido dispositivo, estabelecendo que tal regime pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública? Assim, o STF decidiu que a regra do regime da separação de bens para os maiores de 70 anos é de caráter dispositivo, assim como é a regra geral que estabelece o regime legal da comunhão parcial. Se a regra do artigo 1.641 do Código Civil é Constitucional, conforme recente manifestação do STF que conferiu interpretação que respeita a autodeterminação dos maiores de 70 anos, porque revogá-la?

Perguntar não ofende. Espero que o Senado dê resposta à altura da sua missão frente ao povo brasileiro.

 


[1] Cf: aqui ou ainda aqui

[2] Cf: aqui ou ainda aqui. Ou também aqui [3] Cf: aqui[4] Cf: aqui

[5] TARTUCE, Flávio. A reforma do Código Civil: visão geral e metodologia dos trabalhos da Comissão de Juristas. In: PACHECO, Rodrigo (org.). A Reforma do Código Civil: artigos sobre a atualização da Lei nº 10.406/2002. Brasília: Senado Federal, 2025, p. 46.

[6] TARTUCE, Flávio. A reforma do Código Civil: visão geral e metodologia dos trabalhos da Comissão de Juristas. In: PACHECO, Rodrigo (org.). A Reforma do Código Civil: artigos sobre a atualização da Lei nº 10.406/2002. Brasília: Senado Federal, 2025, p. 51.

[7] TARTUCE, Flávio. A reforma do Código Civil: visão geral e metodologia dos trabalhos da Comissão de Juristas. In: PACHECO, Rodrigo (org.). A Reforma do Código Civil: artigos sobre a atualização da Lei nº 10.406/2002. Brasília: Senado Federal, 2025, p. 51.

[8] “Art. 1.564-D. A relação não eventual entre pessoas impedidas de casar não constitui família. Parágrafo único. As questões patrimoniais oriundas da relação prevista no caput serão reguladas pelas regras da proibição do enriquecimento sem causa previstas nos arts. 884 a 886.”

[9] “Art. 1.523. Não devem casar: IV – o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas”.

[10] “Art. 1.801. Não podem ser nomeados herdeiros nem legatários: III – o concubino do testador casado, salvo se este, sem culpa sua, estiver separado de fato do cônjuge há mais de cinco anos”.

[11] “Art. 1.534. A solenidade realizar-se-á na sede do cartório, com toda publicidade, a portas abertas, presentes pelo menos duas testemunhas, parentes ou não dos contraentes, ou, querendo as partes e consentindo a autoridade celebrante, noutro edifício público ou particular.

§1 o Quando o casamento for em edifício particular, ficará este de portas abertas durante o ato.

§2 o Serão quatro as testemunhas na hipótese do parágrafo anterior e se algum dos contraentes não souber ou não puder escrever”.

[12] “Art. 1.962. Além das causas mencionadas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos descendentes por seus ascendentes: III – relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto”

[13]“Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial”.

 

Autores

  • é doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco (UPE), presidente da Comissão Especial do Bicentenário da Fundação dos Cursos Jurídicos da OAB-PE e advogado.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!