Bloqueio e penhora de conta salário: grave violação dos direitos humanos
27 de fevereiro de 2025, 6h30
Está em curso no Brasil um processo de regressividade dos direitos humanos em vários âmbitos jurídicos. Direitos fundamentais protegidos pela Constituição, por leis e por normas internacionais estão sendo violados por meio de medidas legislativas aprovadas por maiorias conservadoras do Congresso. Na mesma linha, exceções abertas e adotadas por segmentos do Poder Judiciário estão desvirtuando e deformando a proteção aos direitos humanos, sobretudo das pessoas em situação mais vulnerável. Como agravante, há um movimento de naturalização dessa regressividade, com argumentos que tentam mostrar a sua relevância para a sociedade. Um exemplo claro dessa distorção é a jurisprudência recente sobre bloqueio e penhora de conta salário.

Embora a Constituição proteja a dignidade da pessoa humana, sendo esse um direito fundamental, e não obstante o Código de Processo Civil (C) não permita o bloqueio e a penhora de conta salário (com expressas exceções dadas pelo artigo 833 do C), cada vez mais credores e seus advogados utilizam a “estratégia de estrangulamento” de devedores, por meio de bloqueio de contas bancárias que não distinguem se a conta é ou não conta salário.
E esse modus operandi tem sido adotado com a anuência de juízes e juízas, em muitos casos com a aparência de conluio entre advogado do credor e magistrado, em nome da obtenção do crédito cobrado (cujo valor, em geral, é escandalosamente superior à dívida original) muitas vezes sem permitir a chance de um juízo de conciliação para tentar um acordo justo e equitativo. Com tal estratégia violadora dos direitos humanos, mesmo devedores que se dispõem a pagar uma parte de sua dívida ou entregar parte de seu patrimônio são compelidos a um acordo imposto pelo credor ou são expropriados compulsoriamente de parte de seu salário por decisão judicial.
Cabe reconhecer — e denunciar — que em diversas situações, o bloqueio da conta salário induz os devedores a uma situação cruel, desumana e degradante, tanto pela impossibilidade de pagar suas contas (aluguel, condomínio, plano de saúde, mensalidade de escola etc.) e até de comprar alimentos, criando enormes dificuldades para a subsistência da família, gerando humilhação e agravando a condição financeira dos devedores pela incidência de multas e juros em cascata, quanto pelo cerceamento ilegal de sua liberdade pela impossibilidade de utilizar seus recursos legítimos, obtidos pelo trabalho, configurando escancarada violação da dignidade humana.
Além disso, em muitos casos, o bloqueio de conta salário e sua penhora produz um efeito equiparado à tortura psicológica, conduta que é vedada pela CF (artigo 5º, III) e pela Convenção sobre Tortura da ONU (1984) e tipificada como crime contra a humanidade pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (artigo 7º, 1, f), acordos internacionais aos quais o Brasil se comprometeu a respeitar e adotar.
Portanto, quem defende um enfoque de direitos humanos na prestação jurisdicional não pode concordar e aceitar o argumento de que o direito à propriedade deve prevalecer sobre a dignidade humana. E, cabe lembrar, que em casos de antinomia de normas de mesma natureza e hierarquia, o critério de prevalência deve ser o princípio pro homine, que garante a norma mais favorável de proteção à pessoa humana. Esse é o critério que tem sido adotado pelos principiais tribunais internacionais de direitos humanos no mundo, entre eles a Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja competência é reconhecida pelo Brasil, desde 1998.
Via perigosa
Nesse sentido, as recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça que ampliam as hipóteses de bloqueio e penhora do salário são uma perigosa via de redução da força protetiva da CF e da vigência das Convenções Internacionais dos Direitos Humanos a que o Brasil está vinculado e obrigado a cumprir. Em muitos casos, o argumento utilizado para justificar essas novas exceções, chamadas de “flexibilização”, visa apenas proteger o direito do credor de receber o que lhe é supostamente devido, e essa posição é amparada por um mal disfarçado discurso de efetividade do processo.
Porém, é preciso que fique bem claro: bloquear conta salário e autorizar a sua penhora para além das exceções legais são atentados a um direito fundamental e estimulam um sistema jurídico com enfoque patrimonialista, em que a dignidade das pessoas vale muito menos do que o crédito. Seus defensores estão contribuindo para erodir um dos pilares de proteção aos direitos humanos no Brasil.
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