Direito Civil Atual

Fritz Fleiner e a dicotomia Direito Público-Direito Privado

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20 de janeiro de 2025, 10h20

Desde a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), incrementou-se  a dilatação das atribuições do Estado no formato conhecido contemporaneamente. Isso trouxe uma necessária sistematização do Direito istrativo, inclusive devido à legislação efervescente dos períodos de crise e à omnipresença exigida da istração. Nesse cenário, o suíço Fritz Fleiner (Aarau, 1867 – Ascona, 1937) tornou-se reconhecido estudioso de Direito Público na Alemanha.

Docente em Tübingen e Heideberg e catedrático na Universidade de Zürich a partir de 1915 [1], ele foi um dos expoentes da Escola Institucionalista do Direito Público, criando e aperfeiçoando teorias, mantendo as bases do Direito istrativo alemão e, concomitantemente, incorporando as alterações legislativas e a atualização da jurisprudência.

Fritz Fleiner partiu do modelo prático do istrativista alemão Otto Mayer, mas deu-lhe contornos itidos internacionalmente pelo Direito Positivo [2] e acresceu-lhe elementos teóricos imprescindíveis para sua projeção além das fronteiras da Alemanha.  Nessa chave, Fritz Fleiner defendeu a interação do Direito Público com o Direito Privado, vendo neste um facilitador daquele diante da expansão das tarefas do Estado havidas, sobretudo, no pós-Primeira Guerra.

A “fuga para o Direito Privado” (die Flucht in das Privatrecht) empreendida pela istração pública tornou-se, assim, um dos debates mais conhecidos na referência à obra de Fritz Fleiner. Em outra expressão — Direito Privado istrativo (Verwaltungsprivatrecht) —, Fritz Fleiner reconhece a possibilidade de a istração pública valer-se de institutos privados, desde que  mantidas as garantias dos istrados, o interesse público e os preceitos istrativos típicos, pois a istração pública nunca deve abstrair da indisponibilidade do interesse público (cujo titular é o Estado).

Justificativas para a ‘fuga’

Se o saldo da Primeira Guerra impôs a “fuga para o Direito Privado” [3], o modelo de contrato de concessão de serviços públicos já não era suficiente, ainda que autônomo em relação ao contrato de empreitada ou construção de obra pública. Logo, o Estado recorreu à descentralização, constituindo pessoas jurídicas de direito privado especializadas na execução dos serviços antes delegados a particulares. O uso abusivo do Direito Privado pela istração pública em detrimento do regime jurídico istrativo previsto para dada situação era ível (como ainda o é) de nulidade dos atos praticados, de responsabilização do agente e, havendo danos a terceiros, de responsabilidade civil da pessoa jurídica [4].

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A “fuga para o Direito Privado” [5] se justifica, ainda, porque as relações da istração pública não se solucionam somente com normas gerais e princípios doutrinários fundamentais (ou mesmo na jurisdição comum ou istrativa), já que as relações jurídicas do Estado não estão adstritas ao Direito Público e seu interesse imediato pode envolver inúmeras relações privadas (embora os princípios gerais do Direito Privado tenham aplicação secundária nas relações estritamente de Direito Público, porque este não se pode descurar dos preceitos intrínsecos à própria definição do Estado). Outros fatores seriam causados (1) pelo favorecimento da economia de mercado; (2) pela demanda de massa por uma melhor prestação de serviços públicos, aliada à escassez de recursos públicos, o que desencadeia  concessões e privatizações; (3) pela mitigação do caráter autoritário da istração, a fim de conferir aos cidadãos mais visibilidade; (4) pela prática da regulação em vez da “intervenção”; e (5) pelo uso intensivo dos contratos de Direito Privado e das parcerias público-privadas [6].

Segundo Fritz Fleiner, a istração pública, ao celebrar contratos com particulares, praticaria ato istrativo unilateral, cuja legitimidade depende do consentimento do interessado: ela somente poderia celebrar contratos em substituição aos atos unilaterais se houvesse autorização expressa da lei (esses contratos, porém, seriam íveis de rescisão unilateral por iniciativa da istração, haja vista a existência de interesse público).  Hoje, porém, o ato istrativo é uma espécie de ato jurídico, enquanto o contrato istrativo equivale a uma espécie de ato istrativo lato sensu, que confere à istração uma posição contratual com prerrogativas.

A supremacia do Estado no negócio não retira a natureza contratual do ato istrativo nem suprime a manifestação do particular que figura no outro polo contratual, pois o livre consentimento contratual contemporâneo traduz a simples liberdade de estabelecer ou não um vínculo contratual, em uma realidade na qual os particulares não estão obrigados a manter relações contratuais com o Estado [7]. O conceito de contrato seria para Fritz Fleiner mais uma questão da Teoria Geral do Direito do que do Direito Privado, o que foi afirmado posteriormente por Hans Kelsen [8].

A Teoria Geral do Direito abrange um conjunto de princípios e regras dotados de generalidade, alcançando em primeira mão todos os institutos, antes mesmo de eles serem atribuídos ao público ou ao privado. Também incidiriam “aos contratos istrativos os princípios da teoria geral dos contratos, obtidos por meio indutivo, abstraindo-se e generalizando-se” [9], de modo a resultar um paradigma contratual [10].

 

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 


[1] STEINER, E. O ensino do direito istrativo e das ciências istrativas na Suíça. Revista de Direito istrativo. Rio de Janeiro–São Paulo: DASP, p. 530-532, 1945, p. 531.

[2] STOLLEIS, Michael. A history of public law in – 1914-1945. Trad. Thomas Dunlap. New York: Oxford University Press, 2004, p. 236-238.

[3] COUTO E SILVA, Almiro do. Os indivíduos e o Estado na realização de tarefas públicas. Revista de Direito istrativo. Rio de Janeiro, n. 209, p. 43.

[4] Ibidem, p. 20.

[5] FLEINER, Fritz. Principes généraux du droit istratif allemand. Trad. Charles Eisenmann. Paris: Delagrave, 1933, p. 40.

[6] MEDAUAR, Odete. Público-Privado. In: Parcerias público-privadas – reflexões sobre os 10 anos da Lei nº 11.079/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 43-50, 2015, p. 46-48.

[7] ARAÚJO, Edmir Netto. Do negócio jurídico istrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 181 e 201.

[8] KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 200.

[9] CRETELLA JÚNIOR, José. Das licitações públicas – comentários à Nova Lei Federal nº 8.666, de 21 de junho de 1993. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 273-274.

[10] FERREIRA, Patrícia Cândido Alves. Elementos do direito istrativo brasileiro influenciados pelo pensamento de Fritz Fleiner. In: Direito federal interpretado – estudos em homenagem ao Ministro Humberto Martins. Otavio Luiz Rodrigues Jr.; Jadson Santana de Souza (Coord.). Rio de Janeiro: GZ, p. 293-306, 2024, p. 302 e ss.

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