Regime fiscal sustentável e desenvolvimento estratégico
28 de abril de 2025, 21h24
A promulgação da Lei Complementar nº 200/2023 marca um divisor de águas na estruturação fiscal do Estado brasileiro. Mais do que uma nova regra de contenção de despesas ou substituição do antigo teto de gastos, essa norma funda o que se pode denominar de regime de governança fiscal sustentável, articulado com o desenvolvimento econômico e com a institucionalização das bases para uma nova racionalidade jurídico-econômica de longo prazo.
Este não é apenas um avanço legislativo: é um ponto de inflexão normativo e conjuntural, que exige leitura crítica, técnica e estratégica — especialmente diante da consolidação da fase institucional da sustentabilidade fiscal e socioambiental no Brasil.
Novo arcabouço fiscal como elemento de transição de paradigma
A LC 200/2023 deriva do artigo 6º da EC 126/2022 e fundamenta-se também no inciso VIII do artigo 163 da Constituição, em sinergia direta com os princípios da responsabilidade na gestão fiscal (artigo 165, §2º) e da ordem econômica fundada na justiça social e no desenvolvimento sustentável (artigo 170, caput e inciso VI). Ela altera significativamente a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), modernizando os pilares da política fiscal com foco em sustentabilidade intertemporal da dívida, previsibilidade macroeconômica e fortalecimento da capacidade de investimento público.
O Brasil a, assim, de um modelo fiscal rigidamente pró-cíclico, baseado em contenções abstratas e punições automatizadas, para um modelo anticíclico, flexível e tecnicamente calibrado, alinhado às boas práticas internacionais de regras fiscais — como reconhece, inclusive, a própria cartilha técnica da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda.
Diferencial da nova institucionalidade fiscal
Ao estruturar limites de crescimento real das despesas primárias com base na arrecadação — entre 0,6% e 2,5% ao ano, vinculados à variação real das receitas —, o regime garante ancoragem macroeconômica com estabilidade jurídica e proteção social mínima, inclusive com piso obrigatório de investimento público (artigo 10), blindando obras e políticas essenciais dos ciclos de contenção.
Essa lógica elimina a vulnerabilidade de contingenciamentos que, no ado, sacrificaram áreas estratégicas como saúde, educação, infraestrutura e inovação. Além disso, a previsão de bandas de metas fiscais com intervalo de tolerância, associada a incentivos e desincentivos reputacionais, rompe com o paradigma penalizante da LRF original e inaugura uma fase de governança fiscal baseada em ability, transparência e responsabilidade democrática.

Não à toa, a LC 200/2023 prevê que os parâmetros podem ser ajustados por cada novo governo eleito, respeitando o modelo fixo, mas permitindo sensibilidade política, o que legitima sua aplicação e fortalece o controle social.
Correlações normativas e articulação estratégica com a Constituição e a LRF
A nova regra dialoga organicamente com o artigo 163 da Constituição: ao concretizar instrumentos normativos de controle e equilíbrio fiscal; com o artigo 165, §§ 2º, 5º e 6º: ao reforçar o papel da LDO e da LOA na formulação transparente e equilibrada do orçamento; com o artigo 170, incisos VI e VII: ao alinhar política fiscal à defesa do meio ambiente e à redução das desigualdades regionais e sociais.
Pera, também, pelo olhar analítico ao artigo 225 da Constituição: ao dar viabilidade ao dever estatal de garantir o meio ambiente ecologicamente equilibrado, mediante mecanismos fiscais que possibilitam políticas públicas voltadas à proteção ambiental; assim também à Lei 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações): ao se articular com a previsão de critérios sustentáveis nas compras públicas e metas de planejamento plurianual; e ao Decreto 11.961/2024 (Pacto pela Transformação Ecológica): com o qual compartilha diretrizes como transição verde, inovação climática e reorganização do papel do Estado na economia.
Regime fiscal sustentável como fundação normativa do Marco ESG brasileiro
O Brasil caminha para a consolidação de um marco regulatório do ESG para o Desenvolvimento Sustentável (MRESG) — atualmente em fase de consulta pública no âmbito do Programa ESG20+, disponível aqui. Este movimento interinstitucional visa a estruturar, em harmonia com a Constituição, um conjunto de princípios, diretrizes, fundamentos e instrumentos jurídicos que permitam internalizar o ESG de forma transversal nas políticas públicas, nos investimentos e nas regulações setoriais.
Nesse cenário, o regime fiscal sustentável é a peça-chave: ele cria a estabilidade mínima necessária para que a agenda de sustentabilidade avance em diversas frentes — seja no planejamento de obras públicas resilientes ao clima, seja no incentivo tributário à inovação verde, ou na previsão de gastos compatíveis com os ODS e o Acordo de Paris.
Ao mesmo tempo, ele dialoga com o Pilar G da governança ESG, ao promover transparência, eficiência alocativa, prestação de contas e estabilidade normativa, o que tende a gerar um ambiente institucional mais confiável para investidores nacionais e estrangeiros.
Conjuntura crítica e a hora de decidir o futuro
O momento é decisivo. O país se aproxima de uma nova etapa em que se poderá combinar sustentabilidade fiscal com sustentabilidade ambiental e justiça social, não como esferas paralelas, mas como camadas interdependentes de um novo pacto nacional.
A LC 200/2023, portanto, não é uma regra fiscal no sentido estrito. Ela é um instrumento estratégico de desenvolvimento nacional, que exige articulação federativa, responsabilidade institucional e engajamento social. Sua aplicação precisa ser acompanhada e interpretada não apenas pelos economistas e juristas, mas por todos os setores comprometidos com a construção de um Brasil mais justo, competitivo e sustentável.
Considerações finais
Ao lançar as bases para uma política fiscal previsível, anticíclica e alinhada ao desenvolvimento, o regime fiscal sustentável dá ao Brasil uma oportunidade rara de reestruturar sua capacidade de planejar, executar e transformar.
É essencial, nesse contexto, que a sociedade participe ativamente da consulta pública do MRESG, contribuindo com visões técnicas, práticas e estratégicas, a fim de consolidar um ambiente normativo coerente com os desafios do presente e as exigências do futuro.
Mais do que nunca, é tempo de convergência — entre o jurídico e o econômico, entre o social e o ambiental, entre o fiscal e o institucional. E o arcabouço normativo está posto. O que está em jogo agora é como vamos preenchê-lo com políticas públicas à altura da nossa Constituição e da nossa responsabilidade histórica.
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