Insignificância material x insignificância processual
21 de fevereiro de 2025, 21h28
No Brasil ainda se discute quais seriam os requisitos para a insignificância material, ou seja, a conduta que, embora prevista na lei penal, não seria materialmente crime por ser diminuta (por várias aspectos). Neste caso, não seria crime e, por isso, não haveria condenação ou até mesmo necessidade de ajuizar a ação penal. No entanto, ao se afirmar que é hipótese de insignificância material, não se pode desarquivar o processo, nem ajuizar nova ação, pois seria uma espécie de absolvição, diferente da insignificância processual, a qual iremos abordar ao final.
Apesar de alguns setores jurídicos criticarem o Ministério Público alegando punitivismo ao processar nestes casos de menor relevância, o fato é que nem o legislador, nem o Judiciário, emitiram lei/súmulas/enunciados sobre o tema. Há julgados definindo alguns parâmetros, mas eles não têm a mesma força de uma súmula ou lei. E ao alegarem que há punitivismo, esquecem do mito da obrigatoriedade da ação penal, o qual não está expresso na legislação, mas é aplicado como algo supremo.
Também não falam no mito do que se chama de “in dubio pro societate” no momento do oferecimento da denúncia, que é, na prática, a crença no milagre de que prova ruim pode melhorar durante a instrução judicial, o qual também não é expresso na lei, mas é tratado como algo supremo.
Na prática, é difícil explicar para a população que um furto de pequenos objetos não é crime, conforme alega a doutrina da insignificância material. Tal preceito decorre do mito da obrigatoriedade da ação penal, afinal, somente não se pode ajuizar ação penal se não for crime, então, criou-se essa estratégia, pois de fato não há como abrir processo por todos os delitos. Inclusive, uma enorme maioria não é comunicada à polícia, conforme identificado pelo IBGE, segundo o qual mais de 50% das vítimas de furto nem comunicam o fato à polícia, ou seja, nem entram para as estatísticas policiais.
A rigor, é mais fácil explicar para a população que determinada conduta é crime, mas que, por ser de menor impacto, serão priorizadas as investigações, denúncias e instrução de homicídios, estupros e outros crimes, independentemente de serem presos.
Atualmente, somente processos com réus presos, em geral flagrantes, tramitam com rapidez, pois criou-se essa cultura de que urgente é apenas réu preso, independentemente da gravidade do crime. Logo, como os presos em flagrante geralmente cometem crimes menos inteligentes, estes é que acabam sendo condenados mais rapidamente, ou seja, apesar de haver mais processo por furto do que golpes no sistema jurídico. Hoje sabemos que há muito mais golpes, mas não se apura e nem fundamenta.
Funcionalismo penal avança no mundo todo, menos no Brasil
Na Itália, por exemplo, como está escrito no artigo 112 da Constituição que a ação penal é obrigatória, adotaram na lei a estratégia de prever na legislação ordinária, a partir de 2018, que casos com condutas cometidas sem violência física, com ausência de habitualidade do autor e baixo valor do objeto ou do resultado não são crimes e que o Ministério Público pode não ajuizar a ação penal nessa situação, já encampando o funcionalismo penal e uma espécie de insignificância processual. Ficou meio complexo em razão de lá preverem na Constituição a obrigatoriedade, mas foi o modo que encontraram.
Afinal, a partir da década de 90, tanto os países da Europa como os da América Latina (menos o Brasil) avançaram para o funcionalismo penal, em que há uma triagem de prioridades no momento do ajuizamento da ação penal, o que é defendido pelo alemão Roxin e que é muito mais funcional e eficiente.
No Brasil, os garantistas alegam que não pode haver seletividade, como se ela não existisse no modelo atual finalista, o qual faz seleções sem transparência e ao acaso da prescrição também. Um aspecto pouco discutido é que, na prática, há uma redução do mercado de trabalho, pois reduz-se o número de processos, uma vez que são selecionados apenas os casos mais relevantes para a localidade, o que reduz provavelmente para 1/3 do acervo atual, porém com mais efetividade, menos prescrição e mais condenações.
A proposta do funcionalismo é muito maior do que a visão dos finalistas que ainda reinam no Brasil e focam em conceitos ontológicos e na separação do Direito Penal e da segurança pública. Logo, têm uma visão limitada a acreditar que funcionalismo é apenas questões. De fato, o funcionalismo penal de Claus Roxin é uma estrutura penal marcada pela reinserção da política criminal no âmbito do sistema jurídico-penal, um trabalho integrado entre segurança pública processual e Direito Penal. Para os finalistas, Roxin desenvolveu o conceito de insignificância material na década de 80, na Alemanha. Não foram os garantistas na Itália, pois estes focam mais em garantias processuais, logo deve haver o processo. Contudo, atualmente a doutrina já evoluiu para a insignificância processual.
O funcionalismo é uma evolução do finalismo, o qual já faleceu como doutrina processual, exceto no Brasil. Na verdade, o funcionalismo adota o tipo penal como o finalismo, porém estabelece um juízo de valor por promotores e juízes para estabelecer as prioridades, sem prejuízo das prioridades legais.

Para o finalismo, a atuação jurídica deve ser algo automatizado e robotizado, com servidores públicos burocratas, sendo que apenas o Legislativo, por meio de leis penais, e o Executivo, através de medidas com as polícias, é que podem fazer política pública penal. Mas para o funcionalismo as prioridades penais e de segurança pública também devem partir do juiz e promotor, notadamente, em políticas para tramitação de ações penais, inclusive arquivamentos.
Alguns sustentam que é preciso de lei para permitir essa seletividade, mas é o contrário: se não há lei, então não há limite. A lei serve para limitar, e não para autorizar. Por isso, que juízes e promotores são as únicas carreiras que perdem o cargo no momento de se candidatar, independentemente de serem eleitos, além de terem controle externo. Nenhuma outra carreira jurídica tem essa restrição. Tais medidas restritivas somente se justificam se se entender que há uma parcela de exercício de função de agentes políticos no exercício do trabalho, ou seja, estabelecer prioridades. Caso contrário, a restrição eleitoral seria somente uma punição em razão de alguns integrantes do Judiciário e Ministério Público terem mostrado alto grau de corrupção no Estado.
O funcionalismo é alicerçado no princípio da oportunidade, juízo de valor processual, fundamentada para ações penais públicas incondicionadas, e não apenas para ações penais privadas ou públicas condicionadas à representação da vítima. Estas duas últimas não precisam de fundamentação, mas a pública incondicionada precisa ser fundamentada, essa é a diferença, e não que seja vedado. Isto é, funcionalismo não é somente discussão sobre conceitos jurídicos como pensam os finalistas ao reportarem à Teoria da Imputação Objetiva, pois assim os finalistas veem apenas o iceberg e se esquecem da imensidão do mar que é toda a estrutura doutrinária funcionalista.
Exemplificando com uma situação muito comum: a vítima de um crime de furto (ação penal incondicionada) teve o objeto restituído, ou mesmo não restituído, mas não tem interesse na ação penal. A Promotoria, porém, é “obrigada” a processar, pois o legislador estabeleceu na lei que para golpes a vítima pode não representar, mas para furto é incondicionada. Ora, nestes casos, nos termos do funcionalismo, a Promotoria pode fundamentadamente não processar. Já para o finalismo, ela é obrigada a processar cegamente.
No Brasil, em vez de foco na Constituição Federal, ainda idolatramos o P, o qual é da década de 40 e copiado da Itália, onde já até se revogou o conhecido “Código Rocco”. Porém, o mais pitoresco é que o P brasileiro de 1941 nunca foi votado, pois o ditador Vargas fechou o Congresso entre 1937 e 1946. E como o P era um autoritário decreto-lei, ele vigora até hoje sem votação, exceto para algumas poucas alterações que foram votadas posteriormente.
Inclusive o próprio Ministério Público Criminal atua com base no P de 1941 e não na autonomia e independência funcional Constitucional de 1988. Alguns tribunais aplicam a lei seca do P e nem adianta alegar inconstitucionalidade, pois alegam que o legislador optou por algo inquisitivo e ditatorial. Mas qual legislador optou? Afinal, o P de 1941 tem quase 80% do seu texto original sem votação ainda. Aparentemente, aplica-se a Constituição Federal na autonomia do Ministério Público apenas para a seara cível, o que é algo meio bipolar, pois no setor criminal ainda estamos praticamente na década de 40, exceto com alguns acordos penais, e mesmo assim o Judiciário resiste em homologar e tenta impor a vontade judicial às das partes, violando o sistema acusatório e de contraditório previsto na Constituição para impor um sistema inquisitivo, sem respaldo constitucional.
Apenas para termos um parâmetro internacional, destacamos que no ano de 2014 entrou em vigor o novo P federal na Argentina, tendo o renomado autor argentino Guido L. Brunetti, na obra Manual de Derecho Procesal Penal, em 2021, exaltado a efetivação do princípio da oportunidade com critérios especificados na norma nos seguintes termos na pág. 54/verso, os quais exigem fundamentação:
“En el âmbito nacional, el nuevo Código Procesal Penal Federal puso en marcha um sistema procesal de corte netamente acusatorio, estabelecendo como principio rector la solución de conflitos dando preferência a las soluciones que mejor se adecuen al restablecimiento de la harmonia entre sus protagonistas y a la paz social (art. 21 PF. Conforme ello, se concedem amplias potestades de disposición a los representantes del Ministério Público Fiscal para prescindir de la persecucion penal por motivos de utilidade social o razones de política criminal
Seguindo esta linea, el nuevo código de procedimento regula los siguientes modos alternativos de solución de conflitos:
Critérios de oportunidade (art. 31 PF: que permitem ao Fiscal prescindir total o parcialmente del ejercicio de la acción lá ação penal pública ante supuestos de:Insignificância del hecho, cuando no se afectare gravemente interés público (inc. a)
Por la intervención de menor relevancia del importunado el hecho. Cuando el aporte del imputado es mínimo al punto de la aplicación del poder punitivo tornaria desproporcionada una pena desde el punto de vista de la culpabilidad por el hecho (inc. b)
En casos de pena natural, cuando el imputado hubiera sufrido a consecuencia del hecho um dâno físico o moral grave que tornare innecesaria y desproporcionada la aplicación de la pena (inc. c)
Por sancion suficiente. Establece la possibilidade que se prescinda de la persecución de um delito cuando la sanción que pued recaer por la comisión de ese hecho carezca de importância em consideración de una ya impuestra o futura. Este critério se asiente em el principio de el principio de estricta necessidade de la pena…..”
Em suma, na Argentina já adotaram o princípio da insignificância processual em vez da insignificância material. Ou seja, lá já se pode deixar de ajuizar a ação penal, mesmo havendo crime, enquanto no Brasil é preciso afirmar que não há crime para romper com o mito de obrigatoriedade da ação penal e absolver o réu. A insignificância evita demandas desnecessárias, mas reduz mercado de trabalho, em especial para a defesa, logo não há interesse em discutir este tema, sendo mais salutar acusar Ministério Público de punitivismo, mesmo sabendo que é “obrigado” a processar.
Inclusive com o aumento de arquivamentos por parte do Ministério Público, em torno de 30%, já há setores da advocacia alegando que podem ajuizar ação penal privada, mesmo quando o Ministério Público arquiva, pois de fato, o que se almeja é fomentar o mercado de trabalho e também estimular processos em casos de interesse político, eleitoral ou específico. Contudo, quando o Estado assumiu a persecução penal foi justamente para fazer triagem e evitar demandas penais abusivas, o que de fato foi se perdendo em razão do automatismo proposto pelo Finalismo ( aspecto maior que o mero conceito de ação (conduta) e dolo no Direito Penal.
Não precisa de lei para autorizar, pois inerente ao poder estatal estabelecer prioridades no campo de ações penais. O que pode ter é lei para limitar as hipóteses de arquivamento, como ocorreu na França, onde também permitiram o recurso pela vítima, pois estavam arquivando com critérios muito largos.
Na prática atual é a polícia, e policiais podem se candidatar e continuar no cargo, que controla a pauta da Promotoria e do Judiciário, e não o contrário, pois a polícia escolhe livremente o que irá priorizar nas abordagens policiais, e a Promotoria é obrigada a processar por isso. Inclusive policiais recebem por cumprir as prioridades definidas exclusivamente por policiais e, em razão disso, temos muitas prisões por diminutas quantidades de drogas, até 0,2 gramas, como se fossem traficantes, pois prisão de traficante, independentemente da quantidade e da prova (basta a palavra dos policiais) dá pontuação para folga e promoção.
No Brasil, em torno apenas de 10% dos B.O.s policiais tornam-se inquéritos policiais, ou seja, 90% somem e ficam sem publicação nos Diários Oficiais. No caso de decisões do Ministério Público e Judiciário, elas são publicadas até no Diário Oficial e ficam disponíveis nos sites institucionais. No caso da polícia, não. E para não ter que remeter ao fórum, usa-se a estratégia de não instaurar inquérito policial, pois o arcaico P prevê que apenas inquéritos sejam enviados ao fórum. Assim, criou-se a figura de “diligência preliminar” (cada estado tem uma nomenclatura), que não são remetidas ao fórum e são arquivadas com despachos que não são publicados e nem acompanhados pelos sites.
Todos os países do mundo discutem medidas para implementar medidas para triagem para ajuizamento da ação penal, menos o Brasil. Apenas repetimos mitos e dogmas, sem analisar outras nações, como se vivêssemos em uma ilha.
Outros alegam que o que funciona em outros países não funciona aqui, mas praticamente tudo que temos de teoria jurídica no Brasil foi copiado de outros países, como o P (copiada do Código Rocco Italiano na década de 40) e as doutrinas garantistas (italiana), funcionalismo e finalismo (alemães). Ou seja, criamos muito pouco e praticamente copiamos tudo sem saber ou sem refletir. É preciso que com a insignificância processual e oportunidade da ação penal pública haja um salto de eficiência com redução de processos (o que muitos temem pela redução do mercado de trabalho), enquanto outros alegam risco de aumentar a criminalidade, embora isso não tenha ocorrido em nenhum país. E há pesquisa sobre isso na minha tese de doutorado na PUC-SP, na qual mostro que uma Promotoria funcionalista e com menor custo consegue maior eficiência e resultados que uma Promotoria que atua com visão finalista.
Como curiosidade, destaca-se que uma das poucas teorias desenvolvidas no Brasil, a conhecida Teoria Tridimensional do Direito, do estudioso Miguel Reale, tem viés funcionalista e axiológicos nos quais o funcionalismo penal também é alicerçado.
Portanto, a insignificância processual é uma doutrina que já prevalece no mundo, menos no Brasil, em que motivadamente deixa-se de ajuizar ações penais em razão de prioridades como desinteresse da vítima em crimes de furto, baixo resultado, provável prescrição (curiosamente temos até súmula de tribunal vedando prescrição antecipada, mas nos Congressos acusam Ministério Público de ser punitivista), necessidade de priorizar pauta de audiências e serviço para crimes mais graves como homicídios, estupros e outros, conforme prioridade local. E essa decisão de arquivamento não provoca prejuízo algum, pois pode ser desarquivado, pois não entrou no mérito, e vítima pode discordar e recorrer ao PGJ, conforme alteração legislativa recente.
Reforçando, não é preciso haver lei para autorizar prioridades, pois inerente ao poder político estatal. O que pode haver é lei para limitar o poder nesse caso.
BASILICO, Ricardo Angel: Manual de Derecho Procesal Penal; Jorge Luis Villada; Ciudad Autônoma de Buenos Aires, Damian Seras. 2021
[1]DELMAS-MARTY, Mireille (org.). Processos penais da Europa. Tradução Fauzi Hassan Choukr e Ana Claúdia Ferigato Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005
MELO, André Luis Alves de. A inconstitucionalidade da obrigatoriedade da ação penal pública. Releitura dos arts 24 e 28 do P e art. 100, §1º do em face da não recepção pela Constituição de 1988.Tese de Doutorado na PUC SP. São Paulo.2016
CALLEGARI, André Luís et al. Direito penal e funcionalismo; coordenação André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Tradução André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli e Lúcia Kalil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005
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