Programa Mover cria distorção no mercado automotivo e pode gerar judicialização
28 de abril de 2025, 9h48
Embalado em um atrativo pacote de valores como sustentabilidade e promessas como a descarbonização da indústria automotiva brasileira, o Programa Nacional de Mobilidade Verde e Inovação (Mover), que amplia as exigências de sustentabilidade da frota automotiva no país, pode criar um monopólio no setor de importação de automóveis e gerar muitos processos para o já sobrecarregado Poder Judiciário brasileiro.

Especialistas apontam aspectos do Mover que podem gerar judicialização e criar monopólio no mercado de importação de autos
Essa é a opinião da maioria dos especialistas em Direito Aduaneiro e Tributário ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico sobre as regras estabelecidas pela Lei 14.902/2024, que criou o programa.
Entre os problemas apontados por advogados do setor está a criação de dois regimes distintos para a importação de veículos.
O primeiro regime agrupa importadores com vínculo direto com o fabricante dos automóveis, que devem registrar compromissos técnicos e ambientais no Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC).
Já o segundo reúne importadores independentes, que estão dispensados do registro formal no MDIC, mas são obrigados a pagar uma multa compensatória de 20% sobre a receita da venda de veículos. Essa multa tem efeito retroativo para 30 de dezembro 2023 (data da entrada em vigor da MP 1.205/2023), conforme interpretação oficial do próprio MDIC (Nota Técnica 1896/2024).
Efeito bilionário
As regras estabelecidas pelo Mover prometem alterar o cenário de um mercado que registrou crescimento de 141,1% em 2024, conforme dados da Associação Brasileira das Empresas Importadoras e Fabricantes de Veículos Automotores (Abeifa).
No ano ado, foram importados 104.729 veículos, o melhor resultado desde 2014, quando 93.685 carros fabricados em outros países desembarcaram no Brasil.
O problema do programa é que, na prática, ele aumenta em 20% o valor dos custos de operação para importadores independentes. “O Mover vai gerar judicialização porque os importadores independentes não podem sofrer penalidades indevidas”, afirma o especialista em Direito Aduaneiro Augusto Fauvel.
O advogado defende que o programa fere os princípios da livre concorrência e da isonomia tributária, dispostos no artigo 170 da Constituição Federal. Ele também destaca a natureza inconstitucional da multa compensatória imposta sem fato gerador tributário e sem contraprestação do Estado.
Opinião parecida tem o tributarista Breno Dias de Paula: “A concessão de benefícios fiscais e tratamento diferenciado para empresas habilitadas no Mover pode configurar uma distorção concorrencial, especialmente se o critério para participação for restritivo ou discricionário. Empresas não habilitadas podem ser desfavorecidas, violando a isonomia tributária (art. 150, II da Constituição) e a livre iniciativa. A jurisprudência do STF (ADI 2.441 e ADI 3460) aponta que incentivos fiscais não podem gerar desequilíbrio competitivo sem razoabilidade e previsão legal clara”.
Daniela Poli Vlavianos, sócia do escritório Poli Advogados & Associados, também considera problemático o regramento do Mover. “O programa, embora tenha como finalidade promover a transição energética na indústria automotiva e incentivar investimentos em mobilidade sustentável, apresenta aspectos que podem ser interpretados como violadores de princípios constitucionais, especialmente os previstos no art. 170, IV e seu parágrafo único, da Constituição Federal, que garantem a livre concorrência e a redução das desigualdades regionais e sociais.”
Multa e judicialização
A imposição da multa compensatória sem fato gerador tributário é um dos pontos mais sensíveis do programa e o que tem maior potencial de gerar judicialização, segundo os especialistas.
“Multas compensatórias devem ter lastro em descumprimento de obrigação tributária ória ou principal. Aplicar penalidades sem fato gerador, ou apenas pela não habilitação no Mover, pode configurar desvio de finalidade e confisco (Art. 150, IV, CF). O STF já decidiu que ‘sanções políticas’ são inconstitucionais, como a proibição de emitir notas fiscais ou exercer atividade econômica como forma de coerção indireta (RE 565.048/SP, com repercussão geral)”, afirma Breno de Paula.
Dayana Rodrigues Ferreira, sócia do RFtax Advogados e Consultores, critica o que ela classifica como uma quase obrigatoriedade de adesão ao programa, tendo em vista a imposição das multas compensatórias. “Tais multas não dispõem de qualquer respaldo ou efetiva regulamentação, mas sancionam indiscriminadamente a todos os contribuintes do setor que não se amoldem à nova regulamentação. Isso resulta em multas de caráter arbitrário e imprecisas, violando o próprio princípio da legalidade e da segurança jurídica e também a livre concorrência.”
A especialista ressalta ainda que as sanções foram instituídas sem qualquer janela de adaptação para os contribuintes do setor ou mesmo clareza sobre o período de incidência, tendo em vista que muitos aspectos do programa sequer foram regulamentados.
Caso análogo
Daniela Poli lembra outro exemplo problemático do setor automotivo ao criticar o Mover: o regime Inovar-Auto, que foi instituído em 2012 e valeu até 2017. A iniciativa foi causadora de litígio na Organização Mundial do Comércio (OMC), pois a União Europeia e o Japão acusaram o programa de promover concorrência desleal entre os veículos produzidos no Brasil e os importados.
Naquele momento, o Brasil foi condenado por violar as regras do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias. “O caso serviu de precedente para compreender como mecanismos de incentivo à indústria podem colidir com normas constitucionais e compromissos internacionais. O Judiciário brasileiro, embora à época não tenha protagonizado a solução do conflito — que se deu em esfera internacional —, acompanhou a decisão e forçou o governo à revisão do modelo”, relembra Daniela.
A advogada entende que, levando em conta o caso do Inovar-Auto, é bastante provável que o Mover, ao instituir mecanismos que podem gerar desequilíbrio concorrencial ou configurar subsídios velados, resulte em judicialização.
“Empresas importadoras, entidades de classe, associações comerciais e até mesmo órgãos de controle como o TCU e o Cade poderão atuar para questionar a validade de tais normas. É inequívoco que o Programa Mover, da forma como vem sendo estruturado, apresenta alto potencial de contestação judicial, tanto no plano interno, por violação de normas constitucionais e legais, quanto no plano internacional, por eventual afronta a compromissos comerciais firmados pelo Brasil”, conclui Daniela.
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