Diário de Classe

As ameaças dos atos de vontade à coerência e à integridade

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25 de janeiro de 2025, 8h00

Recentemente, Frederico Pessoa escreveu uma coluna intitulada “O que é isto – ‘os positivismos’? A unidade na universalidade de uma ideia” abordando os positivismos jurídicos de Hans Kelsen e Herbert Hart. A virtude do texto do colega é aprofundar o tema, sem se limitar em reproduzir o que diz o senso comum, que normalmente classifica Kelsen como positivista sem distinguir sua postura normativista do positivismo exegeta. Com efeito, o seguinte parágrafo traduz mencionada virtude:

“Kelsen articula a norma jurídica como esquema de interpretação da realidade, separando sentido subjetivo de um ato de vontade humano, do seu sentido objetivo jurídico; em suma, a norma jurídica representa a imputação, a um ato de vontade humano, de um sentido jurídico predeterminado. As normas inseridas representam, assim, atos de vontade sobre os quais outra norma imputa um determinado sentido jurídico estruturam-se em um sistema de validação desprendido da valoração do conteúdo normativo das regras que o compõem, focando-se na estrutura formal de validação entre normas” [1].

O trecho chama a atenção porque desvela, notadamente quando considerada a íntegra do texto, a real pureza do direito em Kelsen. O autor, de fato, propõe um rigor metodológico na avaliação da validade das normas em sede de ciência do direito, com fundamento lógico último na Norma Pressuposta Fundamental (NPF). No entanto, as normas são produto de atos de vontade, de modo que o direito não se isola completamente dos argumentos de cunho moral/valorativo e as decisões judiciais, mesmo balizadas pela famosa moldura mencionada no capítulo 8 da Teoria Pura do Direito [2], criam direito com base na subjetividade do intérprete.

Embora Hart procure um fundamento sociológico, não lógico, para fundamentar o direito na Regra de Reconhecimento (RR), ambos são classificados como positivistas. Esta proximidade entre Kelsen e Hart é destacada pelo professor Lenio Streck no seguinte trecho:

“O positivismo de Herbert L. A. Hart tenta fugir desse dilema, mostrando de que maneira o Direito já operaria entre um e outro extremo, na existência de regras jurídicas identificáveis nos contextos sócio-práticos. Contudo, empaca diante dos tais casos difíceis, nas chamadas zonas de penumbra, em que relega a decisão à discricionariedade do juiz que atuaria como se fosse um legislador intersticial[3].

Tais reflexões servem de gancho para o presente texto, cuja proposta é estabelecer um vínculo entre a discussão teórica apresentada e a atualidade jurídica brasileira, especialmente no que diz respeito às categorias coerência e integridade, que foram incorporadas à redação do artigo 926 do Código de Processo Civil de 2015. O dispositivo trata de uma obrigação institucional do Poder Judiciário, mas o que significa manter a jurisprudência íntegra e coerente? E mais, em que medida isso afeta a própria concepção de direito no Brasil? É legítimo classificar a decisão como um ato de vontade, como se fosse a escolha de uma dentre as várias opções disponíveis?

Nas palavras do professor Lenio Streck e de forma bastante analítica:

“a) Coerência liga-se à consistência lógica que o julgamento de casos semelhantes deve guardar entre si. Trata-se de um ajuste que as circunstâncias fáticas do caso deve guardar com os elementos normativos que o Direito impõe ao seu desdobramento; b) Integridade exige que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do Direito, numa perspectiva de ajuste de substância” [4].

A inclusão das categorias à redação do Código de Processo Civil representa muito mais do que mera formalidade ou floreio. Em verdade, é medida de extrema relevância para o combate a arbitrariedades nas decisões judiciais e a imprevisibilidade nas respostas do Poder Judiciário, o que é fundamental para garantir a própria democracia.

Prever no texto legal a obrigatoriedade de os tribunais manterem a jurisprudência íntegra e coerente é uma questão de igualdade. Em um Estado Democrático de Direito Contemporâneo, exige-se isonomia no tratamento dos cidadãos, sendo capazes os jurisdicionados de compreender os reais fundamentos das decisões exaradas por um Poder Judiciário independente, com critérios claros e impugnáveis, no limite das ferramentas processuais disponíveis, por óbvio. Enfim, o artigo 926 do Código de Processo Civil vem para reforçar o time composto pelo artigo 93, IX, da Constituição Federal e o artigo 489 do Código de Processo Civil, impondo, no mais, uma leitura democrática de todo o ordenamento jurídico.

Nota-se, portanto, uma preocupação qualitativa, não quantitativa, com as decisões judiciais. Seus fundamentos é que importam e efetivamente legitimam os atos do Poder Judiciário, pois revelam os critérios essenciais ao Estado Democrático de Direito Contemporâneo. No mais, respeitar a coerência e a integridade supera a simples reiteração dos julgamentos anteriores, pois demanda uma análise integrada do conjunto do direito.

Com efeito, o professor Lenio Streck participou ativamente da emenda que incluiu a coerência e a integridade ao texto do Código de Processo Civil. A preocupação é antiga e justificada, visto que a Crítica Hermenêutica do Direito é uma teoria interpretativa a respeito do direito, realizando uma antropofagia da doutrina de Ronald Dworkin, que serve de base para compreender tanto a coerência como a integridade. Referido autor fez duras críticas ao positivismo [5], pois defende um holismo interpretativo a partir da circularidade hermenêutica.

Cabe aqui explicar a referência ao holismo interpretativo e à circularidade hermenêutica: Dworkin acredita que proposições verdadeiras acerca do direito possuem carga valorativa compartilhada porque, filosoficamente, é impossível dela nos desvencilharmos. Por exemplo: afirmar que a escravidão é errada a pelo argumento moral de que as pessoas possuem valor em si mesmas. A veracidade da afirmação, portanto, se pauta na força do argumento (moral) que a sustenta, pois argumentar com a legitimidade da escravidão aria, necessariamente, por afirmar que nem todas as pessoas possuem valor em si mesmas.

Ou seja, para Dworkin, uma resposta só é certa quando está fundada em argumentos morais capazes de afastar outros discursos que se pretendem corretos. Isso significa que “(…) as razões que temos para pensar que estamos certos em ter nossas convicções são exatamente as mesmas que temos para pensar que nossas convicções são certas” [6]. E neste sentido, conceitos como o direito, a democracia, a liberdade, a igualdade, entre outros, são conceitos classificados como interpretativos, de modo que não são unívocos, mas são verdadeiros na medida em que compartilhados por atingirem uma circularidade, um recomeço na argumentação à medida em que se aproxime do centro da teia de valores que orienta tais conceitos, alcançando a “unidade do valor” [7].

Assim, Ronald Dworkin desloca o fundamento de validade do direito. itindo a circularidade hermenêutica que também orienta a Crítica Hermenêutica do Direito, demonstra a impossibilidade de se buscar um fundamento último de verdade, especialmente em algo “dado”, como a Norma Pressuposta Fundamental (NPF) e a Regra de Reconhecimento (RR), alheio à argumentação e à interpretação. São os argumentos que sustentam a veracidade do direito, o que, de quebra, rejeita a possibilidade de decisões discricionárias e orientadas por um ato de vontade.

Neste sentido, decidir é um ato de decisão, não de escolha. Não há diversas respostas possíveis dentre as quais o juiz escolhe discricionariamente. Este está constrangido por decisões anteriores a respeito de casos semelhantes (coerência) e pelo dever de respeitar o ordenamento jurídico como um todo (integridade) [8].

De fato, Dworkin argumenta que a busca pela circularidade é uma questão de responsabilidade moral, visto que sua teoria recepciona a filosofia e rejeita a possibilidade de se isolar uma assertiva (a respeito do direito, por exemplo) do argumento moral que a sustenta. Então:

“As pessoas moralmente responsáveis podem não chegar à verdade, mas a buscam. Pode-se ter a impressão, contudo, de que a teoria interpretativa da responsabilidade compromete essa busca. A responsabilidade compromete essa busca. A responsabilidade busca a coerência e a integração. Mas, no pensar de alguns filósofos, a verdade acerca da moral é cheia de conflitos e soluções de meio-termo: os valores morais são plurais e incomensuráveis entre si. Por isso, segundo eles, a insistência na coerência nos cega para conflitos renitentes que na realidade não podem deixar de existir” [9].

As contundentes conclusões de Dworkin acerca da veracidade das assertivas e do direito constrangem (ou deveriam constranger) a todos. Compreender o direito a partir de uma teoria interpretativa é um ato de responsabilidade moral, não a escolha de uma entre diversas opções possíveis. Recepcionar a filosofia, por sua vez, é um ato de responsabilidade moral praticado há décadas pelo professor Lenio Streck, pois sujeito às condições filosóficas para teorizar a respeito do direito.

Em síntese, este texto explorou os conceitos de coerência e integridade em dois níveis: primeiro, enquanto um dever de obediência à legislação, depois, enquanto um ato de responsabilidade política diante da recepção da filosofia pela teoria do direito. Demonstrou-se, assim, que decidir é um ato de decisão, não de escolha pautada na vontade do intérprete.

O que causa preocupação, no entanto, e serve de provocação final ao leitor, é o fato de que autores muito importantes para a teoria dos precedentes no Brasil como Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero insistirem em criticar a incorporação das categorias coerência e integridade ao artigo 926 do Código de Processo Civil. Especialmente na medida em que classificam a inclusão como opção do legislador pela teoria de Dworkin, enquanto não lhe caberia discutir temas de teoria do direito que não possuem efeitos práticos [10].

 


[1] STRECK, Lenio Luiz. Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no C/2015. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2021.

[2] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 questões fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020. p. 385.

[4] STRECK, Lenio. Artigo 489. FREIRE, Alexandre (Coord. Exec.); NUNES, Dierle; CARNEIRO DA CUNHA, Leonardo; STRECK, Lenio (Coords). Comentários ao código de processo civil. São Paulo: Saraiva., 2020. p. 1211.

[5] Refere-se à crítica ao teste de pedigree a fim de verificar a validade de uma norma em outra superior, ponto comum à Norma Pressuposta Fundamental (NPF) de Kelsen e à Regra de Reconhecimento (RR) de Hart, conforme explorado pela recente coluna de Frederico Pessoa.

[6] DWORKIN, Ronald. A Raposa e o Porco-espinho: justiça e valor. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2014. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. p. 57.

[7] DWORKIN, Ronald. A Raposa e o Porco-espinho: justiça e valor. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2014. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. p. 248.

[8] A metáfora do romance em cadeia é exposta por Dworkin em seu “O Império do Direito” e vai destrinchada no seguinte artigo: STRECK, L. L.; MORBACH JÚNIOR, G. Interpretação, integridade, império da lei: o direito como romance em cadeia. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais[S. l.], v. 20, n. 3, p. 47–66, 2019. DOI: 10.18759/rdgf.v20i3.1795. Disponível em: https://sisbib.emnuvens.com.br/direitosegarantias/article/view/1795. o em: 16 jan. 2025.

[9] DWORKIN, Ronald. A Raposa e o Porco-espinho: justiça e valor. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2014. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. p. 171.

[10] “Por fim, o legislador incorre no equívoco de adotar uma específica proposta a respeito da compreensão do conceito de direito: especificamente, vê-lo a partir do conceito de integridade, defendido por determinados setores da teoria do direito. (…)  mas nem por isso é possível deixar de registrar que a compreensão do direito como integridade (law as integrity) pressupõe a adoção da tese da resposta certa (right answer) – que de seu turno importa na adoção de uma “peculiar epistemologia moral interpretativa” (segundo a qual, entre outras coisas, haveria sempre verdades morais objetivas na interpretação). Não nos parece oportuno, porém, que um Código de Processo Civil tome partido em um assunto tão espinhoso, porque desnecessário à sua operacionalização prática. A adoção de uma determinada proposta a respeito do irremediável problema a respeito do conceito de direito- por mais fascinante que seja o debate a seu respeito – certamente não deve ser objeto de uma disposição legislativa”. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum, vol. II. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 611-612.

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