Reserva de jurisdição, legalidade e proporcionalidade: os RIFs sem autorização judicial
7 de janeiro de 2025, 15h14
A proteção à intimidade, à vida privada e ao sigilo bancário e fiscal está profundamente arraigada nos valores do Estado democrático de Direito, constituindo expressão da dignidade humana e do devido processo legal. Esses direitos, assegurados pelos artigos 5º, X, XII, LIV e LV, da Constituição, não apenas garantem a liberdade individual, mas sustentam a confiança do indivíduo nas instituições estatais e no sistema de justiça. Em razão disso, qualquer mitigação dessas garantias deve observar o princípio da reserva de jurisdição.
No entanto, o avanço das tecnologias e a ampliação dos mecanismos de investigação trazem grandes desafios: como equilibrar a eficiência investigativa com o respeito aos direitos fundamentais, sem desnaturar a presunção de inocência? A resposta a por um controle judicial rigoroso, pela observância do contraditório — ainda que diferido, nos casos em que a investigação requer sigilo — e por práticas que respeitem os limites impostos pela legalidade, pela proporcionalidade e pela proteção da intimidade. Somente assim é possível manter a legitimidade do sistema penal.
Casos recentes envolvendo o uso de relatórios de inteligência financeira (RIFs) sem autorização judicial têm suscitado importantes reflexões no meio jurídico. O julgamento do HC 943.710, pelo Superior Tribunal de Justiça, destacou os riscos de violações às garantias constitucionais quando procedimentos investigativos ultraam os limites da legalidade e ignoram a necessidade de controle judicial prévio. Esse debate é especialmente relevante quando se considera o impacto de práticas abusivas na legitimidade do processo penal, bem como a possível contaminação de provas decorrentes (teoria dos frutos da árvore envenenada), nos termos do artigo 157 do Código de Processo Penal.
A ilegalidade da solicitação de RIFs sem autorização judicial
O princípio da reserva de jurisdição não é simples formalidade burocrática: trata-se de um dos pilares do Estado democrático de direito, concebido para proteger direitos fundamentais contra eventuais abusos do poder estatal. Qualquer intervenção em direitos como a intimidade, à vida privada e ao sigilo bancário e fiscal deve ser precedida de autorização judicial devidamente fundamentada, observando o devido processo legal e o contraditório.
A prática de requisitar diretamente RIFs ao Coaf por autoridades policiais, sem supervisão judicial, subverte esse princípio e ameaça a integridade do processo penal. Em decisões como o RHC 83.233, o RHC 203.373, o RHC 203.578 e o HC 943.710, o Superior Tribunal de Justiça tem enfatizado que a requisição de RIFs sem autorização judicial compromete a legalidade das provas obtidas e viola frontalmente a reserva de jurisdição. O tribunal, nesse sentido, determina que dados obtidos de forma ilícita sejam excluídos, aplicando-se a teoria dos frutos da árvore envenenada.
Tal entendimento não decorre apenas de um formalismo processual, mas da essência do devido processo legal. O controle judicial é indispensável para garantir a estrita necessidade da medida. Ao ignorar esse controle, a autoridade estatal não apenas viola direitos fundamentais, mas também acarreta a invalidação das próprias provas coletadas, gerando insegurança jurídica e frustrando a efetividade do processo penal.
Autores como Aury Lopes Jr. [1], Eugênio Pacelli [2] e Geraldo Prado [3] são unânimes ao sustentar que a ausência de prévia e fundamentada análise judicial coloca em risco a imparcialidade do processo e o equilíbrio entre direitos individuais e a eficiência investigativa, desaguando em nulidades que podem prejudicar a própria persecução penal. Sob o prisma do sistema acusatório, a colheita de provas sem a supervisão de um juiz imparcial desequilibra a paridade de armas, lesionando a presunção de inocência e o direito de defesa.

Além disso, a reserva de jurisdição relaciona-se intrinsecamente à separação de poderes, exigindo que medidas restritivas de direitos sejam submetidas ao crivo de um poder estatal imparcial (o Judiciário), de modo a proteger a dignidade humana e prevenir abusos. Em suma, a obrigatoriedade de autorização judicial para a coleta de dados sensíveis não se resume a salvaguardar garantias individuais: reflete o compromisso do Estado com a legitimidade e a segurança jurídica, reforçando a confiança do cidadão no processo penal.
A ampliação indevida do escopo investigativo
A ampliação indevida do escopo investigativo representa uma das mais graves afrontas aos princípios que regem o processo penal em um Estado democrático de Direito. Aquilo que, inicialmente, se apresenta como uma investigação dirigida a um alvo específico, muitas vezes se converte em uma devassa generalizada, atingindo indivíduos ou entidades sem relação direta com os fatos apurados, violando, dentre outros, o direito à privacidade e a dignidade.
A utilização de ferramentas tecnológicas, especialmente em análise de big data, exacerba esse problema, pois a coleta massiva e indiscriminada de informações financeiras viola o princípio da proporcionalidade em suas três vertentes: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Ainda que se possa argumentar que tais técnicas sejam úteis no combate ao crime, é imprescindível que seja demonstrada a necessidade e a adequação da medida em cada caso, o que pressupõe controle judicial prévio.
O Tema 990 do Supremo Tribunal Federal estabelece parâmetros objetivos para o compartilhamento de dados sigilosos. Da mesma forma, no julgamento do HC 943.710 pelo Superior Tribunal de Justiça, restou claro que a ausência de supervisão judicial e de delimitação de alvos torna as provas obtidas ilícitas, contaminando todo o processo. Tais precedentes reforçam que a legitimidade das investigações depende da adoção de limites claros e de um juízo prévio de necessidade, sob pena de se transformar a persecução penal em mecanismo de invasão desproporcional de direitos fundamentais.
A experiência prática mostra que dados indevidamente obtidos são utilizados, por vezes, para fundamentar medidas cautelares de busca e apreensão de natureza genérica, que acabam abrangendo indivíduos sem conexão com a apuração. Essa prática, além de afrontar o artigo 157 do Código de Processo Penal (inissibilidade de provas ilícitas), pode alimentar a desconfiança social em relação à justiça penal, minando a confiança nas instituições do Estado.
Fishing expedition: a busca indiscriminada de provas
A prática conhecida como fishing expedition — caracterizada pela busca genérica e indiscriminada de informações, sem delimitação de alvos ou objetivos específicos — constitui uma das violações mais explícitas aos princípios reitores do processo penal em um regime democrático. Sob a ótica do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, tal prática é incompatível com a racionalidade que se espera de um sistema acusatório, pois subverte o ideal de “investigação dirigida” e compromete a legitimidade das provas coletadas.
No julgamento do RHC 203.373, o Superior Tribunal de Justiça sublinhou que a ausência de limites claros na coleta de dados compromete a legitimidade do processo investigativo, pois viola a presunção de inocência ao permitir a reunião de provas sem qualquer fundamento específico. Nesses casos, a autoridade investigante se vale de uma espécie de “rede de pesca” lançada de forma arbitrária, angariando provas indefinidas e alcançando pessoas que, muitas vezes, não guardam relação com os fatos apurados. Essa conduta fere de modo frontal o devido processo legal, uma vez que afasta a necessidade de existência de um justo motivo (justa causa) para cada ato restritivo de direitos, e tem levado a anulações de investigações brasileiras por extrapolarem os limites constitucionais — dando origem à chamada “árvore envenenada”, de cujos frutos contaminados não se pode extrair validade probatória.
Doutrinadores nacionais e estrangeiros reforçam essas críticas. Mirjan Damaška [4] e Herbert Packer [5], no plano internacional, e Aury Lopes Jr., Eugênio Pacelli e Geraldo Prado, no cenário brasileiro, destacam que a busca indiscriminada de dados financeiros — sobretudo sem autorização judicial — ameaça a essência do processo penal democrático, que se baseia em uma investigação racional e devidamente limitada. Em tais circunstâncias, o contraditório — ainda que diferido para não frustrar investigações em curso — não é adequadamente assegurado, pois o investigado nem sequer sabe quais dados foram obtidos e com base em que justificativa, aprofundando a assimetria entre acusação e defesa. Isso afronta a paridade de armas, viga-mestra do sistema acusatório.
Como já salientado, essa distorção ganha contornos ainda mais graves quando se consideram as tecnologias de big data e outros recursos de análise massiva, que permitem às autoridades ar grande quantidade de informações, muitas delas irrelevantes ao objeto da investigação. Esse volume de dados, coletados sem critérios claros e sem autorização judicial, culmina em “devassas generalizadas” — o que o Supremo Tribunal Federal, em vários julgamentos, tem buscado coibir sob o fundamento de que o o ilimitado a informações privadas, viola a proporcionalidade e o núcleo essencial dos direitos fundamentais. Além disso, decisões como a proferida no Tema 990 enfatizam a necessidade de delimitação rigorosa do objeto e dos alvos investigativos, evidenciando que a ausência de parâmetros objetivos incorre em abuso estatal.
Ademais, a fishing expedition não se limita a violar a privacidade e a dignidade. Também gera insegurança jurídica, pois sujeita qualquer pessoa a ser alvo de investigação informal e inespecífica, sem a devida fundamentação em indícios razoáveis. Esse panorama esvazia a própria noção de devido processo, pois transforma a investigação em um mecanismo de captura aleatória de fatos, em lugar de focá-la na individualização dos suspeitos que efetivamente tenham ligação com o suposto crime. Em consequência, o processo penal deixa de desempenhar sua função de garantia para se tornar um instrumento de violação massiva de direitos fundamentais.
No aspecto comparado, ordenamentos jurídicos como o dos Estados Unidos têm reconhecido, em decisões da Suprema Corte (v.g., Carpenter v. United States e Riley v. California), que a mera disponibilidade tecnológica para coletar dados não legitima buscas indiscriminadas sem mandado ou autorização judicial. Embora a Quarta Emenda norte-americana trate especificamente de “buscas e apreensões”, seu espírito de proteção contra o arbítrio estatal alinha-se ao que a Constituição brasileira prevê no artigo 5º, X e XII, ao afirmar a inviolabilidade da privacidade e do sigilo de dados. Quando a investigação ignora tais fronteiras, ela viola princípios fundamentais e coloca em risco a própria confiabilidade das instituições.
A fishing expedition é especialmente danosa ao sistema acusatório brasileiro, no qual o juiz deve ser um ator imparcial, garantindo o respeito às regras do jogo processual. Caso o Poder Judiciário se limite a “chancelar” diligências investigativas amplas e genéricas, a reserva de jurisdição converte-se em ato meramente formal, perdendo sua efetividade enquanto barreira protetora dos direitos individuais. Além de prejudicar a credibilidade das provas, essa prática reforça percepções de parcialidade e injustiça, pois sugere que o Estado — em nome do combate ao crime — pode se valer de expedientes inquisitoriais para a colheita de evidências.
Em suma, a fishing expedition desponta como um grave fenômeno de desvio investigativo, corroendo os alicerces do processo penal democrático: compromete a legalidade, a legitimidade e a confiabilidade do sistema acusatório, gerando desequilíbrios estruturais que atentam contra o Estado democrático de direito. Se a eficiência e a celeridade no combate ao crime são valores importantes, não se pode itir que elas se imponham em detrimento dos princípios constitucionais e do próprio núcleo essencial dos direitos fundamentais.
Conclusão
O combate ao crime, embora essencial à manutenção da ordem social, não pode sacrificar garantias fundamentais como o sigilo bancário, a intimidade e a ampla defesa. Práticas como a solicitação de RIFs sem autorização judicial, a ampliação indevida de escopos investigativos e a adoção de fishing expeditions colidem com os alicerces do Estado democrático de Direito, pois subvertem a presunção de inocência, vulneram a ampla defesa e contaminam de ilicitude as provas produzidas.
Nesse cenário, o Poder Judiciário emerge como guardião indispensável dos valores constitucionais. Casos emblemáticos, como o julgamento do HC 943.710 pelo Superior Tribunal de Justiça, comprovam a eficácia do controle judicial para corrigir desvios investigativos e reafirmar os princípios de legalidade e proporcionalidade, inclusive com a anulação de provas obtidas por meios ilegítimos. Tal postura fortalece a legitimidade do processo penal e reforça a confiança social no sistema de justiça.
Para que o processo penal se mantenha íntegro e legítimo, faz-se necessária a interação entre Judiciário, Legislativo e órgãos de controle, visando a regulamentar de forma clara o uso de RIFs e outras ferramentas de inteligência financeira. Essa regulamentação deve enfatizar a obrigatoriedade de supervisão judicial, o respeito à proporcionalidade e a adoção de protocolos transparentes no tratamento de dados pessoais. Simultaneamente, é fundamental capacitar autoridades investigativas para que atuem dentro dos limites constitucionais, evitando o risco de anulações de prova que, em última análise, fragilizam a eficácia penal.
Em uma democracia madura, o combate à criminalidade precisa caminhar lado a lado com a proteção dos direitos fundamentais. Investigações conduzidas com respaldo legal e sob controle judicial promovem a legitimidade dos resultados e fortalecem a imagem do Estado como promotor de justiça e garantidor de direitos. O verdadeiro desafio consiste em assegurar que a busca pela verdade real não se torne sinônimo de arbítrio, mas sim expressão do compromisso inarredável com o devido processo legal e a dignidade da pessoa humana. Somente assim se consolida um sistema de justiça efetivo, confiável e legitimado aos olhos da sociedade, preservando o cerne do Estado democrático de Direito.
[1] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 16. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.
[2] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2021.
[3] PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.
[4] DAMAŠKA, Mirjan. Evidence Law Adrift. New Haven: Yale University Press, 1997.
[5] PACKER, Herbert. The Limits of the Criminal Sanction. Palo Alto: Stanford University Press, 1968.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!