Direito Civil Atual

Do procedimentalismo à cientificidade do Direito Processual (parte 2)

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28 de abril de 2025, 19h28

Continuação da parte 1

Spacca

“Neste período, salientaram-se, como processualistas, principalmente, Francisco Paula Batista, professor da Faculdade de Direito do Recife, autor de uma obra de méritos inconfundíveis — Teoria e Prática do Processo Civil (1ª ed., 1855, com várias edições posteriores)”, assim as palavras com as quais se expressou Moacyr Amaral Santos [1], a propósito de delinear o estado da arte do estudo do processo civil na segunda metade do século 19.

A visão publicística do processo, tão bem esgrimida por Paula Baptista, é a nota característica e indelével que permite se concluir sobre o mérito de sua doutrina. Com efeito, o processo, para o autor, consiste no modo de “fazer marchar a ação segundo as formas prescritas pelas leis[2].

Tais leis, isto é, as leis do processo, “são novas precauções e meios de segurança em favor da justiça na luta das paixões e interesses opostos, e contra os erros, e o arbítrio dos juízes” [3]. Os seus fins principais seriam os de garantir a sabedoria do exame e a retidão das decisões e de assegurar os seus efeitos.

Não por outra razão que a lição de Paula Baptista se mantém cada vez mais relevante nos tempos que correm, pois segundo anota Botelho de Mesquita:

“Serve ela também para explicar a ojeriza que todos os espíritos autoritários votam às leis do processo e à observância de sua ordem natural e lógica, vistas sob a perspectiva ensinada neste Compendio. É que o respeito a tais normas, assim consideradas, poria sempre a nu a arbitrariedade, o partidarismo, a ignorância, a falsidade, e todas as desordens mais que só se podem abrigar à sombra de processos discricionários. O que a experiência mostra e qualquer um que milite no foro o sabe, é que não há sentença injusta que não revela, na sua gestação, a mácula da ofensa a alguma regra do processo, erigida muitas vezes a desapego aos formalismos e amor, fingido amor, à substância das coisas.” [4].

Pôs em evidência Paula Baptista o que compreendeu por condições inerentes ao processo, representadas pela brevidade, pela economia e pela remoção de todos os meios maliciosos e supérfluos, razão pela qual “todos os atos, dilações, demoras, despesas inúteis são aberrações do regime judiciário em prejuízo do interesse dos indivíduos, das famílias e da sociedade” [5]. Lança, com reforço em nota de rodapé um libelo contra o que, mais à frente, veio a ser sistematizado como litigância de má-fé [6].

Ressaltou o autor a competência do juiz para atuar de ofício [7]. Assim, competia-lhe, mesmo na ausência de requerimento: a) determinar atos e diligências tendentes a esclarecer a sua consciência antes de julgar; b) não consentir com dilações maliciosas, nem quaisquer meios cogitados pelas partes, para ganhar tempo contra a outra; c) rejeitar procurações irregulares; d) reprimir todos os meios indecentes, abusivos e injuriosos, incompatíveis com a dignidade das leis e de seus ministros.

Em seguida, restou moldada ainda uma ordem natural, lógica e imutável do processo, compreendendo a proposição da ação, com prévio aviso ao réu, a defesa, sem a qual ninguém pode ser condenado, as provas e o tempo para a sua produção e o julgamento [8].

A propósito, observou Buzaid [9] que, em assim se orientando, Paula Baptista já se sintonizava — e muito — com a evolução por que ava o processo civil, transpondo-o da concepção liberal, que concebia a defesa à qualidade de direito absoluto e ilimitado, para uma perspectiva socializadora, submetendo-a a restrições. Assim, caminhava-se em direção a um equilíbrio, a preservar atos e formas que assegurassem a busca da verdade sem, para tanto, abrir-se espaço a questões frívolas que ocasionassem demoras e despesas gravosas.

É de se destacar o exame que o autor faz sobre o instituto das provas [10], definindo-as como “tudo que nos pode convencer da certeza de algum fato, circunstância ou proposição, controvertida” [11], consistindo nos elementos capaz de determinar a convicção do juiz.

Sobre o modelo já então adotado pelo direito brasileiro, afirmou que “nem é o puro sistema da convicção livre e natural dos juízes, e nem o sistema de provas positivas e obrigatórias com as exagerações e erros, que ensinavam os falsos intérpretes da meia idade” [12], conduzindo-nos à persuasão racional do magistrado.

Substancial abordagem do autor disse respeito à coisa julgada [13], a indicar uma decisão da qual não pendem mais recursos, de modo a que o seu efeito é o de ser tida “por verdade”, motivo pelo qual “todas as nulidades e injustiças relativas, que porventura se cometessem contra o direito das partes, já não são suscetíveis de revogação” [14]. Trata-se de qualidade ostentada pelos julgamentos definitivos e misto, dela estando excluídas algumas espécies de decisões [15].

Questão interessante é relativa aos limites objetivos da coisa julgada, se circunscrita à parte dispositiva do julgado ou se também extensível aos seus fundamentos. Paula Baptista se inclinou à primeira orientação, afirmando que aquela se restringe “à parte dispositiva do julgamento e aos pontos aí decididos, e fielmente compreendidos em relação aos seus motivos objetivos, e não abrange o que é simplesmente indicado em forma de enunciação” [16].

Não obstante não ser essa a legislação positiva da época (artigo 287, parágrafo único, do C de 1939) [17], Liebman ressaltou o acerto do mestre pernambucano, expondo:

“O grande mestre do processo brasileiro, Paula Baptista, já deu em seu tempo uma definição dos limites objetivos da coisa julgada, que ainda hoje é aceitável. (…) Isso significa que o conhecimento dos motivos da sentença tem a maior importância como elemento de interpretação da parte dispositiva do julgamento, mas eles próprios não são abrangidos pela coisa julgada [18].

Diz o autor que três são os requisitos para que se possa invocar a autoridade da coisa julgada, os quais, embora pareçam expressão universal, na sua aplicação apresentam sérias dificuldades, por isso agrega à sua exposição notas de rodapé com precisos e esclarecedores exemplos.

O primeiro deles recai na identidade do objeto — que, no seu entender, não deve ser absoluta ou integral, tal qual os romanos —, a não ser compreendida literalmente, “bastando que o objeto da nova demanda seja parte integrante ou ória do mesmo direito, sobre o qual fora virtualmente compreendido nele.” [19]

Em seguida, refere-se à identidade de causa, visualizando-a como “o fato ou ato, de que resulta direta e imediatamente o direito, ou obrigação, que constitui o objeto da ação, ou exceção (§11), e com esta causa não devemos confundir os diferentes elementos, que podem concorrer separada, ou conjuntamente para constituí-la” [20].

À derradeira, exige-se que “ambas as partes sejam as mesmas, e figurem na mesma qualidade”, havendo, “porém, pessoas, que são consideradas, como tendo sido representadas por uma das partes litigantes, quando o julgamento lhes é favorável, e ao contrário, são consideradas, como estranhas, quando o julgamento as prejudica” [21], o que está alinhado à legislação processual dos dias atuais quanto às ações coletivas.

Em tempos nos quais prevalecera a concepção privatista do processo, à arrematação legava-se natureza contratual de venda. Aí mais um estalo da genialidade de Paula Baptista que, navegando a rota do processo aos quadrantes do direito público, questionou, acentuando que, contrariamente, aquela se assemelha à desapropriação. E galvanizou atenção — conforme se vê de Liebman [22] —, o pioneirismo do lente pernambucano, pois, recuando o entendimento no continente europeu ao ano de 1864, com a doutrina de Leipzig, a sua afirmação em 1855 é antecedente.

A postura avant la lettre de Paula Baptista não parou por aí. É digno de registro a referência à arbitragem, ao ressaltar, com base no artigo 160 da Constituição Imperial, a autonomia das partes para a sua constituição e, igualmente, o seu  funcionamento, e, de conseguinte, harmonizando-se, na atualidade, com o movimento pendular que consolida o processo de globalização, com relação ao qual não se mostrou indiferente o C vigente.

Por essas — e muitas outras razões —, o reconhecimento de Niceto Alcalá-Zamora y Castillo [23], para quem Paula Baptista, a exemplo de outros que menciona [24], cuida-se de figura que, sob o prisma da ciência do processo, embora pertença cronologicamente ao século 19, contribuíra para a agem do procedimento (procedura) ao direito processual (diritto processuale), em cuja obra predomina, acima de tudo, a originalidade de sua sistemática e de diferenças de estilo.

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[1] SANTOS, Moacyr Amaral. (Primeiras linhas de direito processual civil: adaptadas ao novo Código de Processo Civil. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 52).

[2] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de teoria e prática do processo civil comparado com o comercial e de hermenêutica jurídica. 6ª edição melhorada. Rio de Janeiro: H. Garn0ier, 1901, p. 82.

[3] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de teoria e prática do processo civil comparado com o comercial e de hermenêutica jurídica. 6ª edição melhorada. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901, p. 83.

[4] MESQUITA, José Ignácio Botelho de. Apresentação da edição de 1988 da obra “Teoria e prática do Processo Civil e Comercial”, de Francisco de Paula Baptista, São Paulo, Saraiva, 1988. In: Teses, estudos e pareceres de processo civil – direito de ação, partes e terceiros, processo e política. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. Vol. 1, p.311.

[5] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de teoria e prática do processo civil comparado com o comercial e de hermenêutica jurídica. 6ª edição melhorada. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901, p. 84.

[6] Eis a afirmação constante na nota de rodapé 1 ao §72: “A moral e o direito prescrevem ao juiz obrar sem paixão e prevenção: aos litigantes o procederem com boa-fé, não socorrendo-se a sofismas, que desonram a quem usa deles; aos empregados intermediários não colocarem seus interesses acima da justiça. Longe de confundir-se com a chicana, o processo, bem compreendido e dirigido, é o oposto ou antes o antídoto dela” (BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de teoria e prática do processo civil comparado com o comercial e de hermenêutica jurídica. 6ª edição melhorada. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901, p. 84). À época não havia um tratamento geral da matéria, entregue a disposições esparsas, dentre as quais o art. 94 do Decreto nº 737, de 25 de novembro de 1850, ao prever ser possível ao Tribunal do Comércio aplicar multa em detrimento da parte que, com manifesta má-fé ou caluniosamente, arguir suspeição.

[7] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de teoria e prática do processo civil comparado com o comercial e de hermenêutica jurídica. 6ª edição melhorada. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901, p. 84-85.

[8] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de teoria e prática do processo civil comparado com o comercial e de hermenêutica jurídica. 6ª edição melhorada. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901, p. 85-86.

[9] BUZAID, Alfredo. Paula Batista – atualidades de um velho processualista. In: Grandes processualistas. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 61-63.

[10] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de teoria e prática do processo civil comparado com o comercial e de hermenêutica jurídica. 6ª edição melhorada. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901, p. 172-233.

[11] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de teoria e prática do processo civil comparado com o comercial e de hermenêutica jurídica. 6ª edição melhorada. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901, p. 171.

[12] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de teoria e prática do processo civil comparado com o comercial e de hermenêutica jurídica. 6ª edição melhorada. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901, p. 175.

[13] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de teoria e prática do processo civil comparado com o comercial e de hermenêutica jurídica. 6ª edição melhorada. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901, p. 246-263.

[14] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de teoria e prática do processo civil comparado com o comercial e de hermenêutica jurídica. 6ª edição melhorada. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901, p. 246.

[15] Consoante o autor, não produzem tal efeito: a) os atos de jurisdição voluntária; b) as meras interlocutórias; c) as proferidas em processos preventivos ou cautelares; d) as de condenação de preceito; e) as proferidas em juízo sumário com relação ao ordinário. Neste caso, exemplifica com a improcedência da ação executiva visando ao pagamento de aluguéis de imóvel por não ser o autor o seu verdadeiro proprietário, não obstando, posteriormente, seja o demandante considerado como tal em ação de reivindicação (BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de teoria e prática do processo civil comparado com o comercial e de hermenêutica jurídica. 6ª edição melhorada. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901, p. 247).

[16] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de teoria e prática do processo civil comparado com o comercial e de hermenêutica jurídica. 6ª edição melhorada. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901, p. 250.

[17] Art. 287. (…) Parágrafo único. Considerar-se-ão decididas todas as questões que constituam premissa necessária da conclusão. Disponível aqui. Atualmente, o C vigente, mesmo concebendo a coisa julgada da questão prejudicial, dispõe: “Art. 504. Não fazem coisa julgada: I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; II – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença”.

[18] LIEBMAN, Enrico Tullio. Decisão e coisa julgada, Revista da Faculdade de Direito – Universidade de São Paulo, v. 40, p. 255, 1945.

[19] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de teoria e prática do processo civil comparado com o comercial e de hermenêutica jurídica. 6ª edição melhorada. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901, p. 252.

[20] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de teoria e prática do processo civil comparado com o comercial e de hermenêutica jurídica. 6ª edição melhorada. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901, p. 253-254.

[21] BAPTISTA, Francisco de Paula. Compêndio de teoria e prática do processo civil comparado com o comercial e de hermenêutica jurídica. 6ª edição melhorada. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901, p.257.

[22] LIEBMAN, Enrico Tulio. Processo de execução. São Paulo: Saraiva – Livraria Acadêmica, 1946, p. 229.

[23] La scuola processuale di San Paolo del Brasile, Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, Dott. A. Giuffrè – Editore, p. 864-865, 1956.

[24] Foram Ricardo Dolz y Arango (Cuba), Pablo de María (Uruguai) e Ramón F. Feo Armida Borjas (Venezuela).

Autores

  • é professor Titular da Faculdade de Direito do Recife (Universidade Federal de Pernambuco), membro do Instituto Internacional de Direito istrativo (IIDA) e do Instituto de Direito istrativo Sancionador e desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

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