'Balbúrdia' e controle de emendas parlamentares inscritas no piso em saúde
7 de janeiro de 2025, 8h00
No último dia do ano ado, o ministro Flávio Dino deferiu a execução orçamentária das emendas parlamentares de comissão que fossem estritamente necessárias à integralização do piso federal em saúde [1]. Com isso, foi mantida a decretação de invalidade, prolatada em 29 de dezembro nos autos da ADPF 854, em relação às demais emendas de comissão.
Aludida decisão monocrática reputou nula a deliberação empreendida única e tão somente por líderes partidários, ao invés dos colegiados das respectivas comissões. Isso porque “o devido processo legal orçamentário, de matriz constitucional, não comporta a ‘invenção‘ de tipos de emendas sem e normativo”, havendo os riscos de que “a legítima celebração de pactos políticos entre as forças partidárias” ultrae a “fronteira [d]aquilo que as leis autorizam” e de o seu “uso [se] degenerar em abuso”.
Vale lembrar que as emendas de relator (RP 9) foram declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal em 19 de dezembro de 2022, precisamente porque os limites normativos dessa modalidade foram ignorados e/ou falseados.
Desde então, os congressistas redirecionaram o fluxo das suas intervenções no orçamento federal para emendas individuais (RP 6), de bancada estadual (RP 7) e de comissão (RP 8), sendo as duas primeiras de natureza impositiva. Tal movimento, porém, não ocorreu de forma plenamente consentânea com o que fora decidido pela Corte Constitucional brasileira nos autos da ADPF 854.
Apesar de haver distintas modalidades de emendas parlamentares, persiste a uniforme tendência de alocação opaca, fragmentada e arbitrária dos recursos públicos.

Daí se explica o alerta dado pelo ministro Flávio Dino de que “as “emendas de comissão”, assim como as “de bancada”, têm escopo normativo voltado para ações estruturantes, e não para mera reprodução – com outro nome – das emendas individuais”.
Dois anos se aram desde o julgamento do chamado “Orçamento Secreto” pelo plenário do STF, sem que tenha havido efetiva correção de rumos. Eis o contexto em que ministro que atualmente relata a matéria foi instado a proferir diversas decisões – ao longo do segundo semestre de 2024 – que visaram conter a persistência das fragilidades e irregularidades no regime jurídico das emendas parlamentares.
Nos autos da ADI 7.697, foi sustada a execução até mesmo das emendas parlamentares impositivas, enquanto não houvesse a edição de um novo marco normativo que, no mínimo, resguardasse:
“a) Existência e apresentação prévia de plano de trabalho, a ser aprovado pela autoridade istrativa competente, verificando a compatibilidade do objeto com a finalidade da ação orçamentária, a consonância do objeto com o programa do órgão executor, a proporcionalidade do valor indicado e do cronograma de execução;
b) Compatibilidade com a lei de diretrizes orçamentárias e com o plano plurianual;
c) Efetiva entrega de bens e serviços à sociedade, com eficiência, conforme planejamento e demonstração objetiva, implicando um poder-dever da autoridade istrativa acerca da análise de mérito;
d) Cumprimento de regras de transparência e rastreabilidade que permitam o controle social do gasto público, com a identificação de origem exata da emenda parlamentar e destino das verbas, da fase inicial de votação até a execução do orçamento;
e) Obediência a todos os dispositivos constitucionais e legais que estabeleçam metas fiscais ou limites de despesas.”
A Lei Complementar 210, de 25 de novembro de 2024, tentou delimitar o regime jurídico das emendas parlamentares, o que permitiu que fosse retomada a sua execução no início de dezembro do ano ado.
Todavia, pouco tempo depois, em 23 de dezembro, o ministro Flávio Dino suspendeu o pagamento de 5.449 emendas de comissão (aproximadamente R$ 4,2 bilhões), além de haver determinado a abertura de investigação pela Polícia Federal. Como se pode ler aqui, houve o claro diagnóstico de descumprimento pelo Congresso da recente norma por ele mesmo aprovada:
“Os recentes “cortes de gastos” deliberados pelos Poderes Executivo e Legislativo tornam ainda mais paradoxal que se verifique a persistente inobservância de deveres constitucionais e legais – aprovados pelo Congresso Nacional – quanto à transparência, rastreabilidade e eficiência na aplicação de BILHÕES de reais. Realço, mais uma vez, que o devido processo legal orçamentário tem um objetivo maior, conforme a Carta Magna: “a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade” (art. 165, § 10, da CF).
Não é compatível com a ordem constitucional, notadamente com os princípios da istração Pública e das Finanças Públicas, a continuidade desse ciclo de (i) denúncias, nas tribunas das Casas do Congresso Nacional e nos meios de comunicação, acerca de obras malfeitas; (ii) desvios de verbas identificados em auditorias dos Tribunais de Contas e das Controladorias; (iii) malas de dinheiro sendo apreendidas em aviões, cofres, armários ou jogadas por janelas, em face de seguidas operações policiais e do Ministério Público. Tamanha degradação institucional constitui um inaceitável quadro de inconstitucionalidades em série, demandando a perseverante atuação do Supremo Tribunal Federal.” (grifos em negrito e sublinhado conforme o original)
Do ponto de vista probatório, o desvirtuamento das emendas de comissão se verificou com a ausência das atas de aprovação pelas respectivas instâncias colegiadas e a falseada substituição dos parlamentares das comissões pelos líderes partidários na deliberação sobre o destino de tais recursos:
“não houve a juntada das Atas aprovando as indicações (ou especificações) dos Senhores Líderes, o que conduz à mesma contradição visceral: como empenhar uma “emenda de comissão” cuja indicação do beneficiário e o valor a ser a ele reado não foram aprovados pela Comissão?
[…] Esse controle pelo Colegiado Parlamentar não é um detalhe de menor importância, na medida em que todos os Senhores Senadores são iguais no que se refere ao emendamento no processo legislativo orçamentário. Como já mencionado em decisões anteriores, é incompatível com a Constituição Federal a existência de “voto de liderança” (ou algo similar), como havia preteritamente. Expliquei na decisão do dia 02/12/2024, referendada, à unanimidade, pelo Plenário do STF, que “constituiria uma incompatibilidade constitucional e semântica que a ‘emenda de comissão’ fosse transformada em ‘emenda de líder partidário’” (e-doc. 1.006 da APF 854). Em seguida, em decisão de 09/12/2024, esclareci que “não podem existir Deputados ou Senadores com mais prerrogativas legislativas (parlamentares de 1ª classe) e outros com menos (parlamentares de 2ª classe)” (e-doc. 1.033 da ADPF 854).
Quanto à suposta controvérsia acerca da incidência da Lei Complementar nº. 210/2024, o legislador poderia ter previsto uma vacatio legis ou mesmo fixado normas de transição. Contudo, essas não foram as opções do Congresso Nacional, à vista do teor da lei citada. Não obstante, mesmo que fosse itido o afastamento da Lei Complementar nº. 210/2024, ainda haveria os empeços derivados da Resolução nº. 001/2006, emanada do Congresso Nacional, e em vigor há décadas.”
As diversas decisões monocráticas denotam o esforço hercúleo do ministro Flávio Dino em exigir o cumprimento das balizas dadas pelo plenário da corte, sobretudo para resguardar transparência, aderência ao planejamento setorial das políticas públicas e rastreabilidade dos recursos públicos executados sob a condição de emenda parlamentar. Há, porém, um certo tom de desabafo no diagnóstico, feito em 31/12/2024, de que a “balbúrdia orçamentária” tende a se perenizar na ausência de um planejamento cogente (disponível aqui):
“Decisões deste STF, ao longo do 2º semestre de 2024, visam a que tenhamos uma melhor alocação de recursos, seja pelo aspecto da eficiência, seja no tocante à transparência e à rastreabilidade. Porém, a dimensão do planejamento se circunscreve aos Poderes Políticos (Executivo e Legislativo), cabendo a esta Corte lembrar que sem ele (o planejamento) não existe o atendimento aos mandamentos constitucionais da eficiência (art. 37, caput, da CF) e da economicidade (art. 70, caput, da CF). E sem planejamento, conjugado com adequada vontade política e istrativa, a balbúrdia orçamentária – violadora da Constituição Federal – não terá fim.”
De fato, o regime das emendas parlamentares ao orçamento federal, em grande medida, assemelha-se a uma espécie de execução privada do dinheiro público, o qual tende a ser replicado também nos estados, DF e municípios por meio de efeito contágio nas respectivas Casas Legislativas. Tal “balbúrdia” é agravada pela sua concentração majoritária na área da saúde, em função do cômputo no respectivo piso de metade das emendas individuais impositivas, ao que são acrescidas emendas de bancada e de comissão.
Emendas parlamentares computadas no piso federal em saúde
Em 2024, segundo dados do Siga Brasil Emendas (portal mantido pelo Senado Federal disponível aqui), foram executadas 23.980 emendas, que corresponderam a R$ 39,69 bilhões (em valores pagos e restos a pagar pagos no exercício). Na função saúde, foram 6.712 emendas, onde foram alocados R$ 22,9 bilhões (pago+RP pago). Ou seja, sozinha, a política pública de saúde recebeu cerca de 60% de todas as emendas parlamentares do ano ado.
Reportagens da revista Piauí relatam indícios de corrupção que envolvem desvios de 12% (como noticiado aqui) e uma suposta “volta” de até 30% dos recursos públicos transferidos por meio de emendas (como se pode ler aqui):
“Uma parte das verbas — que em alguns casos pode chegar a até 30% do total dos recursos enviados à prefeitura — vira o que os corretores de propina em atividade no Congresso Nacional chamam de ‘volta. A ‘volta’ é a quantia de dinheiro que a prefeitura devolve ao parlamentar que assinou a emenda beneficiando o município. É uma propina paga com verba da saúde”.
Em um raciocínio estimativo, o risco de perdas para o Sistema Único de Saúde (SUS), caso venham a se confirmar as hipóteses de desvio no manejo de emendas parlamentares, oscila entre R$ 3 a R$ 7 bilhões ao ano, a depender do percentual aplicado para tanto (12 ou 30%). À corrupção se soma a má gestão no acúmulo de obras paradas e inconclusas, que, neste início de 2025, chegam a quase 2,8 mil na área da saúde:
“Um ano após o governo Lula anunciar que priorizaria a retomada de obras paradas [em dezembro de 2023, havia 5.573 empreendimentos não finalizados na Saúde, a maioria deles unidades básicas (UBS)], o país ainda tem 2.762 intervenções na Saúde com recursos federais inacabadas ou paralisadas, conforme dados do Ministério da Saúde.
[…] Integrante da Comissão de Saúde da Câmara, o deputado federal Célio Silveira (MDB-GO) afirma que o Congresso e a comissão, após retorno do recesso, precisam discutir a situação das obras inacabadas e canceladas na área da saúde de forma mais aprofundada.
— É um grande prejuízo ao país. As emendas de comissão poderiam ser direcionadas a essas obras inacabadas, por exemplo. Seria uma boa solução. A pior coisa que existe para uma nação é começar uma obra e não acabar. Isso gera problema para o gestor.”
O ime das emendas parlamentares é grave. Mas, em especial, o desvio e a má gestão dos recursos relativos às emendas congressuais, cada vez mais contabilizados no piso em saúde, implicam – direta ou indiretamente – milhares de mortes. Filas de espera por cirurgias eletivas, desabastecimento de vacinas e medicamentos, falta de ações tempestivas de prevenção e promoção da saúde, precariedade de atendimento ambulatorial e hospitalar, bem como obras paradas no SUS, entre outros problemas, também são, ao fim e ao cabo, uma escolha orçamentária.
Nesse contexto, não basta que haja apenas uma isolada muralha de contenção, por mais perseverante e constitucionalmente destacada ela seja. Merece nosso reconhecimento o fato de que o Ministro Flávio Dino tem pautado um colossal e imprescindível debate sobre o “devido processo legal orçamentário” aderente ao dever de “efetiva entrega de bens e serviços à sociedade” (art. 165, §10 da CF).
Porém, é preciso que todos nós nos somemos a ele e às demais instâncias competentes de controle, para que seja factível, de fato, promover o exame de conformidade de tais emendas à luz do nosso ordenamento pátrio. É preciso conter a “degradação institucional” decorrente de “inaceitável quadro de inconstitucionalidades em série” que a “balbúrdia orçamentária” das emendas parlamentares tem ensejado nas finanças públicas do país.
Um ponto incontornável para tanto é o estrito cumprimento do § 2º do artigo 36 da Lei Orgânica do SUS (Lei 8.080/1990), segundo o qual é vedada a transferência de recursos para o financiamento de ações NÃO previstas nos instrumentos normativos de planejamento sanitário, excetuadas as situações emergenciais ou de calamidade pública decretadas especificamente na área de saúde. Até porque, com a devida vênia por reiterar a citação da forte síntese do ministro Flávio Dino, “sem planejamento, conjugado com adequada vontade política e istrativa, a balbúrdia orçamentária – violadora da Constituição Federal – não terá fim.”
Em uma sociedade que não planeja ou planeja de forma meramente protocolar, a aceitação de qualquer resultado entregue pela ação governamental (incluídas a ineficiência e a corrupção) acaba sendo uma decorrência lógica da sua própria falta de concepção acerca do futuro que almeja construir coletivamente.
P.S. Como resolução de início de ano, comprometo-me a voltar ao regime jurídico das emendas parlamentares nas próximas colunas, para analisar detidamente a LC 210/2024 à luz, em particular, da legislação sanitária e das regras relativas ao piso em ações e serviços públicos de saúde. Como tais emendas são manejadas opacamente por entidades do terceiro setor e como sua pulverização compromete o arranjo constitucional do SUS são agendas de pesquisa e trilhas de auditoria em aberto.
[1] O dispositivo da decisão monocrática em comento (disponível aqui) é o seguinte: “Com esses fundamentos, à vista da estatura dos deveres constitucionais atinentes aos gastos mínimos com saúde, acolho, em parte, o pedido do Poder Executivo, desde que:
a) as “emendas de comissão” (ou outro tipo de emenda que eventualmente seja necessário) já empenhadas ou a serem empenhadas alcancem apenas e tão somente o valor necessário à consecução do piso constitucional da saúde;
b) no que se refere à Política de Saúde, sejam empenhadas ou mantidos os empenhos de “emendas de comissão” (ou outro tipo de emenda que eventualmente seja necessário) de ambas as Casas Parlamentares, se possível na proporção usual para tal partilha entre Câmara e Senado, conforme Ofício a ser enviado pelo Presidente do Congresso Nacional, em caráter de urgência, mediante entendimento técnico com o Ministério da Saúde;
c) ocorra a ratificação das emendas (incluindo indicações) nas Comissões temáticas sobre Saúde do Senado e da Câmara, até o dia 31 de março de 2025, sob pena de anulação imediata e automática. Até tal aprovação, não haverá nenhum ato subsequente de execução, que fica expressamente bloqueada a partir de 31/03/2025, caso não atendidas as condições elencadas neste item.”
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