Opinião

Responsabilização em espelhos: crítica à fragmentação das instâncias punitivas

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28 de abril de 2025, 6h30

O princípio da independência das instâncias, tradicionalmente adotado no sistema jurídico brasileiro, permite que uma mesma conduta enseje responsabilização nas esferas penal, civil e istrativa. Esta compartimentalização da resposta estatal à ilicitude sempre foi tida como natural, justificando, inclusive, decisões distintas para um mesmo fato, desde que sob diferentes enfoques jurídicos.

Contudo, os avanços legislativos, jurisprudenciais e doutrinários mais recentes têm impulsionado uma necessária releitura crítica desse dogma da independência entre instâncias punitivas, não apenas por razões de ordem prática, mas como imperativo de coerência sistêmica, integridade do ordenamento jurídico e reafirmação do princípio da segurança jurídica enquanto vetor estruturante do Estado de Direito.

Neste artigo, examina-se, ainda que de forma resumida, mas não superficial, a fragilidade do paradigma da independência absoluta das instâncias punitivas diante da realidade de decisões espelhadas, duplicações sancionatórias e narrativas fático-probatórias idênticas que transbordam os limites constitucionais do devido processo legal. A partir da análise crítica de marcos legislativos recentes, da evolução jurisprudencial e de fundamentos do direito internacional dos direitos humanos, sustenta-se a necessidade de um modelo sancionador integrado, que respeite os princípios da proporcionalidade, da não repetição e da unidade racional do sistema jurídico.

Tríplice persecução e seus limites

No plano normativo, ite-se que uma mesma conduta possa ensejar responsabilizações simultâneas nas esferas penal, civil e istrativa, configurando a chamada tríplice persecução estatal. Assim, por exemplo, um servidor público que incorra em infração funcional com repercussão patrimonial ou delitiva poderá responder cumulativamente a um processo istrativo disciplinar, a uma ação civil pública (ou de improbidade istrativa) e a uma ação penal.

Essa configuração tem como base a clássica tese da independência formal das instâncias, segundo a qual cada uma delas possui autonomia investigativa e decisória, mesmo diante de identidade fática. Como consequência, ite-se — ao menos em tese — a produção de juízos contraditórios sobre um mesmo substrato empírico, em nome da separação de esferas e da tutela de bens jurídicos distintos.

Contudo, à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade — ambos corolários do devido processo legal substancial —, bem como da vedação à dupla persecução punitiva (ne bis in idem), impõe-se reconhecer que decisões absolutórias proferidas na esfera penal, especialmente quando fundadas na inexistência do fato ou na negativa de autoria, irradiam efeitos vinculantes para as demais instâncias sancionatórias. Nesses casos, a comunicação entre esferas não se limita à dimensão fática, mas assume natureza normativa e vinculativa, em respeito à exigência de coerência lógica e sistematicidade do ordenamento jurídico.

Negar tal comunicabilidade seria permitir que a mesma narrativa probatória fundamente múltiplos juízos punitivos contraditórios, o que afronta a integridade do sistema de justiça e converte a independência das instâncias em uma plataforma para duplicação ilegítima da sanção.

Essa constatação reforça a necessidade de repensar a chamada independência entre esferas não como dogma absoluto, mas como categoria funcional sujeita a limites constitucionais. O reconhecimento da interdependência quando há identidade fática e substrato probatório comum é não apenas compatível com o Estado Democrático de Direito, como também indispensável à sua preservação. A continuidade acrítica da fragmentação persecutória legitima a superposição punitiva, converte o processo em instrumento de desgaste e compromete os pilares do devido processo legal.

Evolução legislativa: artigo 21, §4º, da Lei 8.429/92 (com redação da Lei 14.230/21)

A reforma substancial promovida na Lei de Improbidade istrativa pela Lei 14.230/2021 introduziu, entre outros avanços, um dispositivo emblemático: o artigo 21, §4º. Nele, estabeleceu-se que a absolvição na esfera penal — independentemente do fundamento adotado entre aqueles previstos no artigo 386 do Código de Processo Penal — repercutirá de modo vinculante sobre as esferas cível e istrativa, impedindo a continuidade de persecuções paralelas que se sustentem no mesmo quadro fático-probatório. Trata-se de clara ruptura com a lógica da independência absoluta das instâncias, revelando uma inflexão normativa em direção a um modelo mais racional, coerente e constitucionalmente comprometido com a vedação à duplicidade sancionatória.

Spacca

A previsão legal reconhece, de forma explícita, a força normativa das decisões penais absolutórias — inclusive aquelas fundadas na insuficiência de provas, na atipicidade da conduta ou na incidência de causas excludentes de ilicitude ou culpabilidade — como obstáculo legítimo à continuidade de ações sancionatórias em outras esferas. Essa normatização não apenas fortalece o princípio da segurança jurídica, mas também concretiza o ne bis in idem, ao impedir que a mesma narrativa de fatos continue a ser manejada de forma iterativa pelo Estado, sob roupagens institucionais distintas.

Embora a eficácia do dispositivo tenha sido suspensa cautelarmente pelo ministro Alexandre de Moraes na ADI 7.236, essa suspensão não neutraliza seu valor jurídico como indicativo de política legislativa, tampouco impede sua utilização como critério hermenêutico em sede de controle difuso de constitucionalidade e convencionalidade. A suspensão de eficácia, vale lembrar, não equivale a declaração de inconstitucionalidade. A norma continua em vigor, pendente apenas de eficácia plena, o que reforça sua natureza interpretativa relevante para casos concretos.

Mais do que uma inovação pontual, o §4º do artigo 21 da LIA representa a tentativa de harmonizar o direito sancionador brasileiro com as diretrizes internacionais de proteção dos direitos humanos, especialmente com os parâmetros da Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 8.4) e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (artigo 14.7), ambos internalizados com status supralegal no Brasil. Ignorar os efeitos de uma absolvição penal em outras esferas, quando assentada a inexistência do fato, a negativa de autoria ou a ausência de tipicidade, significaria legitimar a duplicação persecutória e fomentar decisões estatais contraditórias sobre os mesmos fatos, em evidente descomo com os compromissos internacionais assumidos pelo país.

Nesse sentido, a norma contida no artigo 21, §4º, ainda que suspensa em sua eficácia imediata, constitui hoje um ponto de inflexão interpretativa — um marco regulatório que sinaliza a necessidade de superação do paradigma da fragmentação sancionatória, em nome de um sistema jurídico racional, não redundante e comprometido com a efetividade do devido processo legal. A resistência a essa lógica não encontra mais apoio nem na dogmática contemporânea nem na jurisprudência constitucional mais avançada.

Jurisprudência e a comunicação de esferas punitivas

A jurisprudência pátria, especialmente no âmbito dos tribunais superiores, tem progressivamente reconhecido a necessidade de comunicação entre as esferas punitivas sempre que presente a identidade fático-probatória entre os procedimentos. O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso em Habeas Corpus nº 173.448/DF, firmou entendimento no sentido de que a absolvição por ausência de dolo em ação de improbidade istrativa impede a instauração ou continuidade de ação penal fundada nos mesmos fatos, diante da ausência de justa causa para a persecução criminal. A decisão evidencia a superação paulatina da ideia de autonomia plena entre instâncias e sinaliza o compromisso com um modelo sancionador mais coerente e proporcional.

No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a tese da interdependência decisional ao julgar a RCL 41.557. Nesse caso paradigmático, a Corte entendeu que, tendo a jurisdição penal assentado de forma definitiva a inexistência do fato típico, não subsiste fundamento legítimo para a manutenção de ação cível ou istrativa sancionadora lastreada na mesma matriz probatória. Em decisão de forte densidade principiológica, o ministro Gilmar Mendes afirmou que “círculos concêntricos de ilicitude não podem levar a uma dupla persecução e, consequentemente, a uma dupla punição”, rejeitando o fracionamento persecutório como técnica legítima do Estado.

Trata-se, na verdade, da consagração de um novo paradigma de coerência institucional, em que a autoridade das decisões judiciais não se fragmenta segundo o rótulo da instância, mas se impõe conforme a racionalidade do sistema e o respeito aos princípios estruturantes do processo justo. A ideia de “círculos concêntricos” é emblemática: remete à ilusão de esferas autônomas que, na prática, orbitam sobre os mesmos fatos e os mesmos sujeitos, legitimando a multiplicação sancionatória sob pretexto de funções distintas.

A jurisprudência mencionada, portanto, não apenas fortalece a crítica à fragmentação do sistema sancionador, como também abre espaço para a aplicação concreta da doutrina do ne bis in idem, sob a perspectiva da coisa julgada material negativa e da vedação à redundância persecutória. A comunicação entre instâncias não é exceção: deve ser a regra sempre que houver unicidade fática, para que o sistema jurídico não incorra em contradição institucional nem legitime a sobreposição arbitrária de sanções.

Direito Internacional e controle de convencionalidade

O sistema internacional de proteção dos direitos humanos impõe limites claros à atuação punitiva do Estado, inclusive no que tange à multiplicidade de instâncias sancionatórias. Tanto a Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 8.4) quanto o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (artigo 14.7) consagram a vedação à dupla persecução pelo mesmo fato — norma que, uma vez incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com status supralegal, impõe-se inclusive sobre normas infraconstitucionais em eventual conflito.

A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos tem sido clara e reiterada nesse sentido. No caso Mohamed vs. Argentina (2012), a Corte condenou a instauração de persecuções paralelas baseadas na mesma narrativa fática e no mesmo sujeito, reafirmando que a duplicação sancionatória, ainda que sob pretextos institucionais distintos (como o direito penal e o istrativo sancionador), viola frontalmente os compromissos internacionais assumidos pelo Estado-parte. A Corte concluiu, com veemência, que o rótulo formal da instância não afasta a caracterização do bis in idem quando se constata unidade substancial entre os processos.

Nesse cenário, itir a coexistência de ações cível, istrativa e penal contra o mesmo indivíduo, fundadas no mesmo substrato fático-probatório e com finalidade punitiva, equivale a um déficit de convencionalidade — e expõe o Brasil à responsabilização internacional. O princípio da coisa julgada material negativa, ao qual já se faz referência na doutrina nacional, é reflexo direto dessa normatividade internacional, impondo o reconhecimento dos efeitos vinculantes das decisões absolutórias em todo o sistema sancionador estatal.

Portanto, o controle de convencionalidade exige que os operadores do Direito — notadamente o Poder Judiciário e o Ministério Público — promovam a leitura sistemática do ordenamento à luz dos tratados internacionais ratificados, de modo a impedir a perpetuação de sanções redundantes que ofendem não apenas a lógica do sistema jurídico interno, mas também os compromissos jurídicos do Estado brasileiro no plano internacional.

Conclusão

O sistema sancionador brasileiro carece de uma urgente reconversão paradigmática. É imperioso que se abandone, de forma definitiva, a concepção arcaica de independência absoluta entre as instâncias punitivas — um modelo que, sob o pretexto de autonomia funcional, tem legitimado a duplicação de persecuções e a proliferação de decisões contraditórias sobre os mesmos fatos. Em seu lugar, impõe-se a construção de um modelo de integração normativa e decisional, que articule coerentemente as esferas penal, istrativa e cível, ancorado nos pilares da proporcionalidade, da segurança jurídica e da proteção integral aos direitos fundamentais.

A despeito da suspensão cautelar da eficácia do artigo 21, §4º, da Lei de Improbidade istrativa, seu conteúdo normativo representa um vetor interpretativo de alta densidade constitucional e convencional, que já deve informar a atuação judicial e istrativa, especialmente diante da identidade de sujeitos, condutas e provas. A recusa em reconhecer os efeitos vinculantes de decisões absolutórias penais no âmbito das demais esferas não apenas compromete a integridade lógica do sistema, como afronta diretamente os tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

É chegada a hora de itir que não há justiça possível onde há contradição institucional, superposição punitiva e fragmentação repressiva. O respeito à coisa julgada material negativa, a contenção do ímpeto sancionador estatal e a preservação da unidade do Direito não são concessões, mas condições de legitimidade do poder punitivo em um Estado verdadeiramente democrático.

A construção de um macrossistema sancionador coerente, racional e convergente não é apenas desejável — é uma exigência inadiável de um modelo de justiça que se pretenda compatível com os valores constitucionais e os compromissos internacionais do Estado brasileiro. Qualquer projeto institucional que ignore essa urgência estará fadado a perpetuar injustiças sob o manto formal da legalidade.

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