Limites temporais da aplicação da Lei 14.230 ao reexame necessário nas ações de improbidade
2 de junho de 2025, 17h24
A Lei de Improbidade istrativa (nº 8.429/92), em sua redação original, não previu expressamente a figura do reexame necessário para sentenças de improcedência ou de extinção do processo sem resolução do mérito. Contudo, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, consolidada no EREsp nº 1.220.667-MG (1ª Seção, relator ministro Herman Benjamin), firmou o entendimento no sentido do cabimento do instituto nas ações de improbidade istrativa típicas, por aplicação do artigo 19 da Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/65), no âmbito do microssistema de tutela coletiva.

Com o advento da Lei nº 14.230/2021, a situação foi modificada. A nova redação dos artigos 17, § 19º, IV, e 17-C, § 3º, da LIA, ou a vedar expressamente o reexame necessário nas sentenças de improcedência ou de extinção proferidas em ações de improbidade istrativa. Diante dessa alteração legislativa, surge a controvérsia central que motivou a afetação do Tema Repetitivo 1284 no STJ (relator ministro Teodoro Silva Santos): “Definir se a vedação ao reexame necessário da sentença de improcedência ou de extinção do processo sem resolução do mérito, prevista pelo artigo 17, § 19º, IV c/c artigo 17-C, § 3º, da Lei de Improbidade istrativa, com redação dada pela Lei 14.230/2021, é aplicável aos processos em curso”.
Referido tema, incluído na pauta da 1ª Seção do dia 11 de junho de 2025, adentra o campo do direito intertemporal. A Corte Cidadã, então, decidirá se a alteração legislativa deve retroagir para atingir atos processuais já consolidados, ou se a lei vigente no momento da prolação da sentença deve reger sua sujeição ao duplo grau de jurisdição obrigatório.
Sujeição das sentenças proferidas antes da vigência da Lei nº 14.230/2021 ao reexame necessário: uma questão de direito intertemporal
Como se sabe, a lei processual possui aplicabilidade imediata. Trata-se de norma de sobre direito consolidada no brocardo “tempus regit actum” [1]. Essa regra geral, todavia, não autoriza a desconsideração de atos processuais já praticados e aperfeiçoados. O Código de Processo Civil de 2015, em seu artigo 14, ressalva expressamente que “a norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada”. Essa disposição é um reflexo do princípio da segurança jurídica e da proteção ao ato jurídico perfeito, consagrados no artigo 5º, XXXVI, da Constituição, e no artigo 6º da Lindb.
Tal compreensão é desenvolvida pela doutrina processualista por meio da chamada teoria do isolamento dos atos processuais (ou teoria dos atos processuais isolados), que compreende o processo como um conjunto de atos, cada qual podendo ser considerado isoladamente, para os efeitos de aplicação da lei nova [2].
A partir dessa linha teórica, cada ato processual é regido pela lei vigente no momento de sua prática. Assim, a sentença proferida em uma ação de improbidade istrativa consolida-se sob o regime jurídico existente quando de sua prolação. A exigência ou não do reexame necessário é uma condição de eficácia da sentença [3], e, portanto, deve ser avaliada no momento em que a decisão que põe fim à fase cognitiva do procedimento é tornada pública.
A jurisprudência do STJ tem se alinhado a essa compreensão [4]. A 1ª Turma da Corte Superior já decidiu por duas vezes (REsp nº 1.502.635/PI, relator ministro Paulo Sérgio Domingues; AgInt no REsp nº 1.543.207/SC, relator ministro Gurgel de Faria) que a lei que rege o reexame necessário nas ações de improbidade istrativa é aquela em vigor na data da publicação da sentença.
Conforme consta da ementa do REsp n.º 1.502.635/PI:
“3. É eminentemente processual a questão ligada ao cabimento ou não do reexame necessário. Aplicação da teoria do isolamento dos atos processuais. O regime de impugnação das decisões judiciais é aquele vigente quando da publicação da decisão recorrida, isolando-se, assim, os atos considerados perfeitamente realizados sob a égide de uma determinada legislação processual.”
Esses julgados reforçam que a alteração promovida pela Lei nº 14.230/2021, ao vedar a remessa necessária, somente deve ser aplicada às sentenças proferidas a partir de 26 de outubro de 2021, data de sua publicação.

Ainda neste ponto, é importante relembrar que o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, previsto no artigo 5º, XL, da Constituição, possui aplicação restrita e limitada no âmbito do direito istrativo sancionador, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do ARE nº 843.989-RG/PR (Tema 1.199). Não se pode, portanto, retroagir, com amparo nesse postulado, normas de direito processual inseridas na Lei de Improbidade istrativa para beneficiar o sujeito ivo da ação, sob pena de subverter a estabilidade das situações jurídicas já consolidadas.
Distinguishing: inaplicabilidade do Tema 1.257/STJ.
Faz-se necessário, ainda, distinguir a presente controvérsia jurídica do precedente firmado no Tema 1257/STJ, em que o Superior Tribunal de Justiça fixou a tese de que: “As disposições da Lei 14.230/2021 são aplicáveis aos processos em curso, para regular o procedimento da tutela provisória de indisponibilidade de bens, de modo que as medidas já deferidas poderão ser reapreciadas para fins de adequação à atual redação dada à Lei 8.429/1992.”
Um precedente deve ser aplicado a partir da identificação dos seus fundamentos determinantes (artigo 489, § 1°, V), compreendidos como os fatos relevantes e a solução de direito estabelecidos pelo caso-precedente [5]. Dessa maneira, necessário realizar o cotejo entre o julgado paradigma e o caso concreto para que se chegue à conclusão sobre a sua incidência, identificando o que é essencial e o que é acidental, o que é relevante (necessário e suficiente) para a decisão e o que constitui o dito de agem (obiter dictum) [6].
No julgamento do Tema Repetitivo 1.257, o STJ decidiu pela aplicabilidade imediata das disposições da Lei nº 14.230/2021 aos processos em curso no que tange à tutela provisória de indisponibilidade de bens. A ratio decidendi desse precedente baseou-se na natureza precária e provisória da medida cautelar de indisponibilidade, que, por sua própria essência, pode ser modificada a qualquer tempo diante de nova situação jurídica. A tutela provisória não consubstancia situação jurídica consolidada no mesmo sentido que uma sentença definitiva.
A controvérsia jurídica objeto do Tema 1.284 apresenta, portanto, diferença substancial em relação ao precedente referenciado. O reexame necessário não possui natureza precária ou provisória. Trata-se de instrumento de revisão judicial obrigatória, que submete determinadas decisões à reapreciação automática por órgão jurisdicional de instância superior. A sentença de improcedência ou de extinção proferida sob a legislação anterior já nascia com a condição de ser submetida ao duplo grau de jurisdição obrigatório.
Vê-se, desse modo, que os fundamentos determinantes que justificaram a aplicabilidade imediata da nova lei à tutela provisória no Tema 1.257/STJ não se amoldam à questão submetida à julgamento no Tema 1.284/STJ. A medida cautelar de indisponibilidade de bens é inerentemente mutável e não consolida direitos ou situações jurídicas de forma definitiva, ao o que a sentença e a sua sujeição ao reexame necessário representam atos processuais consolidados sob a vigência da norma revogada.
Conclusão
Em síntese, a vedação ao reexame necessário, prevista pelos artigo 17, § 19º, IV c/c artigo 17-C, § 3º, da Lei de Improbidade istrativa, com redação dada pela Lei 14.230/2021, não deve aplicar-se aos processos em curso cuja sentença tenha sido proferida antes de sua vigência. A adoção dessa tese pelo Superior Tribunal de Justiça no Tema 1.284 é crucial para a manutenção da coerência do sistema jurídico e a integridade dos atos processuais consolidados, garantindo que alterações legislativas não prejudiquem situações jurídicas legitimamente estabelecidas sob a égide da lei vigente.
[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 7. ed. São Paulo: Malheiros, v. 1, 2013. p. 98.
[2] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 21. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 32.
[3] DIDIER JR., Fredie e CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. 7ª ed. Salvador/BA: Editora Juspodivm, 2009, v. 3, p. 481.
[4] Destaca-se, nesse sentido, as seguintes decisões monocráticas: REsp n.º 2.129.459/MG, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJ 28.08.2024; REsp n.º 2.096.356/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, DJ 20.08.2024; REsp n.º 2.089.885/MG, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ 02.08.2024; REsp n.º 2.141.329/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, DJ 03.07.2024; REsp n.º 2.127.228/MG, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJ 25.06.2024; REsp n.º 2.107.380/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, DJ 02.05.2024; REsp n.º 1.474.760/SC, Rel. Min. Afrânio Vilela, DJ 08.04.2024; REsp n.º 2.106.525/MG, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJ 19.12.2023; REsp n.º 2.094.069/MG, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJ 18.12.2023; REsp n.º 2.073.122/MG, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ 27.11.2023; REsp n.º 2.088.071/MG, Rel.ª Min.ª Regina Helena Costa, DJ 22.11.2023; REsp n.º 2.091.155/MG. Rel.ª Min.ª Regina Helena Costa, DJ 08.11.2023; REsp n.º 2.079.258/MG, Rel.ª Min.ª Regina Helena Costa, DJ 05.10.2023; REsp n.º 2.092.912/MG. Rel.ª Min.ª Regina Helena Costa. DJ 26.09.2023.
[5]ZANETI JR., Hermes. O valor vinculante dos precedentes: teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. 4. ed. rev. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 372.
[6] MITIDIERO, Daniel. Ratio decidendi: quando uma questão é idêntica, semelhante ou distinta? São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 103-104.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!