Opinião

Das perguntas sugestivas sob a ótica das falsas memórias e reconhecimento pessoal

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20 de fevereiro de 2025, 16h13

O processo penal é uma estrutura complexa e dinâmica, fundamentada na busca pela justiça, sendo orientado pela produção e análise de provas de maneira ética e em estrita conformidade com os princípios constitucionais que regem a legalidade, a ampla defesa e a preservação da justiça.

Tânia Rêgo/Agência Brasil

Nesse contexto, a prova testemunhal destaca-se como um dos elementos mais relevantes do conjunto probatório, frequentemente desempenhando papel crucial na formação do convencimento judicial e na reconstrução dos fatos controvertidos. Entretanto, a supracitada modalidade probatória não está isenta de fragilidades, sendo profundamente influenciada pela natureza dinâmica e suscetível da memória humana, bem como por fatores externos que podem comprometer sua confiabilidade.

A memória, ao contrário do que muitas vezes se imagina, não é um registro perfeito e imutável dos eventos vivenciados. Trata-se de um processo ativo de reconstrução, sujeito a múltiplas variáveis, como o tempo decorrido, a influência de emoções intensas, a exposição a informações adicionais e até mesmo a pressão exercida durante a coleta de depoimentos. No processo penal, onde as consequências de um erro podem ser irreversíveis, essas vulnerabilidades assumem um caráter especialmente crítico. A possibilidade de distorções na memória de testemunhas representa um desafio à busca pela justiça e exige, dos operadores do direito, um cuidado redobrado na análise e valoração de seus depoimentos.

Embora valorizada como meio de reconstrução dos fatos, a prova testemunhal é notoriamente falível. Fatores como o impacto emocional do evento, a interação com informações posteriores e o tempo transcorrido podem distorcer as percepções de uma testemunha. Essa fragilidade é ainda mais preocupante no âmbito penal, onde falhas probatórias podem resultar em condenações injustas ou na absolvição de culpados. Por isso, o Código de Processo Penal brasileiro busca regulamentar a oitiva de testemunhas de modo a preservar sua espontaneidade e autenticidade, exigindo que perguntas sejam formuladas de maneira objetiva e sem indução.

Perguntas sugestivas e falsas memórias

Apesar dessas previsões legais, a prática muitas vezes se distancia do ideal, e a influência de perguntas sugestivas no processo de coleta de depoimentos é um exemplo claro desse problema. Afinal, o que são as chamadas “perguntas sugestivas” sob a ótica das falsas memórias?

Exemplificamos a denominação para caracterizar aquelas perguntas que induzem respostas condizentes com os elementos colhidos em sede de investigação policial, que devem ser comprovados em sede de audiência de instrução e julgamento, mas que de forma alguma são induzidos por quaisquer das partes processuais, principalmente pelo juiz, ao adotar uma postura parcial.

Nessa esteira, salienta-se que, superada a fase investigava, onde predomina o sistema inquisitório (Lopes, 2020, p. 46), o processo penal atual deve seguir o sistema acusatório, caracterizado pelas garantias processuais, a imparcialidade do juiz e as provas sem valor pré-estabelecido (Lopes, 2020, p. 54-56)

Sendo assim, perguntas sugestivas são aquelas que, intencional ou inconscientemente, introduzem informações que podem induzir a testemunha a responder conforme a sugestão implícita no questionamento. Por exemplo, perguntar “Você viu o acusado segurando a arma no momento do crime?” pressupõe que o acusado estava armado, mesmo que a testemunha não tenha observado tal fato. Essa prática não apenas contamina o depoimento no momento em que é colhido, mas também pode levar à consolidação de falsas memórias, que são posteriormente evocadas com convicção pela testemunha.

Importância da prova testemunhal

Dando sequência à análise sobre a importância da prova testemunhal no processo penal, é essencial abordar o impacto do fenômeno das falsas memórias na confiabilidade desse meio probatório. As chamadas “falsas memórias” são um fenômeno psicológico no qual uma pessoa se recorda de eventos que nunca ocorreram ou distorce elementos de acontecimentos reais. No âmbito processual, sua ocorrência pode ter consequências devastadoras, comprometendo a verdade dos fatos e minando direitos fundamentais, como a presunção de inocência e o devido processo legal.

Spacca

A formação de falsas memórias pode ser influenciada por fatores como pressão psicológica sobre a testemunha, repetição de narrativas imprecisas ou exposição a informações externas. Mesmo testemunhas bem-intencionadas (ou seja, aquelas comprometidas com a verdade), sob tais condições, podem prestar depoimentos que acreditam serem verdadeiros, mas que, na realidade, foram contaminados por influências externas ou internas.

Além disso, as falsas memórias destacam-se como um dos principais fatores que ameaçam a autenticidade da prova testemunhal. Essas lembranças, fabricadas ou distorcidas, embora genuinamente acreditadas pela testemunha, não correspondem à realidade dos fatos. Influências externas, como sugestões implícitas durante os interrogatórios, repetição de informações incorretas ou viés contido na formulação das perguntas, podem desencadeá-las.

Nesse cenário, as perguntas sugestivas representam um dos maiores riscos, pois têm o poder de moldar respostas e consolidar memórias equivocadas. Um exemplo claro disso é a pergunta: “Você viu o acusado fugindo do local do crime?”, que pressupõe a culpa do réu e pode induzir a testemunha a confirmar algo que não presenciou.

Sugestões verbais influenciam em narrativas

Uma especialista reconhecida no âmbito das falsas memórias e as suas implicações na esfera penal chamada Elizabeth Loftus, psicóloga cognitiva, demonstra em seus estudos e pesquisas a capacidade de sugestionabilidade da memória humana, expondo que a implementação de narrativas é completamente possível através de sugestões verbais.

Em outro estudo realizado por Loftus, foi criada uma simulação de um local de acidente de trânsito. Uma semana após a exibição da simulação, foram implantadas falsas memórias estimulando as pessoas envolvidas a imaginarem, de forma sugestiva (ou seja, não diretamente) sobre um celeiro no local do acidente simulado. Como resultado, algumas pessoas, cerca de 17%, afirmaram terem visto o celeiro na simulação quando, na verdade, não havia qualquer edificação, muito menos um celeiro na paisagem. Outros 3% disseram que se lembraram do celeiro.

Assim, foi constatado que fazer uma referência casual a um objeto inexistente durante uma pergunta pode elevar a chance de alguém posteriormente afirmar que viu esse objeto, através das falsas memórias implantadas.

Exemplo do uso de falsas memórias

Ao longo de suas pesquisas, a psicóloga, objetivando atestar o quão fácil se torna a implementação de falsas memórias ligadas a crimes, deu a seus alunos de um curso de psicologia a tarefa de implantar falsas memórias em alguém.

Um grupo de alunos decidiu simular um crime de furto da seguinte forma: duas alunas entraram em uma estação de trem, uma delas deixando sua grande bolsa em um banco enquanto ambas se afastavam para verificar os horários dos trens. Enquanto elas estavam fora, um aluno se esgueirou até a bolsa, enfiou a mão e fingiu tirar um objeto e enfiá-lo sob o casaco, se afastando em seguida. Quando as duas alunas retornaram, a mais velha percebeu a perda do objeto e começou a chorar, chamando a atenção de testemunhas oculares reais.

Para reforçar a importância do objeto, a aluna lamentou que o gravador fora emprestado por seu chefe por um motivo especial, alegando que era muito caro, diferente dos outros gravadores comuns, etc. A maioria das testemunhas oculares prontamente forneceram todos os detalhes que lembravam sobre o ocorrido, fornecendo seus números de telefone para o caso de necessidade de auxílio em uma possível investigação para encontrar o autor do crime.

Uma semana depois, um “agente de seguros” que, na realidade, era um dos alunos do grupo, ligou para essas testemunhas, questionando sobre os detalhes que pudessem lembrar e perguntando a elas: “Você viu o gravador?”. Como resposta, embora não houvesse, de fato, nenhum gravador, mais da metade das testemunhas oculares “lembrava” de tê-lo visto, e quase todas conseguiram apresentar detalhes sobre ele, todos diferentes uns dos outros: alguns diziam que era cinza e outros diziam que era preto; alguns diziam que estava em um estojo, outros diziam que não; alguns diziam que tinha uma antena, outros alegavam que não.

As descrições apresentadas pelas “testemunhas” demonstram que uma “memória” bastante vívida pode ser criada a partir de um objeto ou até mesmo de um fato que nunca existiu.

Implicação no processo penal

Conclui-se que o impacto de perguntas sugestivas e falsas memórias não se restringe ao âmbito teórico ou psicológico; isto é, possui implicações diretas e profundas no processo penal. A ocorrência de distorções na prova testemunhal pode resultar em erros judiciais graves, como condenações de inocentes ou absolvições de culpados, comprometendo a função essencial do processo penal de assegurar a justiça. Diante disso, o Código de Processo Penal brasileiro (P) estabelece diretrizes específicas para a coleta de depoimentos, como a exigência de que as perguntas sejam formuladas de forma objetiva e imparcial, preservando a espontaneidade e a veracidade das declarações das vítimas e testemunhas. No entanto, a aplicação prática dessas normas nem sempre ocorre de maneira ideal, exigindo um compromisso maior dos operadores do direito com a lisura dos procedimentos.

Outro aspecto sensível dentro do contexto da prova testemunhal é o reconhecimento de pessoas, frequentemente utilizado como elemento probatório no curso da persecução penal. Embora regulamentado pelo artigo 226 do P, que estabelece medidas para garantir a fidedignidade do procedimento — como a apresentação do suspeito ao lado de pessoas com características físicas semelhantes —, na prática, muitas vezes essas diretrizes são negligenciadas. Essa negligência pode levar à contaminação do reconhecimento pela vítima ou pela testemunha, que pode ser influenciada por fatores como a exposição prévia à imagem do suspeito ou a pressão para identificar alguém como culpado. Assim como as perguntas sugestivas, esses desvios reforçam o risco de formação de falsas memórias e o comprometimento da legitimidade do processo.

Riscos à prova testemunhal

Diante dessas fragilidades, é imperativo que o sistema de justiça adote práticas que mitiguem os riscos associados à prova testemunhal. A busca constante dos operadores do direito que identifiquem ou, ao menos, tenham um cuidado delicado com situações que possam incidir em falsas memórias é fundamental, isto é, o uso de técnicas de entrevista baseadas em evidências científicas — como o método de entrevista cognitiva, que busca minimizar a contaminação de memórias — e a utilização criteriosa de perguntas abertas (neutras) e sem influência são medidas essenciais para garantir a confiabilidade das provas. Além disso, cabe aos juízes uma análise crítica e fundamentada dos depoimentos, levando em consideração os fatores que podem ter influenciado sua produção e os limites inerentes à percepção e memória humanas.

Para ilustrar os riscos das falsas memórias e das perguntas sugestivas na produção da prova testemunhal, destaca-se um caso emblemático ocorrido em um processo envolvendo o crime de corrupção iva (APR 0011683-88.2016.8.26.0320). Na fase probatória, a principal prova era o depoimento testemunhal, prestado apenas um ano após os supostos fatos. Diante do tempo decorrido, a defesa, em sede recursal (apelação), sustentou a possibilidade de incidência de falsas memórias, argumentando que o lapso temporal poderia comprometer a precisão e a confiabilidade das declarações. Reconhecendo a fragilidade da prova testemunhal e os riscos inerentes à reconstrução da memória após longo período, a desembargadora relatora Fátima Gomes, 9ª C.Crim. de São Paulo, julgou procedente o recurso, absolvendo o réu no Tribunal. Esse caso reforça a necessidade de uma análise criteriosa dos depoimentos, considerando não apenas o conteúdo das declarações, mas também os fatores que podem influenciar sua formação e confiabilidade.

Em suma, compreender os riscos associados às falsas memórias e às perguntas sugestivas é essencial para a busca pela justiça e para a preservação da justiça no âmbito do processo penal. A prova testemunhal, embora valiosa, deve ser tratada com a devida cautela, considerando suas vulnerabilidades e o potencial impacto que eventuais distorções podem causar. Somente por meio de uma abordagem rigorosa e comprometida com os princípios constitucionais será possível assegurar que o processo penal cumpra sua função de forma ética, justa e eficaz.

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Referências

BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. o em: 07 de janeiro de 2025.

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