Opinião

Porte de maconha para consumo pessoal dentro do estabelecimento penal ainda é falta grave?

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27 de abril de 2025, 7h04

O artigo 52 da Lei de Execução Penal determina, dentre outros, que a prática de crime doloso constitui falta grave e sujeita o reeducando a todos os efeitos secundários, inclusive regressão de regime (artigo 118, I, da LEP). Desta feita, entendia-se que o porte de maconha dentro do estabelecimento penal configurava crime previsto na Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006), notoriamente o delito ora previsto no artigo 28 da referida lei.

Ocorre que o Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 635.659/SP (Tema nº 506, do ementário de Repercussão Geral) fixou entendimento no sentido de que a criminalização do porte de maconha para consumo próprio violava os direitos fundamentais à privacidade e à intimidade.

A discussão sobre o Tema nº 506 começou em 2011, quando o Supremo Tribunal Federal começou a analisar o recurso extraordinário (RE 635.659/SP) em que se discutia a constitucionalidade do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006.

Esse artigo prevê penas para quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo drogas para consumo pessoal, mas sem implicar em privação de liberdade. Senão vejamos:

“Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso
§1º. Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§2º. Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
§3º. As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
§4º. Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§5º. A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§6º. Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I – oestação verbal;
II – multa.
§7º. O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.”

De fato, o julgamento do Supremo Tribunal Federal teve início em 2015 e arrastou-se até 26 de junho de 2024, sendo que o relator do caso, ministro Gilmar Mendes, votou pela inconstitucionalidade do dispositivo, argumentando que a criminalização do porte de maconha para consumo pessoal viola a intimidade e a vida privada do usuário.

Teses

Em breve resumo, a maioria dos ministros votou consoante o voto do ministro Gilmar Mendes, sendo que após a declaração da inconstitucionalidade do dispositivo referente à maconha, os ministros fixaram parâmetros objetivos de análise em casos concretos. Na oportunidade, o Plenário da Corte Suprema fixou oito teses, as quais são colacionadas a seguir:

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1. Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (artigo 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (artigo 28, III);

2. As sanções estabelecidas nos incisos I e III do artigo 28 da Lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta;

3. Em se tratando da posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em juízo, na forma do regulamento a ser aprovado até que o CNJ delibere a respeito, a competência para julgar as condutas do artigo 28 da Lei 11.343/06 será dos Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença;

4. Nos termos do § 2º do artigo 28 da Lei 11.343/2006, será presumido usuário quem, para consumo próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito;

5. A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes;

6. Nesses casos, caberá ao delegado de polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários;

7. Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4, deverá o juiz, na audiência de custódia, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio;

8. A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir que a conduta é atípica, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário.

Evidentemente, da análise do julgado vinculante extrai-se que a conduta de portar (dentro dos requisitos fixados pelo Supremo Tribunal Federal) maconha para consumo pessoal, não é mais considerada crime.

Ocorre que o fato de o porte pessoal de maconha, nos moldes do julgamento do STF, não se caracterizar como crime, não retira o seu caráter de falta grave quando ocorrido dentro do estabelecimento prisional.

O artigo 52 da Lei de Execução Penal não deixa margem para dúvidas quanto à consideração de crime doloso como falta grave, se perpetrado pelo agente durante o cumprimento de pena. Justamente em razão disso, quando havia porte de maconha para consumo próprio durante o encarceramento, o artigo 28 da Lei de Drogas impunha necessariamente a caracterização de falta grave.

Entretanto, mesmo com julgamento do Supremo no Tema nº 506, do ementário de Repercussão Geral, tal conduta ainda é considerada falta grave.

O artigo 50, VI, da Lei de Execução Penal prevê como falta grave a inobservância dos deveres previstos nos incisos II e V, do artigo 39 da lei. Já o inciso V deste último dispositivo aponta como dever do apenado a execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas.

“Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que: VI – inobservar os deveres previstos nos incisos II e V, do artigo 39, desta Lei. […]
Art. 39. Constituem deveres do condenado:
II – obediência ao servidor e respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se;
V – execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas;”

Sob esse prisma, o consumo de álcool e maconha pessoalmente, apesar de não se configurarem como crime, desrespeitam as condições impostas ao reeducando, razão pela qual continuam consubstanciando-se como falta grave.

HC nº 968.114/SP

Neste sentido, o ministro do Superior Tribunal de Justiça, exmo. sr. Og Fernandes, em 17/12/2024, ao julgar a liminar no Habeas Corpus nº 968.114/SP, decidiu em sentido semelhante.

Tratava-se de Habeas Corpus com pedido de liminar impetrado em favor de um apenado em que se aponta como autoridade coatora o Tribunal de Justiça de São Paulo. Consta dos autos do referido Habeas Corpus que, na execução penal, foi homologada anotação de falta disciplinar de natureza grave, praticada pelo paciente, com a perda de 1/6 dos dias remidos e interrupção de lapso para progressão de regime, o que foi mantido pelo tribunal de origem. O impetrante sustentava que o paciente portava quantidade inferior a 40 g de maconha, o que não caracteriza crime, de acordo com a decisão do STF no julgamento do RE nº 635.659 (Tema nº 506 de repercussão geral).

No caso, a decisão do ministro ponderou que a posse de entorpecentes no âmbito do sistema prisional é tipificada como falta disciplinar de natureza grave, nada obstante o novel entendimento da Corte Suprema. Isso porque o fato se reveste de maior gravidade, tendo em conta a posse de substância proibida no interior da unidade prisional, demonstrando resistência à terapêutica penal e ausência de responsabilidade, não havendo que se falar em absolvição, sendo que sua conduta configura afronta aos deveres de obediência aos servidores e às normas do estabelecimento prisional, previstos no artigo 50, inciso VI, c/c artigo 39, incisos II e V, ambos da LEP, os quais garantem a ordem e a disciplina dentro da unidade prisional. Vejamos:

“HABEAS CORPUS Nº 968.114 – SP (2024/0474125-7) DECISÃO
Trata-se de habeas corpus com pedido de liminar impetrado em favor de Everton Ramos Vieira em que se aponta como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Consta dos autos que, na execução penal, foi homologada anotação de falta disciplinar de natureza grave, praticada pelo paciente, com a perda de 1/6 dos dias remidos e interrupção de lapso para progressão de regime, o que foi mantido pelo Tribunal de origem.
O impetrante sustenta que o paciente portava quantidade inferior a 40 g de maconha, o que não caracteriza crime, de acordo com a decisão do STF no julgamento do RE 635.659 (Tema n. 506 de repercussão geral).
Requer, liminarmente, a suspensão dos efeitos do acórdão impugnado.
No mérito, pugna pela concessão da ordem para que o paciente seja absolvido da imputação da prática de falta disciplinar.
É o relatório.
Em cognição sumária, não se verifica a ocorrência de hipótese que autorize o deferimento do pleito liminar.
Da leitura do acórdão, observa-se que foram expressamente indicados os motivos para a solução adotada pelo Tribunal de origem. No ponto (fls. 68-69):
Consta nos autos que, no dia 28/07/2023, no P II de Bauru, o sentenciado Everton Ramos Vieira solicitou atendimento com a chefia.
Durante o procedimento de revista corporal, o agente prisional notou que o detento tinha um objeto dentro da boca. Foi solicitado que o reeducando entregasse o objeto. Após expelir o objeto, foi verificado ser um invólucro contendo substância similar a maconha (fls. 05/07).
A materialidade restou comprovada pelo auto de exibição e apreensão de fl. 16, que comprovou a presença de 2 gramas de maconha.
Instaurado procedimento istrativo para apuração da falta grave, devidamente processado com manifestação de defesa técnica, preservando-se o direito ao contraditório e ampla defesa.
O agravante Everton Ramos Vieira prestou suas declarações na presença de advogado. Confirmou os fatos. Disse que era usuário de drogas e, na ocasião, tinha um baseado na boca para uso próprio (fl. 19). No mesmo sentido, os depoimentos dos agentes de segurança penitenciária Isaac Tofanello Miono e Paulo Henrique Fernandes ratificaram os fatos narrados na Comunicação de Evento nº 601/2023 (fls. 21/24).
A condenação era, portanto, de rigor.
Não se desconhece o teor do julgado pelo E. STF no RE 635.659 (Tema 506 de repercussão geral), no sentido de que, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, será presumido usuário quem, para consumo próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas.
Contudo, ao contrário do que foi exposto pela d. Defesa, a posse de entorpecentes no âmbito do sistema prisional é tipificada como falta disciplinar de natureza grave, nada obstante o novel entendimento da Corte Suprema.
Isso porque o fato se reveste de maior gravidade, tendo em conta a posse de substância proibida no interior da unidade prisional, demonstrando resistência à terapêutica penal e ausência de responsabilidade, não havendo que se falar em absolvição, sendo que sua conduta configura afronta aos deveres de obediência aos servidores e às normas do estabelecimento prisional, previstos no artigo 50, inciso VI, c/c artigo 39, incisos II e V, ambos da LEP, os quais garantem a ordem e a disciplina dentro da unidade prisional.
E a perda de um sexto dos dias remidos é a indicada e a necessária à coibição da reiteração da conduta faltosa, não havendo como afastá-la, bem como a interrupção do lapso temporal para fins de progressão de regime, nos termos do artigo 127, da LEP.
Deve ser mantida, portanto, a r. decisão agravada Não se constata, portanto, constrangimento ilegal evidente que possa autorizar a concessão da medida de urgência.
Ante o exposto, indefiro o pedido de liminar.
Solicitem-se informações ao Tribunal de origem e ao Juízo de primeiro grau, que deverão ser prestadas, preferencialmente, por malote digital e com senha de o para consulta ao processo.
Dê-se vista dos autos ao Ministério Público Federal para parecer. Publique-se. Intimem-se.
Brasília, 13 de dezembro de 2024. Ministro Og Fernandes
Relator” (STJ – HC: 968.114, relator.: ministro Og Fernandes, data de publicação: data da publicação DJ 17/12/2024)

Mesmo assim, embora ainda não haja decisões vinculantes dos tribunais superiores sobre a situação, a análise da legislação amparado no entendimento ora colacionado não deixa dúvidas que o porte pessoal de maconha dentro do estabelecimento prisional, embora não mais configure crime, ainda é considerado falta grave, conforme determina a Lei de Execução Penal, no artigo 50, VI, c/c artigo 39, incisos II e V, por se consubstanciar como descumprimento aos deveres do apenados, mais especificamente o dever de boa execução das ordens recebidas, que impõe vedação ao uso de entorpecentes, inclusive álcool e maconha.

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