Convenções processuais e vinculação do julgador
16 de fevereiro de 2025, 9h19
Os negócios jurídicos processuais não são uma novidade no processo civil brasileiro, tendo em vista que já sob a égide do Código de 1973 havia a possibilidade de realização de convenções para modificação de regras processuais específicas, sendo a mais famosa delas a cláusula de eleição de foro.

No entanto, o tema adquiriu maior relevância em função da inserção no Código de Processo Civil da denominada cláusula geral do negócio jurídico processual [1]. Deste modo, nos termos do Código de 2015, sempre que o processo versar sobre direito que ita autocomposição, haverá a possibilidade de modificação no procedimento a ser observado, desde que respeitadas as limitações legalmente impostas.
A possibilidade de celebração de negócios jurídicos processuais decorre do princípio da liberdade dentro do processo civil e é manifestação do modelo cooperativo de processo que se buscou implementar com o Código de 2015.
Neste contexto, considerando que os sujeitos processuais conduzem o processo com a indicação das provas que serão produzidas, há que se pensar acerca da possibilidade de celebração de negócios jurídicos processuais que modifiquem a fase instrutória do processo. Além disso, caso modificado o procedimento probatório, discute-se a vinculação do juiz ao avençado ou se ele poderia ignorar os termos do negócio jurídico e determinar a produção da prova que entender necessária ao melhor deslinde do feito.
De um lado, há quem entenda que o juiz teria amplos poderes para conduzir o processo e, por conseguinte, a fase instrutória, da forma que entender mais adequada para a resolução do mérito. Neste sentido, a existência de uma convenção processual versando sobre quais provas deverão e quais provas não poderão ser produzidas pouco interfere na esfera do juiz.
Esse posicionamento parte da premissa de que o processo teria natureza publicista, assumindo o juiz posição central em sua condução. Assim, teria o juiz, com base no artigo 370 do Código de 2015 [2], amplos poderes para determinar as provas a serem produzidas para a formação de sua convicção. São os denominados poderes instrutórios do juiz.
Desta forma, não poderia uma convenção processual limitar os poderes do juiz. Argumenta-se que o supracitado artigo 190 deve ser interpretado de forma restritiva, no sentido de que as partes somente podem negociar situações jurídicas exclusivamente suas, sem interferir na esfera jurídica de terceiros, aí incluído o juiz.
Posições antagônicas
É neste sentido, por exemplo, o pensamento de Marinoni [3]. Entende o autor, além do já exposto, que a convenção processual sobre os meios de prova seria a negação ao direito fundamental a uma decisão justa, sendo esta a decisão exarada diante de amplo acervo probatório e pautada numa formação adequada da convicção do juiz, chegando-se o mais próximo da verdade dos fatos. Com a restrição dos meios de prova cabíveis estaria afastada esta possibilidade.
Prossegue o autor aduzindo a impossibilidade de se convencionar de forma limitadora acerca da atividade probatória tendo em vista que, caso itida a possibilidade, haveria severas restrições à formação da coisa julgada sobre as questões discutidas no processo, bem como à criação de teses vinculantes em função da restrição à ampla discussão dentro do processo ocasionada pela convenção processual.
No entanto, Marinoni entende, também, pela possibilidade de se convencionar acerca da atividade probatória, desde que não haja prejuízo à formação da convicção do juiz. A convenção sobre a prova deve ser vista como a fixação de um mínimo acervo probatório para a instrução processual. Quanto a este acervo mínimo o juiz ficará vinculado, desde que não recaia sobre fato irrelevante ou incontroverso, hipótese em que, exercendo os poderes previstos no artigo 190, parágrafo único do Código de 2015, poderá dispensar a produção de tal prova.
Por outro lado, há vozes na doutrina que item a possibilidade de celebração de negócio jurídico processual sobre a atividade probatória de forma ampla. Este posicionamento está pautado no princípio constitucional da liberdade [4].
Deriva do princípio da liberdade a autonomia das partes em celebrar os negócios jurídicos processuais. Neste sentido, a matéria probatória é apenas um dos inúmeros objetos que podem ser abordados em uma convenção processual.

Neste sentido, Jobim e Medeiros concluem pela validade da convenção das partes limitando os meios de prova, com plena vinculação do juiz sobre este acordo celebrado, não podendo o magistrado determinar, de ofício, a produção de prova vedada pelo acordo entre as partes. Para eles, os poderes instrutórios do juiz, previstos no artigo 370 do Código de Processo Civil, assumem caráter subsidiário, devendo haver a submissão à vontade das partes.
Partem os autores da premissa de que a prova é uma mera faculdade das partes de modo que aquele que não produzir as provas necessárias para a demonstração em juízo de seu pretendido direito deverá arcar com a consequência natural qual seja, o julgamento conforme o ônus da prova.
Além disso, a norma limitadora das provas oriunda de um negócio jurídico é tão válida quanto uma norma extraída de um texto legal, devendo, assim, para que seja alcançado um justo deslinde ao processo, ser observada e respeitada pelo julgador. Deste modo, a decisão somente poderá ser considerada justa se observadas as normas adequadas àquele caso concreto, sejam elas oriundas da legislação sejam oriundas de negociação.
No tocante à formação de teses vinculantes, encarada por Marinoni como fator impeditivo às convenções processuais sobre matéria probatória [5], Jobim e Medeiros entendem de forma diametralmente oposta. Para estes últimos, o processo julgado nos termos de uma convenção processual limitadora dos meios de prova terá, sim, aptidão para se tornar uma tese vinculante, ainda que sobre a própria negociação.
Diante das duas posições antagônicas acima expostas, há que se concluir pela possibilidade de negócios jurídicos processuais sobre matérias probatórias vinculando a atuação do juiz. Explica-se.
Primeiramente, é importante ressaltar que os mencionados negócios jurídicos não são irs, havendo uma série de limitações elencadas no artigo 190 do Código de Processo Civil que serão objetos de controle pelo juiz.
Desta forma, só serão itidos negócios jurídicos processuais celebrados entre partes plenamente capazes e que versem sobre direitos que item a autocomposição, não sendo possível a inserção de modificações abusivas no procedimento em contratos de adesão ou quando uma das partes estiver em posição de vulnerabilidade.
Não havendo qualquer uma das situações vedadas em lei, por que não se itiria a celebração de negócio processual acerca das provas a serem produzidas? Se o próprio direito material em debate no processo ite a autocomposição não haveria motivos para que o procedimento também não itisse. Desta forma, deve ser aplicada a velha lógica de que quem pode o mais (acordar sobre o direito material em litígio), deve poder o menos (acordar apenas sobre o procedimento). Lembremos que o processo é um instrumento para se tutelar uma situação jurídica material.
Marinoni afirma não ser possível a celebração de negócios processuais que interfiram na formação da convicção do juiz, afrontando-se, assim, o direito fundamental a um processo justo. Ora, diversas são as posturas adotadas pelas partes no âmbito do processo que interferem na convicção do juiz sem que haja qualquer violação a referido direito fundamental.
A parte autora pode desistir do processo e o réu pode reconhecer o pedido; as partes podem renunciar a algum direito; podem não produzir determinada prova ou desistir de sua produção etc. Todas estas atuações processuais são válidas e podem interferir, em determinado grau, na convicção do juiz. Desta forma, se levada ao extremo a posição esposada por Marinoni, disposições legais que item a desistência do processo ou reconhecimento do pedido, por exemplo, seriam inconstitucionais, pois impediriam a formação da convicção do juiz na busca da verdade, afrontando, assim, o direito fundamental ao processo justo. E sabe-se que não é bem assim.
Além disso, há que se compreender o juiz como equidistante das partes, não podendo ele assumir uma posição ativa no processo e determinar a produção das provas que reputar necessárias ao julgamento da demanda. Caso o faça, haverá grave mácula à imparcialidade dele exigida. Desta forma, não pode o juiz, em caso de dúvida, determinar a produção de qualquer outra prova. Se, mesmo após a produção de todas as provas requeridas pelas partes, houver dúvida, deve ser proferido o julgamento de acordo com o ônus da prova.
Da mesma forma, em havendo uma convenção processual válida vedando a produção de determinada prova, deve o juiz considerá-la no decorrer do trâmite processual e julgar de acordo com os elementos presentes nos autos, sob pena de ser considerado parcial.
Por fim, há que se observar que a possibilidade de celebração de negócios jurídicos pré-processuais limitando a produção de provas em eventual litígio impacta no conteúdo econômico do contrato.
Desta forma, um contrato celebrado entre partes capazes, sem qualquer traço de hipossuficiência, alcançaria determinado valor também em função das obrigações processuais que cada uma delas se comprometer a adotar. Neste contexto, se uma parte abre mão da produção de uma prova, não pode o juiz determinar sua produção, sob pena de interferir indevidamente no conteúdo econômico daquele contrato.
Todavia, há que se destacar que nenhum direito pode ser considerado absoluto. Assim, a autonomia da vontade que legitima a celebração das convenções processuais aqui analisadas sofre as restrições insculpidas no artigo 190 do Código, de modo que eventual nulidade no nascedouro do contrato pode e deve ser considerada pelo juiz no controle da avença. Além disso, como todo negócio jurídico, este também fica sujeito às causas de nulidade e anulabilidade previstas no Código Civil, tais como lesão, estado de perigo, etc., bem como à cláusula geral da boa-fé inserida no artigo 422 do Código Civil [6] que permeia todo o ordenamento jurídico.
Conclui-se, assim, que a convenção sobre provas deve vincular a todos os sujeitos do processo, desde que observados os requisitos para sua elaboração. Como expressão da autonomia da vontade das partes, deve o juiz respeitar o acordo celebrado, assumindo postura equidistante e imparcial na condução do processo, julgando de acordo com as normas aplicáveis ao caso concreto, ainda que negociais.
Referências bibliográficas
CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2ª edição rev. e atual. Rio de Janeiro: Atlas. 2016.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento, Volume 1. 14ª edição, Salvador: Editora JusPODIVM, 2012.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria da Prova, Direito Probatório, Teoria do Precedente, Decisão Judicial, Coisa Julgada e Antecipação dos Efeitos da Tutela, Volume 2. 7ª edição, Salvador: Editora JusPODIVM, 2012.
JOBIM, Marco Félix; MEDEIROS, Bruna Bessa de. “O impacto das convenções processuais sobre a limitação de meios de prova”. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, Volume 18. Janeiro a Abril de 2017.
MARINONI, Luiz Guilherme. “A convenção processual sobre prova diante dos fins do processo civil”. Revista de Processo, Volume 288. Fevereiro/2019.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil, Volume Único. 10ª edição, Salvador: Editora JusPODIVM, 2018.
[1] Art. 190. Versando o processo sobre direitos que itam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
[2] Art. 370. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.
Parágrafo único. O juiz indeferirá, em decisão fundamentada, as diligências inúteis ou meramente protelatórias.
[3] MARINONI, Luiz Guilherme. “A convenção processual sobre prova diante dos fins do processo civil”. Revista de Processo, Volume 288. Fevereiro/2019.
[4] JOBIM, Marco Félix; MEDEIROS, Bruna Bessa de. “O impacto das convenções processuais sobre a limitação de meios de prova”. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, Volume 18. Janeiro a Abril de 2017.
[5] Não obstante a definição do sentido direito ocorra apenas nas Cortes Supremas, para tanto é muitas vezes imprescindível a discussão dos fatos perante os juízes e tribunais. Para que o Judiciário possa atribuir sentido ao direito e desenvolvê-lo, informações adequadas sobre os fatos são necessárias, daí importando não só a função do amicus curiae, como também a ideia de que a prova não importa apenas para a resolução do caso concreto, mas também para a fixação do precedente e, portanto, para que se possa atribuir à sociedade o direito que deve orientá-la.
[6] Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
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