Opinião

A imputação do fato punível à pessoa jurídica

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  • é advogado criminalista no Brasil e em Portugal mestrando em Direito e Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) onde também concluiu a pós-graduação em Law Enforcement Compliance e Responsabilidade Empresarial.

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17 de fevereiro de 2025, 11h28

O princípio da societas delinquere non potest ainda é defendido por alguns autores, que negam a possibilidade de responsabilização criminal da pessoa jurídica por condutas praticadas dentro das corporações [1]. De fato, esse foi o entendimento tradicional adotado pela doutrina europeia nas últimas décadas, baseado no argumento de que as pessoas jurídicas, por não possuírem capacidade de ação, não podem ser objeto de reprovação no sentido da culpa [2].

A argumentação da doutrina penal que sustenta a manutenção do princípio da societas delinquere non potest baseia-se na ficção da personalidade jurídica das pessoas jurídicas, que se fundamenta na incapacidade de ação e na ausência de culpa da pessoa jurídica [3].

Conforme a lição de Klaus Tiedemann, a imposição de uma sanção istrativa exige apenas o reconhecimento da “culpa social”, sem a necessidade de uma análise da “reprovação ética individual” da pessoa jurídica [4].

Esta tem sido a principal dificuldade enfrentada pela doutrina, uma vez que a realização de um julgamento ético do comportamento empresarial, diante de casos concretos, requer a identificação dos elementos essenciais e específicos que fundamentam a culpa jurídico-penal da pessoa jurídica. Caso contrário, corre-se o risco da adoção de uma responsabilidade estritamente objetiva.

Solução intermediária

Por outro lado, a responsabilidade penal da pessoa jurídica é uma realidade que precisa ser enfrentada, não sendo mais suficiente argumentar que as empresas não podem cometer crimes (societas delinquere non potest). Isso ocorre por dois motivos: em primeiro lugar, devido ao surgimento de uma criminalidade cada vez mais organizada e complexa, que ocorre por meio de sociedades comerciais, instituições financeiras e várias formas de associações e grupos, muitas vezes extremamente poderosos e com alcance global [5].

Em segundo lugar, devido à incorporação da responsabilidade penal da pessoa jurídica nos ordenamentos jurídicos de vários países, em uma realidade muito diferente daquela em que o conceito analítico da infração penal foi concebido. Esta incorporação culminou no reconhecimento de sua constitucionalidade pelos tribunais em todo o mundo.

Para Bernd Schunemann [6], a imputação do fato punível não pode ser fundamentada em conceitos simplistas e extremos que levem a nunca imputar ou sempre imputar as atividades da empresa à sua istração. É crucial buscar uma solução intermediária que se baseie nos princípios de imputação consolidados há mais de cem anos e que continuam a ser aprimorados, respeitando os dois princípios inalteráveis do Direito Penal: o princípio do Direito Penal do fato e o princípio do Direito Penal da culpa. Em outras palavras, é necessário identificar uma ação ou omissão que viole uma norma e que tenha sido cometida culposamente, ou seja, de forma individualmente evitável. Essa abordagem ponderada permite, igualmente, uma análise mais equitativa e justa da responsabilidade penal da própria pessoa jurídica.

Lei nº 9.605/98

A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988 estabelece, no artigo 225, §3º, a necessidade de sanções penais para as pessoas jurídicas em casos de condutas criminosas ao meio ambiente. No entanto, é importante respeitar o princípio da legalidade [7], o que significa que a mera fundamentação constitucional não é suficiente para imputar a responsabilidade penal à pessoa jurídica. É necessária, portanto, uma lei prévia, certa, precisa e expressa que estabeleça o modelo de imputação do fato punível adotado pelo sistema de justiça criminal.

Com o objetivo de atender ao imperativo constitucional de criminalização, dez anos após a promulgação da Constituição, foi publicada a Lei nº 9.605/98, em 12 de fevereiro. Essa lei tem como principal objetivo garantir uma maior proteção aos bens jurídicos ambientais. Em seu artigo 3º, a legislação extravagante em destaque estabelece que as pessoas jurídicas podem ser responsabilizadas criminalmente em casos de infrações cometidas por decisão de um representante legal ou contratual da empresa, bem como por um órgão colegiado, no interesse ou benefício da pessoa jurídica [8].

O parágrafo único do mesmo dispositivo legal prevê que a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a responsabilidade das pessoas físicas que tenham participado do mesmo fato, seja como autores, coautores ou partícipes. Dessa forma, tanto a pessoa jurídica quanto as pessoas físicas envolvidas devem ser responsabilizadas de forma conjunta pelos crimes cometidos.

Diante desse contexto, ressalta-se que, com base na legislação penal brasileira extravagante, não se pode afirmar que o sistema de justiça criminal como um todo adota uma responsabilidade autônoma da pessoa jurídica, como afirmado por Carlos Gómez-Jara Díez [9]. Pelo contrário, o modelo de imputação do fato punível à pessoa jurídica adotado pelo legislador brasileiro, na minha leitura, é o da heterorresponsabilidade puro ou vicária.

Isso significa que a responsabilidade penal da pessoa jurídica depende da ocorrência de uma infração cometida por decisão de um agente qualificado ou de um órgão colegiado. Além disso, é fundamental destacar que a responsabilidade penal da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade das pessoas físicas envolvidas, sendo que o juízo de censura do comportamento corporativo também deve levar em consideração essa condição. Em suma, no sistema de justiça criminal brasileiro extravagante, a responsabilidade penal da pessoa jurídica está diretamente relacionada à conduta criminosa dos agentes qualificados e órgãos colegiados, e a responsabilidade das pessoas físicas não é excluída em razão disso.

Porque uma coisa é a responsabilidade da pessoa jurídica não excluir a responsabilidade da pessoa física que executou a ação ou omissão delitiva, outra, bem diferente, é dizer que a responsabilidade penal da pessoa jurídica não depende da responsabilização da pessoa física.

Para lá disso, a responsabilidade penal da pessoa jurídica, ao não excluir a responsabilidade do agente qualificado, está, na verdade, afirmando que uma responsabilidade depende da outra.

E mais, a aplicação da pena isolada, cumulativa ou alternativa da pessoa jurídica, não tem o condão de permitir, como quer fazer crer o professor Carlos Gómez-Jara Díes [10], a construção de uma teoria de autorresponsabilidade da pessoa jurídica, mormente em razão do que dispõe o caput do artigo 3º da Lei do Crimes Ambientais, que é justamente o que delimita a intervenção estatal e estabelece o modelo de imputação do fato punível a pessoa jurídica, sem exceção ou mitigação.

Destaca-se, por oportuno, que no Brasil a única situação em que a pessoa jurídica é responsabilizada criminalmente está aos crimes ambientais. Todavia, a Lei dos Crimes Ambientais brasileira não possui uma cláusula de salvaguarda de proteção do bem jurídico ambiental para permitir que a pessoa jurídica responda pelo crime ambiental, independentemente da responsabilização do agente qualificado ou do órgão colegiado, como ocorre na previsão do artigo 11º, nº 7, do Código Penal português (A responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes nem depende da responsabilização destes), nomeadamente em razão da ausência de uma disposição que consagra o princípio da autonomia e independência da culpa da pessoa jurídica. (grifo do articulista)

Spacca

Por essa via, a jurisprudência brasileira sedimentou o entendimento no sentido de que havia a necessidade da “dupla imputação”, ou seja, a pessoa jurídica somente poderia ser responsabilizada criminalmente nos casos em que o agente qualificado também o fosse. Tal interpretação decorre, não só do que prevê o caput do artigo 3º da Lei 9.605/98, como também do seu parágrafo único, que não exclui a responsabilidade penal, nem da pessoa jurídica e muito menos da pessoa física. Ou seja, uma responsabilidade depende da outra. Esta é, portanto, a interpretação que faço da citada legislação extravagante.

Viragem jurisprudencial

Curiosamente, e destituída de qualquer previsão legal que conferisse um e jurídico efetivo, em 6 de agosto de 2013, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o Recurso Extraordinário nº 548.181/PR, da relatora ministra Rosa Weber, promoveu uma viragem jurisprudencial, afastando, a partir deste julgado, a teoria da dupla imputação.

O primeiro ponto que chamo a atenção para este julgamento é o fato de que o referido acórdão foi apreciado apenas por uma das turmas do STF, ou seja, a tese da “dupla imputação”, firmada há mais de 15 anos na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, nunca foi levada à apreciação do Plenário da Corte Constitucional brasileira. O segundo, mais complexo, diz respeito à fundamentação apresentada no referido acórdão, assentando o entendimento de que o artigo 225, §3.º, da CRFB, “não condiciona a responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação” [11].

Não parece ser esta a melhor solução para o caso em debate, uma vez que o referido dispositivo constitucional é um imperativo de criminalização e não uma norma penal incriminadora, e certamente não tem o condão de definir o modelo de imputação do fato punível à pessoal jurídica. Além disso, a competência para definir as molduras penais é privativa da União [12] e não cabe o STF exercer tal função.

Como o legislador infraconstitucional não estabeleceu uma cláusula de salvaguarda do bem jurídico ambiental penalmente tutelado, no sentido de permitir a responsabilização autônoma e independente da pessoa jurídica, mesmo que o agente qualificado não seja responsabilizado criminalmente, não cabe ao STF arvora-se no papel de legislador positivo. O que a Corte Constitucional poderia ter feito naquela altura era dizer que a Lei dos Crimes Ambientais é inconstitucional, por violar o sentido teleológico da norma constitucional, mas alterar o modelo de imputação do fato punível eleito pelo legislador é ultraar as barreiras da interpretação conforme os princípios fundamentais do Direito Penal e da própria Constituição Federal. Ou seja, trata-se de uma burla de etiqueta.

Por outro lado, a realidade social das pessoas jurídicas pode até sugerir a necessidade de uma legislação especial sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica, mas isso não implica em alterar os fundamentos normativos estabelecidos no artigo 3.º da Lei nº 9.605/98 por meio de um julgamento da Corte Constitucional.

Com efeito, a melhor solução para evitar a impunidade pelos crimes ambientais frente às imensas dificuldades de individualização dos responsáveis internamente às corporações, além de reforçar a tutela do bem jurídico ambiental [13], a pela edição de uma nova lei que abranja todos os aspectos pertinentes e relevantes para a imputação do fato punível à pessoa jurídica e a forma de responsabilização, garantindo-se assim a independência e harmonia entre os Poderes da União, mas acima de tudo, a segurança jurídica dos destinatários da norma.

O ideal, na realidade, é a responsabilidade criminal da pessoa jurídica integrar o Direito Penal primário ou de justiça no ordenamento jurídico brasileiro, e não se limitar ao Direito Penal secundário ou extravagante em pleno século 21. É necessário regular de forma séria, abrangente e efetiva a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Considero, portanto, que este é um caminho inevitável no Brasil diante dos avanços sociais e tecnológicos de um mundo cada vez mais globalizado, que exigem uma postura mais firme na tutela penal de bens jurídicos macrossociais identificados no âmbito da atividade econômica e empresarial.

 


[1] GARCIA MARTÍN, Luis – «La cuestión de la responsabilidad penal de las propias personas jurídicas», em MIR PUIG/LUZÓN PEÑA, Responsabilidad penal de las empresas y sus órganos y responsabilidad por el producto, Barcelona: Bosch, 996, p. 45.

[2] BACIGALUPO, Enrique – “Compliance” y derecho penal: prevención de la responsabilidad penal de derectivos y de empresas, 1.ª ed., Buenos Aires: Hammurabi, 2012. p. 100.

[3] DIAS, Jorge de Figueiredo – Direito Penal, Parte Geral. Coimbra: Gestlegal, 3.ª edição, 2019, p. 344.

[4] TIEDEMANN, Klaus – «Corporate criminal liability as a third track», In: BRODOWSKI, Domink; DE LOS MONTEROS DE LA PARRA, Manuel Espinoza; TIEDEMANN, Klaus; VOGEL, Joachim. (ed.) Regulating Corporate Criminal Liability. Heidelberg: Springer International Publisher Switzerland, 2014. p. 12-13.

[5] DIAS, Jorge de Figueiredo – Direito Penal, Parte Geral, cit., p. 344.

[6] SCHUNEMANN, Bernd – «Responsabilidad penal en el marco de la empresa. Dificultades relativas a la individualización de la imputación», ADP. Vol. LV, 2002, p. 13.

[7] O art. 5.º, inciso XXXIX, da CRFB/88, estabelece que: não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

[8] Lei n.º 9.605/98, art. 3º – As pessoas jurídicas serão responsabilizadas istrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.

[9] GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos – A responsabilidade penal da pessoa jurídica: teoria do crime para Pessoas Jurídicas. São Paulo: Atlas, 2015, p. 2. O autor defende que o modelo de imputação adotado no Brasil é de autorresponsabilidade.

[10] GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos – A responsabilidade penal da pessoa jurídica: teoria do crime para Pessoas Jurídicas, cit., p. 2-4.

[11] RE n.º 54.818/PR, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 6/8/2013.

[12] Artigo 22, inciso I, da Constituição da República Federativa do Brasil.

[13] RE n.º 54.818/PR, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 6/8/2013.

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  • é advogado criminalista no Brasil e em Portugal, mestrando em Direito e Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL).

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