Fahrenheit 451

Tribunal dos EUA decide que bibliotecas públicas podem remover livros que não agradam governo

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1 de junho de 2025, 8h26

O Tribunal Federal de Recursos da 5ª Região decidiu que uma biblioteca pública do Texas não violou o direito de seus frequentadores a informações (parte do direito à liberdade de expressão), por remover de suas prateleiras 17 livros com conteúdo que o governo não gosta.

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São livros agora proibidos, por conter questões raciais, sexuais e supostas vulgaridades — tais como a palavra “bumbum” em um livro infantil de humor, cujo título é “I broke my butt”. Outros “condenados” são os livros “They Called Themselves the K.K.K.: An American Terrorist Organization” e “Caste: The Origins of Our Discontent.”

A ação foi movida por 17 frequentadores da biblioteca no Condado de Lhano, no Texas. Eles alegaram violação de seu direito à liberdade de expressão. O plenário do tribunal decidiu, por 17 votos a 10, que a Constituição não reconhece esse direito aos frequentadores de biblioteca pública, mantida pelo governo. Nesse caso, o direito à liberdade de expressão pertence ao governo, diz o voto da maioria.

A decisão do tribunal pleno, em Little v. Llano County, contrariou um conjunto de decisões anteriores sobre essa questão. Anulou a decisão de um juiz federal, que considerou inconstitucional a remoção dos livros e ordenou que fossem retornados às prateleiras. E reverteu a decisão de um colegiado de três juízes do próprio tribunal, que manteve a decisão de primeira instância.

Além disso, o tribunal pleno revogou um de seus próprios precedentes. Há 30 anos, a corte decidiu, em Campbell v. St. Tammany Parish School Board, que o governo e os bibliotecários no Texas, Mississippi e Louisiana (os estados cobertos pelo Tribunal Federal da Quinta Região) não podiam retirar livros das bibliotecas públicas “simplesmente porque não gostam das ideias neles contidas”.

O tribunal também desconheceu a decisão de uma “corte-irmã”, o Tribunal Federal de Recursos da 8ª Região. Em uma ação em que os autores contestaram uma lei de Iowa que bania um livro, esse tribunal rejeitou a ideia de que o governo se expressa por meio dos livros que bibliotecários e educadores escolhem disponibilizar. Observou que as bibliotecas, por definição, devem oferecer opiniões diversas e não apenas conteúdo aprovado pelo estado.

Assim, o destino da ação movida no Texas é a Suprema Corte. Por sinal, o tribunal também escanteou um precedente da Suprema Corte, com o argumento de que ele não se aplica ao caso. O voto da maioria diz que tal precedente às vezes protege o direito do cidadão de receber informações do governo. Mas os peticionários, neste caso, tentam criar um novo direito que não existe, diz o voto.

Direito de escolha dos editores

O voto da maioria, escrito pelo juiz Stuart Kyle Duncan, declara que as decisões sobre a coleção de livros de uma biblioteca se baseiam no direito à liberdade de expressão do governo e, portanto, não podem ser contestadas por seus frequentadores.

“Muitos precedentes ensinam que qualquer um se envolve em atividade expressiva, ao organizar e apresentar uma coleção de expressões de terceiros. As pessoas fazem isso o tempo todo. Pense nos editores de uma coletânea de poesias ou em um jornal escolhendo que notícias publicar; ou em uma emissora de televisão escolhendo que programas exibir.”

“O mesmo acontece com os governos. Pense em um museu municipal selecionando quais pinturas ou esculturas deve exibir em uma exposição. Da mesma forma, uma livraria se apoia em sua liberdade de expressão, quando decide que livros quer ter em sua coleção e quais devem excluir”.

A história das livrarias públicas leva à mesma conclusão, diz o voto. “Do momento que surgiram, em meados do Século XIX, as livrarias montam suas coleções com base no valor literário que representam. Mas o que tem valor muda com o ar dos anos. Por muito tempo, elas excluíram livros considerados ruins para a moral. Hoje elas não excluiriam o livro “50 tons de cinza”. No fim, o que prevalece é o direito à liberdade de expressão do governo que istra as bibliotecas públicas.”

De acordo com o voto da maioria, uma decisão a favor dos peticionários seria um pesadelo, porque não se sabe como os juízes iriam decidir em que casos a remoção de um livro é proibida ou não.

“Ninguém neste caso — nem os autores, nem o tribunal federal, nem o colegiado desta corte — consegue chegar a um acordo sobre um padrão. Uma biblioteca pode remover um livro porque não gosta de suas ideias? Por que acha o livro vulgar? Sexista? Impreciso? Desatualizado? Mal escrito? Só Deus sabe. Por sua vez, os autores da ação adotaram a visão desconcertante de que as bibliotecas não podem remover nem mesmo livros que defendem o racismo”.

Finalmente, o voto oferece uma “solução” para o problema dos peticionários: “Se um frequentador ficar decepcionado por não encontrar um livro que foi retirado das prateleiras da biblioteca, ele pode encomendá-lo online, comprá-lo em uma livraria ou emprestá-lo de um amigo”.

Fahrenheit 451 explica

Os peticionários alegaram que uma decisão a favor do governo do Texas iria transformar as bibliotecas públicas de “instituições de conhecimento” para “instituições políticas”. E se referiram à ideia da queima de livros, como uma tática de regimes totalitários para controlar e reprimir a população.

Essa ideia é bem expressa no filme “Fahrenheit 451”. No enredo de um futuro opressivo, a missão do protagonista, um bombeiro, é queimar todos os livros do país. Os livros são proibidos, por serem perigosos: eles tornam as pessoas infelizes e improdutivas, diz o governo, que prefere que as informações cheguem à população por meios tecnológicos, para facilitar a manipulação. Mas a “mocinha” converte o “mocinho”.

O voto dissidente, escrito pelo juiz Stephen Higginson, faz referência à queima de livros por governos totalitários. Mas antes, defende a missão das bibliotecas públicas e critica o governo por tentar miná-la:

“Há longo tempo, as bibliotecas públicas mantêm as pessoas bem-informadas, dando-lhes o a uma ampla variedade de informações e ideias. A livre troca de ideias está no alicerce de um governo livre e homens livres”.

“Como observou Thomas Jefferson, onde quer que as pessoas estejam bem-informadas, elas podem ter a confiança de seu próprio governo. George Washington reforçou esse ponto de forma mais contundente, ao dizer que a liberdade de expressão pode ser retirada e, mudos e silenciosos, podemos ser levados, como ovelhas, ao matadouro”.

“Mas este caso diz respeito à remoção de livros do sistema de bibliotecas públicas por autoridades do governo, por motivos políticos, a fim de negar o o público a ideias desfavoráveis. Em um esforço para ratificar essa restrição oficial à liberdade de expressão, a maioria anula décadas de leis consolidadas, menosprezando suas proteções à liberdade de expressão como um pesadelo a ser aplicado”.

O juiz declarou que ele e os juízes que aderiram a seu voto continuam a respeitar o precedente da Suprema Corte, bem como o da própria corte (em Campbell). E que as provas contidas nos autos mostram que a conclusão do juiz federal foi acertada. “As autoridades governamentais foram provavelmente motivadas pelo desejo de suprimir o o dos cidadãos às ideias contidas nos livros retirados da biblioteca”, diz o voto.

“A Primeira Emenda da Constituição, que tem a Suprema Corte como sentinela, protege o direito do povo de ser informado. Afinal, como sabiam os constituintes, somente um povo informado e engajado pode sustentar a autogovernança. As bibliotecas públicas representam o melhor desse objetivo simples, mas nobre”.

“Como espaços projetados para a pesquisa livre, elas democratizam o o a uma ampla gama de ideias frequentemente contraditórias e fornecem um terreno fértil para o desenvolvimento de nossas mentes. Mais do que tudo, as bibliotecas públicas oferecem a cada um de nós as ferramentas para nos educarmos e nos entretermos, para acolhermos ou rejeitarmos novas ideias e, acima de tudo, para nos envolvermos e desafiarmos nossas mentes”, diz o voto dissidente.

Não se junte a queimadores de livros

O juiz citou ainda um pronunciamento do ex-presidente Eisenhower, na formatura da turma de 1953 do Dartmouth College, quando o país estava nas garras do macartismo, um período de intensa fortificação do sentimento anticomunista nos EUA:

“Olhem para seu país. Este é um país do qual nos orgulhamos. Mas este país está muito longe da perfeição — muito longe. Temos a vergonha da discriminação racial ou temos preconceito contra as pessoas por causa de sua religião. Temos crimes. Não tivemos a coragem de erradicar essas coisas, embora saibamos que são erradas.”
“Não se junte aos queimadores de livros. Não pense que vai esconder falhas ocultando provas de que elas existiram. Não tenha medo de ir a sua biblioteca e ler todos os livros, desde que esse documento não ofenda nossas próprias ideias de decência.”
“Como derrotaremos o comunismo, se não soubermos o que ele é, o que ele ensina, por que ele tem tanto apelo entre os homens, por que tantas pessoas juram fidelidade a ele. Temos que combater isso com algo melhor, não tentar esconder o pensamento do nosso próprio povo. Os escritores fazem parte da nação. Mesmo que pensem em ideias contrárias às nossas, o direito deles de dizê-las, o direito de registrá-las e o direito de tê-las em lugares íveis a outros é inquestionável.”

E o juiz conclui seu voto com a declaração: “Como eu não gostaria que nosso tribunal se juntasse aos queimadores de livros, eu discordo (do voto da maioria)”.

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