A inversão da cláusula penal nos contratos de adesão imobiliários: análise do Tema 971 do STJ
23 de fevereiro de 2025, 6h06
A decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no Tema 971 trouxe significativa repercussão para os contratos de adesão celebrados entre adquirentes e construtoras/incorporadoras. A discussão central residiu na possibilidade de inversão da cláusula penal originalmente prevista apenas para o inadimplemento do comprador, aplicando-a também contra o vendedor em caso de descumprimento contratual, notadamente no atraso da entrega do imóvel. Essa decisão visa garantir maior isonomia nas relações contratuais e evitar situações de desvantagem excessiva para uma das partes, especialmente o consumidor.

A 2ª Seção do STJ, ao julgar o REsp 1.631.485/DF, estabeleceu o seguinte entendimento: “No contrato de adesão firmado entre o comprador e a construtora/incorporadora, havendo previsão de cláusula penal apenas para o inadimplemento do adquirente, deverá ela ser considerada para a fixação da indenização pelo inadimplemento do vendedor. As obrigações heterogêneas (obrigações de fazer e de dar) serão convertidas em dinheiro, por arbitramento judicial”. Essa decisão visou garantir o equilíbrio contratual e impedir que o consumidor ficasse desprotegido diante da previsão de penalidades unilaterais, o que poderia configurar cláusula abusiva nos termos do artigo 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
O caso concreto analisado pelo STJ demonstrou o impacto significativo do atraso na entrega de imóveis na vida dos consumidores. No processo em questão, o recorrente adquiriu um imóvel na planta com promessa de entrega em setembro de 2013, acrescido de prazo de tolerância de 180 dias. No entanto, a unidade foi entregue apenas em janeiro de 2015. Durante esse período, o comprador sofreu prejuízos financeiros e emocionais, além de enfrentar dificuldades na obtenção de financiamento, pois a unidade ainda não possuía a averbação do “habite-se” em sua matrícula.
Além do impacto econômico, há o aspecto psicológico e social do atraso na entrega dos imóveis. Muitos consumidores planejam sua mudança com base na data contratual, vendem imóveis antigos, encerram contratos de aluguel e organizam suas finanças para cumprir as parcelas do financiamento imobiliário. Quando ocorre o atraso na entrega, essas pessoas se veem obrigadas a assumir despesas não previstas, gerando instabilidade financeira e emocional. O entendimento firmado pelo STJ busca minimizar esses prejuízos, estabelecendo uma compensação justa para os adquirentes que enfrentam essas dificuldades.
A jurisprudência aponta que a inversão da cláusula penal é necessária para equilibrar a relação contratual. Caso contrário, a incorporadora ficaria livre para descumprir o prazo de entrega sem sofrer qualquer penalização, enquanto o consumidor enfrentaria multas elevadas caso atrasasse suas parcelas. Esse descomo fere os princípios da equidade e da boa-fé objetiva, amplamente reconhecidos no ordenamento jurídico brasileiro e aplicáveis às relações de consumo.
Perspectiva da doutrina
A inversão da cláusula penal ganhou relevância jurídica e doutrinária, levantando posicionamentos distintos. O professor José Fernando Simão argumentou que a cláusula penal tem natureza compensatória, pois as partes, ao estipulá-la, prefixam os danos sem necessidade de prova posterior. Segundo ele: “As partes abrem mão de prova do prejuízo e prefixam no contrato os seus danos”. Assim, a inversão seria uma simples adequação da penalidade já prevista, garantindo isonomia entre as partes
Contudo, essa visão não é unânime. Sylvio Capanema sustentou que a inversão da cláusula penal seria indevida por dois motivos. O primeiro diz respeito à diferença na natureza das obrigações: o adquirente tem uma obrigação pecuniária (pagar prestações), enquanto o incorporador tem uma obrigação de fazer (construir e entregar o imóvel). O segundo argumento se baseia na autonomia privada dos contratos, pois permitir ao Judiciário inverter uma cláusula penal significaria impor uma penalidade que não foi originalmente pactuada entre as partes.
A posição doutrinária sobre a responsabilidade do incorporador também é relevante para essa análise. Caio Mário da Silva Pereira, em sua obra “Condomínio e Incorporações”, destaca que o incorporador atua em nome próprio e deve arcar com os riscos do empreendimento. Ele afirma: “Na sua qualidade de incorporador age in nomine suo e por direito próprio. Deve, pois, ar, como o fundador da Incorporadora/Construtora, os riscos da sua iniciativa e as responsabilidades do andamento do plano. Tanto maior é a responsabilidade, e tanto mais pessoal é esse risco, quanto é certo que seu negócio de incorporação é lucrativo. Conseguintemente, há de ar os ônus do empreendimento e deve responder civilmente com seus bens, e ainda com a sua pessoa.” Esse entendimento reforça a necessidade de estabelecer penalidades também para o incorporador quando há inadimplência na entrega da obra.
Decisão representa avanço
A Lei 13.786/2018, conhecida como “Lei do Distrato”, introduziu novas diretrizes para a rescisão de contratos de compra e venda de imóveis na planta, estabelecendo regras para retenção de valores e prazos para devolução. No entanto, a legislação não abordou diretamente a questão da inversão da cláusula penal, o que reforça a importância da jurisprudência consolidada pelo Tema 971 do STJ na proteção do consumidor.
A decisão representa um avanço na busca pelo equilíbrio nas relações de consumo, mas sua aplicação concreta ainda pode gerar desafios. Cada caso concreto exige análise individualizada para verificar se a penalidade imposta ao comprador pode ser aplicada ao incorporador, de forma compatível com o equilíbrio contratual. Além disso, a resistência do setor imobiliário e a divergência doutrinária indicam que o debate sobre a inversão da cláusula penal pode continuar evoluindo, seja por meio de novas decisões judiciais, seja por eventual regulamentação legislativa.
Dessa forma, o Tema 971 do STJ reforça a busca por equidade nos contratos de adesão do setor imobiliário, estabelecendo um novo paradigma na interpretação das cláusulas penais. O monitoramento contínuo da jurisprudência será fundamental para acompanhar seus desdobramentos e garantir a efetividade das normas protetivas aos consumidores.
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