Opinião

Governança corporativa, corrupção e probidade: um diálogo necessário para as estatais brasileiras

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17 de janeiro de 2025, 9h19

Na obra A Caixa-Preta da Governança [1], Sandra Guerra faz profunda análise comportamental de membros dos conselhos de istração com o objetivo de prevenir comportamentos nocivos, aumentar a confiança para a tomada de decisão e aprimorar as práticas de governança corporativa.

Em resposta às reiteradas falhas de governança em escândalos de corrupção no Brasil e no externo, a autora realiza um breve histórico da governança corporativa até as últimas crises corporativas, indicando os comportamentos mais deletérios nos conselhos de istração (como as relações entre conselheiros e gestores, a complexidade do processo decisório e as tensões disfuncionais entre executivos e conselheiros), os cenários de maior preocupação (governança fraca, CEO inadequado, contexto econômico desfavorável, relações com partes interessadas, movimentações societárias, gestão de riscos inadequada, corrupção) e os riscos internos e externos com potencial de maior disrupção para os negócios (como o reputacional, nos casos de fraude, má conduta, conflito de gestão, integridade e segurança de produtos).

Ao final, conclui a autora que, apesar dos avanços e aprimoramentos da governança corporativa, é a dimensão comportamental que interfere na qualidade do processo decisório nas companhias, fato gerador de profundas crises corporativas.

Importa reconhecer, com todos os consectários, que a responsabilidade corporativa dos es (dirigentes e conselheiros) reclama compromisso com a probidade empresarial.

Para corroborar a tendência no plano normativo, registre-se a Lei nº 13.303/2016, que dispõe sobre o estatuto jurídico das empresas estatais, entre as suas normas gerais, impõe a observância  obrigatória de regras de governança corporativa, de transparência e de estruturas, práticas de gestão de riscos e de controle interno, composição da istração e, havendo acionistas, mecanismos para sua proteção.

Corrupção empresarial

De fato, no ambiente de mercado, as possibilidades de atos de fraude e corrupção empresarial se intensificaram com o fenômeno da globalização dos mercados, marcado pelo crescimento do comércio entre os países e dos fluxos de capitais, bem como pelo desenvolvimento do mercado de capitais e da internacionalização de grandes corporações.

Spacca

Com a formação de complexos sistemas de cartéis em licitações e contratos e a realização de negócios superfaturados, com informações assimétricas, abusos do poder dominante, conflitos de interesses e favores lesivos à probidade istrativa, as estruturas de direção, gestão e controle das empresas estatais mostraram-se absolutamente frágeis, ineficientes e ineficazes.

E é neste ambiente de negócios que as companhias atuam na istração de recursos estatais, na promoção de políticas públicas e na prestação de serviços sociais fundamentais, nas áreas de infraestrutura, indústria, saneamento, abastecimento de água e esgotamento sanitário, geração e fornecimento de energia elétrica, extração de recursos naturais e minerais, alimentação e serviços de saúde, bancários e financeiros, com o fim de estimular o desenvolvimento econômico e social, atraírem investimentos e aumentar a riqueza e a qualidade de vida das pessoas.

Há, pois, uma relação inseparável entre Estado e economia [2], inclusive porque o “Estado se torna um fator ativo e influente na economia; se torna uma empresa, uma corporação de negócios; de um corpo político, se torna um corpo econômico” [3] e, paralelamente, “o regime istrativo começa a perder sua unidade” [4]. Nessa vertente, o Estado-istração, em matéria de controle de serviços públicos e regulador das atividades, ainda permanece pouco eficiente, eficaz e efetivo em áreas econômicas de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços públicos.

Controle da gestão e governança das estatais

Para mudar esse panorama de incertezas e de graves desvios de conduta de órgãos controladores e es de empresas estatais, o novo paradigma de governança pública abraça a ideia de que é necessário aperfeiçoar o ambiente regulatório de controle da gestão e governança das estatais para torná-las mais resistentes e assertivas, mediante a incorporação de novas estruturas e mecanismos consistentes de controle, transparência, participação e justificação de processos decisórios a fim de prevenir práticas e condutas abusivas e promover a melhora de performance nos diferentes mercados em que atuam — econômico, concorrencial, monopolista, serviço público.

Dentro dessa conjuntura, as obrigações públicas de governança das empresas estatais, tal como desenhado na Constituição, disciplinado na Lei nº 13.303/2016 e reforçado na Lei nº 12.846/2013 e demais legislações setoriais, devem ser elevadas a um padrão ainda mais rigoroso, em virtude da incidência dos princípios constitucionais, que se somam aos ditames societários do bom [5] e aos interesses sociais, públicos e coletivos, que são mais amplos e complexos do que os interesses das empresas privadas.

Desde o início das transformações do Estado, mas principalmente com a inserção dos princípios da moralidade e da eficiência no caput do artigo 37 da Constituição ao lado de outros preceitos constitucionais estruturantes do direito istrativo e de sustentação do progresso da ética pública e social — do qual é exemplo a probidade na istração —, o conteúdo e a função de normas e institutos jurídico-istrativos assumem maior importância nas pesquisas jurídicas e nas práticas de gestão e governança da istração pública, seja ela de direito público ou de direito privado.

De fato, a relação entre direito e moralidade atravessa gerações e teóricos de diversas vertentes ao longo da história do pensamento jurídico ocidental [6], possuindo grande relevância em virtude das exigências éticas contemporâneas na política, no direito e na economia com reflexos positivos nas instituições públicas e privadas.

Combate à corrupção

A importância do tema é perceptível nas obras de Hans Kelsen [7], Norberto Bobbio [8], Herbert Hart [9] e Ronald Dworkin [10], em artigos e teses recentes e na legislação, desde o constitucionalismo até o atual e sempre renovado sistema de combate à corrupção, com o aperfeiçoamento da legislação e a adoção de um novo (ou atualizado) marco regulatório de governança de empresas estatais.

Com efeito, a promulgação da Lei de Responsabilidade das Pessoas Jurídicas (Lei nº 12.846/2013 — Lei Anticorrupção) e, depois, da Lei de Responsabilidade das Estatais (Lei nº 13.303/2016 — Estatuto Jurídico das Empresas Estatais) podem ser consideradas uma resposta à corrupção, à má gestão e à ineficiência das pessoas jurídicas de direito privado, integrantes da istração pública indireta, decorrentes do aparelhamento político-partidário nos cargos de istração das empresas estatais, e de abusos e interferências na atuação empresarial do Estado na exploração de atividades econômicas e na prestação de serviços públicos.

Por essa razão, o marco regulatório de governança das estatais impõe a observância obrigatória dos deveres de transparência, integridade, participação, eficiência, conformidade, motivação, competitividade, equitatividade, responsabilidade, prestação de contas e sustentabilidade.

Nesse sentido, compete à regulação da governança a prevenção dos riscos de corrupção e interferência de interesses político-partidários com a contenção tempestiva de abusos e a correção de distorções entre os interesses envolvidos, de modo a garantir um ambiente limpo, competitivo e sustentável para a promoção do desenvolvimento econômico e social das companhias, do Estado e da sociedade.

Marco regulatório

Diante desse cenário, é fundamental o aperfeiçoamento e desenvolvimento do marco regulatório instituído pela Lei nº 13.303/2016 [11] para a prevenção (e controle) da corrupção, da má gestão e da ineficiência nas estatais.

Quer dizer, almeja-se a consolidação de uma estrutura de governança de qualidade, direcionada para a implementação das obrigações públicas de governança, de tal sorte a oferecer limitações materiais às práticas corruptas, à má gestão e à ineficiência, com maior independência entre governo e istração, maior integridade e probidade dos gestores e partes interessadas (stakeholders) e maior transparência, com a adoção tempestiva de mecanismos e ferramentas inovadoras, eficientes e racionais de controle e participação, permitindo a integração e a cooperação para a prevenção e o tratamento dos atos de fraude e corrupção nas empresas estatais, de modo a viabilizar processos decisórios mais confiáveis e transparentes.

Nessa linha, importa adicionar ao marco normativo de governança de estatais um modelo robusto de prevenção, controle e responsabilização adequados à relevância das atividades estratégicas e à importância das funções do controlador e dos es em relação aos potenciais abusos políticos e aos riscos de fraude e corrupção nas companhias.

Por fim, permite-se concluir que o novo paradigma de governança exige um elevado padrão de conduta empresarial responsável dos gestores, maior diligência e cuidado no processo de tomada de decisão e ampliação da capacidade de avaliação, fundamentação, julgamento e deliberação proba e ética dos agentes de governança, no intuito de assegurar a fiel observância das regras de governança corporativa e a promoção do direito fundamental à boa istração e governança das estatais.

 


Referências

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas Estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. São Paulo: Forense, 2017.

BRASIL. Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13303.htm>.

DWORKIN, Ronald. Justiça para ouriços. Coimbra: Almedina, 2012.

Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Tradução de: Nelson Boeira.

Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

GUERRA, Sandra. A caixa-preta da governança. 1. ed. Rio de Janeiro: Best Business, 2017.

HART, Herbert. O Conceito de Direito. Pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz. 4. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005. Tradução de: Armindo Ribeiro Mendes.

KELSEN, Hans. Qué es Justicia? Barcelona: Ariel, 1991.

Teoria pura do direito. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1976.

MANNORI, Luca; SORDI, Bernardo. Science of istration and istrative Law. In: CANALE, D.; GROSSI, P.; HOFMANN, H. (Eds.). A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence: a history of the philosophy of law in the civil law world, 1600-1900. v. 9. Dordrecht: Springer, 2009. cap. 6, p. 225-261.

MATOS, Daniel Ortiz; STRECK, Lenio Luiz. Direito e moralidade em Ronald Dworkin: olhares a partir da crítica hermenêutica do direito. In: OLIVEIRA, Elton Somensi de; CORDIOLI, Leandro (Orgs.). Filosofia e Direito: um Diálogo Necessário para a Justiça, vol. 1 (recurso eletrônico). Porto Alegre: Editora Fi, 2018.

ZIMMER, Fabiano Nobre. Teoria da Probidade Empresarial: Governança corporativa e combate à corrupção nas empresas estatais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.

 


[1] GUERRA, Sandra. A caixa-preta da governança. 1. ed. Rio de Janeiro: Best Business, 2017.

[2] Cf. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas Estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. São Paulo: Forense, 2017, p. 29-32, o Estado influencia a economia, sendo que a própria existência do Estado e de outros entes estatais já é um sinal de intervenção na economia, pela regulação, pela tributação, pelo atendimento de necessidades e apoio ao mercado, bem como pela prestação de serviços. Explica o autor que o mercado como instituição e interação permanente do conjunto de atores sociais, é criado, limitado, garantido e fomentado pelo Estado.

[3] MANNORI, Luca; SORDI, Bernardo. Science of istration and istrative Law. In: CANALE, D.; GROSSI, P.; HOFMANN, H. (Eds.). A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence: a history of the philosophy of law in the civil law world, 1600-1900. v. 9. Dordrecht: Springer, 2009. cap. 6, p. 258-259.

[4] Ibidem, p. 258-259.

[5] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Empresas Estatais: o regime jurídico das empresas públicas e sociedades de economia mista. São Paulo: Forense, 2017, p. 304.

[6] MATOS, Daniel Ortiz; STRECK, Lenio Luiz. Direito e moralidade em Ronald Dworkin: olhares a partir da crítica hermenêutica do direito. In: OLIVEIRA, Elton Somensi de; CORDIOLI, Leandro (Orgs.). Filosofia e Direito: um Diálogo Necessário para a Justiça, vol. 1 (recurso eletrônico). Porto Alegre: Editora Fi, 2018, p. 377-404.

[7] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1976; Qué es Justicia? Barcelona: Ariel, 1991.

[8] NOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Apresentação Tércio Sampaio Ferraz Junior. Brasília: Editora Polis e UnB, 1989. Tradução de: Cláudio de Cicco e Maria Celeste dos Santos.

[9] HART, Herbert. O Conceito de Direito. Pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz. 4. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005. Tradução de: Armindo Ribeiro Mendes; Law, Liberty, and Morality. Stanford: Stanford University Press, 1963.

[10] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Tradução de: Nelson Boeira; Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001; Justiça para ouriços. Coimbra: Almedina, 2012.

[11] A Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, também conhecida como Lei de Responsabilidade das Empresas Estatais, originária do Projeto de Lei nº 555/2015 (Senado Federal) e do Projeto de Lei nº 4.918/2016 (Câmara dos Deputados), regulamentou o artigo 173, § 1º da Constituição Federal, com redação determinada pela Emenda Constitucional n. 19, de 4 de junho de 1998, que, por sua vez, foi regulamentada em nível federal pelo Decreto nº 8.945, de 27 de dezembro de 2016.

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