Transação tributária no leito de Procusto: analogia in malam partem e desnaturação dos institutos jurídicos
16 de fevereiro de 2025, 6h00
A ciência do direito é um conhecimento prático cuja finalidade está intrinsecamente ligada à sistematização lógica, à orientação axiológica e à exposição pedagógica da técnica jurídica. A distinção entre esses dois níveis do conhecimento pode ser sintetizada assim: enquanto o conhecimento prático busca determinar, em abstrato, os melhores meios para realização de determinados fins (éticos, jurídicos, políticos, educativos, artísticos), o conhecimento técnico designa concretamente os procedimentos que devem ser adotados, caso a caso, na atualização de uma obra humana. [1]
Na articulação entre esses dois planos — a ciência e a técnica —, os conceitos jurídicos assumem um papel fundamental.
Se isso hoje não nos parece claro é porque, como explica Dietmar von der Pfordten [2], o quadro atual da teoria do direito é dominado por uma impostação duplamente reducionista: de um lado, uma abordagem instrumentalista, que desvincula a análise jurídica de sua finalidade ética, de outro, uma abordagem normativista, que reduz o objeto de análise jurídica às normas (regras e princípios), retirando os conceitos, institutos e instituições do foco de atenção dos juristas.
Esse reducionismo tem consequências graves. Se não damos a devida atenção à função dos conceitos jurídicos na articulação de técnica e ciência do direito, corremos o risco de vê-los, no campo da técnica, reduzidos a armas retóricas para a argumentação em favor de qualquer tese; e, no campo da ciência, estancados em uma estrutura rígida e cega às vicissitudes que fazem da tarefa de definir o justo concreto um esforço sempre renovado.
O resultado dessa impostação é um profundo irrealismo metodológico, marcado pela “inoperância dos desenvolvimentos teóricos em voga, face à necessidade de soluções reais”. [3]
É preciso, portanto, para evitar toda a sorte de confusões, empreender um esforço de construção/compreensão dos institutos jurídicos a partir de sua estrutura conceitual própria, ou seja, de sua natureza jurídica.
Tradição filosófica
Para se referir àquilo que os entes são (quid), a tradição filosófica costuma empregar três termos distintos, com usos específicos em conformidade com o âmbito da investigação: substância (ontologia), essência (gnosiologia) natureza (filosofia prática). Por isso, o termo natureza possui um sentido dinâmico, uma perspectiva teleológica concernente à razão prática. Daí seu emprego no tratamento da ética e, notadamente, do direito.

Charge da revista Punch (1891) compara nova lei britânica das 8 h de trabalho com cama de Procusto
Na base desta utilização do termo está a definição aristotélica de natureza como um princípio intrínseco de mudança (e repouso) dos entes (Física, 192b, 20-23) [4]. Pode-se compreender, então, por natureza, o caráter essencial de determinado ente, que permite identificá-lo como tal em qualquer estágio do seu desenvolvimento. Daí que Antonio Livi afirme que “em filosofia esse termo designa, para cada ente, a sua essência, ou seja, suas qualidades específicas, sobretudo do ponto de vista operativo”. [5]
É essa ideia de princípio operativo que nos permite entender a importância da natureza jurídica de um instituto. É ela que permite reconhecê-lo como tal em suas diferentes formas e, portanto, diferenciar o seu uso do seu abuso. É ela que desvela as bases sobre as quais está fundamentado o seu regime jurídico. Em outros termos: a natureza jurídica é o princípio ordenador de um instituto. Como tal, possui um caráter dinâmico, na medida em que todo sistema normativo é uma ordenação racional construída para uma finalidade determinada.
Rejeição de suspensão de ação penal
Tudo isso vem ao caso quando se trata de considerar os efeitos de determinado ato jurídico em diferentes âmbitos. Vamos à questão concreta que pretendemos analisar:
Muitas decisões judiciais têm rejeitado pedidos de suspensão da ação penal deflagrada contra suposto crime contra a ordem tributária mesmo quando noticiada nos autos a celebração de acordo de transação tributária. [6]

O fundamento empregado nesses casos é o artigo 83, §2º, da Lei nº 9.430/96, incluído pela Lei nº 12.382/2011, que limita a possibilidade de suspensão da pretensão punitiva do Estado quanto aos crimes previstos no caput aos casos em que “o pedido de parcelamento [tributário] tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal”.
Denota-se que a legislação em vigor aceita ou nega a possibilidade de suspensão da ação penal por um critério meramente temporal: se o parcelamento tributário foi realizado antes ou depois do recebimento da denúncia. Isso não nos parece consentâneo com entendimento consolidado do STJ, “o adimplemento do débito tributário, a qualquer tempo, até mesmo após o advento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, é causa de extinção da punibilidade do acusado” (STJ, 5ª Turma, HC nº 362478/SP, Relator Jorge Mussi, 14.9.2017).
Essa limitação é também antagônica à ênfase dada pelo sistema jurídico brasileiro à reparação do dano patrimonial e à prevalência da política de arrecadação dos tributos em detrimento de medidas penais, contribuindo para os objetivos constitucionais da República. Como ressaltou o STF no julgamento da ADI nº 4273, “a adoção de medidas de despenalização, além de incrementar a arrecadação, cria mecanismos de fomento à atividade econômica e, em consequência, de preservação e geração de empregos”. Ademais, “as medidas de suspensão e de extinção da punibilidade prestigiam a liberdade, a propriedade e a livre iniciativa, deixando para aplicar as sanções penais nos delitos contra a ordem tributária somente em último caso”.
Transação tributária
Mas, além disso, deve-se ressaltar que transação tributária e parcelamento são institutos distintos, com naturezas e regimes jurídicos próprios.
A transação tributária extingue o crédito tributário, nos termos do artigo 156, III, do CTN. Sua realização é, portanto, causa extintiva da punibilidade, tanto quanto o pagamento, previsto no Inciso I do mesmo dispositivo legal. O parcelamento, a seu turno, apenas suspende a exigibilidade do crédito tributário (artigo 151, VI, do CTN).
Além disso, o CTN, afirma claramente, em seu artigo 171, que a transação, mediante concessões mútuas, importa em (de)terminação de litígio e consequente extinção de crédito tributário. Essa característica marca a sua finalidade específica, intrinsecamente ligada à sua natureza jurídica: pôr fim ao litígio. Essa característica distintiva da transação tributária é reforçada por autores como Luís Eduardo Schoueri [7] e Tathiane Piscitelli [8].
É certo que a redação dada aos §§ 2º e 3º, da Lei nº 13.988/2020, repetida ad litteram pelos artigos 4º e 5º Lei Estadual Paulista, nº 17.843/2023, contribui muito para a confusão. Afirmam os referidos dispositivos que, quando a transação envolver moratória ou parcelamento, aplica-se, para todos os fins, o disposto nos incisos I e VI do artigo 151 do CTN; e que os créditos abrangidos pela transação somente serão extintos quando integralmente cumpridas as condições previstas no respectivo termo.
Interpretação
Vê-se que uma interpretação literal das referidas disposições desnaturaria por completo os institutos previstos no CTN, impondo à transação tributária o mesmo regime jurídico da moratória ou do parcelamento. itir essa interpretação seria o mesmo que deitar o instituto jurídico num leito de ferro e, como Procusto, torturá-lo até que se amoldasse perfeitamente a dimensões preestabelecidas, estirando-o ou decepando-o conforme o caso.
Mas isso não pode ser assim simplesmente porque o intérprete não pode ignorar uma distinção tão claramente estabelecida pelo legislador complementar. É um cânone hermenêutico fundamental, ressaltado tanto por Carlos Maximiliano [9] quanto por Antonin Scalia e Bryan A. Garner [10], que cada disposição deve ser interpretada de forma a produzir efeito.
Assim, se a previsão do artigo 171 do CTN é de que a transação extingue o crédito tributário, não se pode reduzir o seu significado para transformá-lo em um simples parcelamento, ignorando o fato de que ele é causa extintiva do crédito, ainda que essa extinção só venha a se consolidar plenamente com o cumprimento total do acordo entre o fisco e o contribuinte.
Mais ainda: não se pode, com base nessa confusão indevida, legitimar a aplicação, por analogia in malam partem, do artigo 83, §2º, da Lei n 9.430/96, para vedar a suspensão da ação penal e do prazo prescricional nos casos em que a transação tributária foi formalizada depois do recebimento da denúncia.
Restrições à liberdade humana
Como destaca Carlos Maximiliano, “especialmente no âmbito criminal, as disposições legais que possam implicar em restrições à liberdade humana devem ser interpretadas estritamente” [11]. De igual modo é o entendimento de Hugo de Brito Machado. [12] A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reforça que “a utilização da analogia para agravar a situação do réu é inissível no direito penal brasileiro”.
Aplicar, portanto, a regra do parcelamento às transações tributárias configura analogia in malam partem, prática proibida no direito penal. Não por outra razão, em defesa patrocinada por dois destes articulistas, a Terceira Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (nos autos da apelação criminal nº 1500487-71.2019.8.26.0666, de relatoria do desembargador Luiz Antonio Cardoso, por votação unânime, j. 28.1.2025) deu provimento ao recurso para suspender a ação penal, posto que a transação tributária tenha sido realizada após o recebimento da denúncia.
Ora, se o próprio princípio operativo da transação tributária é a terminação do litígio por concessões mútuas das partes, e sendo ela expressamente uma causa de extinção do crédito tributário (e, consequentemente, da pretensão punitiva do Estado), a cautela exige que a ação penal permaneça suspensa até que advenham todos os desdobramentos desse feito notável em termos de consensualidade istrativa.
Com efeito, é imperativo que se alcance uma atuação integrada que permita que a extinção do débito na esfera istrativa seja acompanhada pela suspensão ou extinção da ação penal, promovendo, assim, uma justiça fiscal mais efetiva e harmoniosa.
Princípio da intervenção mínima
Luis Regis Prado, ao tratar do princípio da intervenção mínima, destaca que o “direito penal deve ser afastado quando não seja considerado meio idôneo, adequado ou eficaz para a prevenção do delito”, sendo que, no campo da eficácia, “não pode depender do puro arbítrio legislativo no estabelecimento dos objetivos da tutela penal, mas deve exigir-se prévia justificação dos conteúdos sobre quais tem incidência e pretende ser efetiva”. [13]
Não basta resolver a questão sob o prisma istrativo-fiscal; é necessário que se contenha a ação penal, de forma a garantir uma justiça verdadeiramente equilibrada e integrada. Afinal, como leciona Gustavo Binenbojm, “o melhor interesse público será alcançado pela resultante de uma solução concertada, ou seja, um acordo bilateral ou multilateral que atenderá, de maneira otimizada, tanto aos interesses específicos da istração (como presentante da sociedade) como aos interesses individuais legítimos, também protegidos pelo ordenamento jurídico” [14].
Fredie Didier Jr. e Leandro Fernandez, em seus estudos sobre a justiça multiportas, destacam que “a interação e integração entre os diversos mecanismos de resolução de conflitos são essenciais para garantir a eficiência e a efetividade do sistema de justiça” [15]. Assim, fica evidente que a justiça penal deve respeitar e considerar os efeitos da transação tributária estabelecidos na esfera istrativa.
Nesse contexto, é imperativo que a dogmática jurídica, sem perder de vista sua base referencial (que é o direito positivado e a interpretação jurisprudencial), atue para integrar de maneira coerente as esferas istrativo-fiscal e penal [16]. Essa integração exige a transação tributária produza seus efeitos plenos — inclusive a suspensão ou extinção da ação penal — e evite que formalismos temporais distorçam o objetivo de despenalização e fragilizem os princípios da proporcionalidade e da intervenção mínima.
Em conclusão, defende-se que ao harmonizar os dispositivos legais (em atenção ao “princípio da não-contradição” [17]) e rejeitar analogias in malam partem, reafirma-se o compromisso com uma política sancionatória racional, que respeita a liberdade, a propriedade e a livre iniciativa, promovendo uma justiça fiscal, a um só tempo, eficaz e equitativa.
[1] “Mentre il sapere pratico mira a determinare quali siano, in astratto, i mezzi migliori per realizzare determinati fini (etici, politici, educativi, artistici), quello poietico disegna concretamente i procedimenti da adottare, caso per caso, nell’attuazione di un’opera umana (…).” (LIVI, Antonio. Metafisica del Diritto e costruzione dei rapporti giuridici. In GHERRI, Paolo. (Ed.) Categorialità e trascendentalità del Diritto: atti della Giornata Canonistica Interdisciplinare. Roma: Lateran University Press, 2007, p. 119. Tradução livre do original).
[2] PFORDTEN, Dietmar von der. About Concepts in Law. In HAGE, Jaap e PFORDTEN, Dietmar von der. (Eds.) Concepts in Law. Nova Iorque: Springer. 2009.
[3] CORDEIRO, António Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2013. p. 34. v., tb., pp. 400-
403. Cfr. tb. a análise do tema realizada pelo autor na longa introdução que serve à edição portuguesa da obra magna de Claus-Wilhelm Canaris: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 5ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012. pp. IX-XXVIII.
[4] Nicola Abbagnano refere-se a esta definição de natureza como “a mais antiga e venerável”. In ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 814.
[5] “in filosofia il termine sta a significare, per ogni singolo ente, la sua essenza, ossia, le qualitá specifiche, sopratutto dal punto di vista operativo.” LIVI, Antonio. Dizionario critico della filosofia. Roma: Società Editrice Dante Alighieri, 2009, p. 121.
[6] Neste sentido: 2ª Câmara de Direito Criminal: TJSP, Habeas Corpus Criminal n.º 2223636-40.2024.8.26.0000; Relator: Francisco Orlando; Órgão Julgador:- Data do Julgamento: 16/09/2024; Data de Registro: 17/09/2024; 2ª
Câmara de Direito Criminal: TJSP, Apelação Criminal n.º 1501137-84.2020.8.26.0666, Relator: Luiz Fernando
Vaggione, j. 18/10/2024.
[7] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 231
[8] PISCITELLI, Tathiane. Curso de Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: RT. 2024. p. 519
[9] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2011. p. 204
[10] SCALIA, Antonin; GARNER, Bryan A. Reading law: the interpretation of legal texts. Library of Congress. 2012. p.
174
[11] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2011. p. 204.
[12] MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. 5ª ed. São Paulo: Atlas. 2022. p. 439. 15 STF, HC 111.840, Relator Min. Gilmar Mendes, j. 27/11/2012, DJE de 01/02/2013, p. 23.
[13] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Curso de Direito Penal brasileiro. Parte Geral. 22ª. Londrina: Thoth. 2024. p. 100; RIPOLLÉS, José Luis Díez. Racionalidade das leis penais. p. 151-152
[14] BINENBOJM, Gustavo. A consensualidade istrativa como técnica juridicamente adequada para a gestão eficiente de interesses sociais. Revista Eletrônica Da PGE-RJ, 3(3). Recuperado de https://revistaeletronica.pge.rj.gov.br/index.php/pge/article/view/190 . 2020. o em 9 de fevereiro de 2025.
[15] DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. O sistema brasileiro de justiça multiportas como um sistema autoorganizado: interação, integração e seus institutos catalisadores. Disponível em: https://www.mprj.mp.br/documents/20184/3978934/Fredie+Didier+Jr._Leandro+Fernandez__RMP-886.pdf. o em: 4 de julho de 2024.
[16] SILVA, Marcelo Rodrigues da. Acordos de leniência: a necessidade de uma política sancionatória-premial integrada para a implementação de medidas estruturantes anticorrupção. Dissertação (mestrado) – Universidade Metodista de Piracicaba, Direito, Piracicaba. 2019.
[17] SCHÜNEMANN, Bernd. Direito penal, racionalidade e dogmática: sobre os limites invioláveis do direito penal e o papel da ciência jurídica na construção de um sistema penal racional. Coordenação e tradução: Adriano Teixeira. São Paulo: Marcial Pons. 2018. p. 92.
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