Opinião

Responsabilidade objetiva no projeto de reforma do Código Civil (parte 2)

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2 de junho de 2025, 6h10

Continuação da parte 1

Artigo 944 do PL 04/2025

Seguindo a esteira de enfraquecimento do princípio da reparação integral e de retorno do protagonismo da valoração da conduta justamente no seio da objetivação da responsabilidade civil, temos a seguinte proposta de nova redação do artigo 944:

“Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.

§1º Se houver excessiva desproporção entre a conduta praticada pelo agente e a extensão do dano dela decorrente, segundo os ditames da boa-fé e da razoabilidade, ou se a indenização prevista neste artigo privar do necessário o ofensor ou as pessoas que dele dependam, poderá o juiz reduzir equitativamente a indenização, tanto em caso de responsabilidade objetiva quanto subjetiva.

§2º Em alternativa à reparação de danos patrimoniais, a critério do lesado, a indenização compreenderá um montante razoável correspondente à violação de um direito ou, quando necessário, a remoção dos lucros ou vantagens auferidos pelo lesante em conexão com a prática do ilícito.”

O primeiro parágrafo assemelha-se à orientação constante do atual Código Civil, mas gera intensa insegurança ao modificar o critério de desproporção entre culpa e dano, adotando a desproporção deste com a “conduta” do ofensor [1] como elemento de eventual diminuição da indenização.

Ademais, o dispositivo inova significativamente ao itir a aplicação desta exceção ao princípio da reparação integral ao campo da responsabilidade objetiva, conforme itido no Parecer da Comissão de Responsabilidade Civil:

“Porém, controverte-se atualmente se o dispositivo se aplica à responsabilidade civil objetiva. Para a doutrina majoritária, a referida norma só poderá ser utilizada na teoria subjetiva da responsabilidade civil, seja pela própria literalidade do dispositivo, como também pelo próprio apelo à orientação sistemática pela qual no nexo de imputação objetiva será expurgada qualquer discussão sobre a culpa.”

Acerta a nobre comissão ao afirmar a existência de controvérsia sobre o tema, assim como também é exata quando aponta qual o posicionamento majoritário sobre a matéria, sumarizando os principais fundamentos que o am. Paradoxalmente, esses dois acertos consubstanciam motivo de consternação, pois não foram suficientes para que a comissão evitasse impor ao país e à comunidade jurídica posicionamento minoritário, por intermédio de reforma legislativa caracterizada pela rapidíssima elaboração e, desse modo, “aproveitar reformas para fazer doutrina[2], na prudente advertência do catedrático lisboeta.

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Projeto propõe alterar mais de 1.100 artigos do Código Civil

Este reduzido espaço não se presta para resumir as razões que caracterizam os posicionamentos contra e a favor de utilização da norma nos casos regulados pela responsabilidade civil objetiva [3], mas é importante notar que o principal motivo externado pela comissão para fundamentar a guinada legislativa relaciona-se com uma fundamentação cara aos cultores da linha do law and economics, pois haveria, na visão da Comissão, a criação de um incentivo para que empresários fossem mais cautelosos. Se a reforma não se implementar, entende a Comissão que inexistiria “qualquer estímulo para provocar um comportamento direcionado ao cuidado e à diligência extraordinários[4].

Respeitosamente, discorda-se desse entendimento. Todas as principais consequências deletérias adas por aqueles que causam danos e prejuízos em decorrência de atividades de risco normalmente desenvolvidas estão ligadas às despesas indenizatórias, bem como a outras despesas como, exemplificativamente, os custos reputacionais e de defesa. Todas essas despesas estão ligadas, essencialmente, ao an debeatur e a sua ocorrência é minorada tomando-se as cautelas possíveis para evitar que o dano se verifique. Portanto, a sanção indenizatória, imposta como resposta ao prejuízo causado e calculada conforme o princípio da reparação integral, constitui o mais contundente incentivo para a observância de uma conduta cautelosa por parte dos potenciais causadores de danos e já é tradicionalmente garantida pelo atual Código Civil.

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Parece pouquíssimo crível que a mera possibilidade de diminuição do quantum debeatur, proposta pela reforma, teria o condão de criar um incentivo capaz de modificar um padrão de conduta que se mostrava negligente na constância de um incentivo muito mais contundente (evitar a indenização tradicionalmente quantificada, aliada a custos reputacionais e de defesa). Acredita-se, portanto, que a imposição legislativa de uma posição minoritária por parte da reforma não atingiria os fins práticos aos quais ela confessadamente se propõe.

Por fim, a preocupação em relação ao abandono do compromisso com a função reparatória e com o princípio da reparação integral encontra seu ponto máximo no segundo parágrafo do artigo 944 proposto, que ite que a vítima, em qualquer caso, opte pelo afastamento por uma indenização vinculada ao dano sofrido e receba uma quantia relacionada a “um montante razoável correspondente à violação de um direito[5]. Mais uma vez se está diante de norma que se ressente de sério debate doutrinário prévio e conta com acentuado potencial de gerar insegurança jurídica. Por ser amplíssimo, este artigo é ainda mais problemático, já que não está aos casos de responsabilidade objetiva.

Diante desse cenário, os caminhos hermenêuticos que serão seguidos pelos aplicadores da norma são múltiplos e incontroláveis. Para indicar apenas uma singela possibilidade, levando-se em conta que a sanção da norma seria observada “em alternativa” à clássica reparação dos danos patrimoniais, pode-se imaginar julgadores sustentando que a “indenização” (sanção pecuniária)  pela “violação de um direito” seja aquilatada de acordo com a hierarquia do direito lesado e até mesmo com a censurabilidade da conduta do agente, tão ao gosto do Direito Penal e afastando-se definitivamente de qualquer resquício de reparação integral de dano patrimonial. A própria expressão “Direito de Danos” aria a ser uma lembrança distante [6].

Qual seria a postura do julgador ao receber uma ação de “indenização” em que o autor foi vítima de uma tentativa de homicídio da qual resultou danos corporais, mas apenas singelos prejuízos patrimoniais, consubstanciados em despesas médicas de pequena monta? Como seria estabelecida a indenização desse dano patrimonial se a vítima escolhesse “um montante razoável correspondente à violação de um direito”? Essa indenização poderia ser claramente separada da indenização do dano extrapatrimonial pela lesão à integridade física? São muitos os questionamentos que ficam sem resposta, abrindo a possibilidade de um afastamento definitivo da função reparatória.

Conclusão

Pontuou-se que este texto não se presta a aprofundar a conveniência da introdução de uma “função moralizante [7]” no sistema de responsabilidade civil brasileiro, apesar de se registrar a tradição dos sistemas da família romano-germânica em concentrar essa função na seara do Direito Público, sob pena de profundas idiossincrasias sistemáticas.

Por outro lado, tentou-se sublinhar que a eventual inserção de uma função moralizante, punitiva ou pedagógica em nada antipatiza com a função precípua da responsabilidade civil: indenizar integralmente a vítima que sofreu prejuízos em decorrência de conduta antijurídica, principalmente nas situações de responsabilidade objetiva.

O aspecto inovador da responsabilidade objetiva centra-se exatamente em oferecer um mecanismo indenizatório mais simples em favor da vítima, subtraindo a necessidade de provas ligadas à subjetividade do comportamento e sendo elemento concretizador, portanto, da já referida inversão do eixo da responsabilidade civil: do comportamento do agente para o dano sofrido pela vítima.

Ao optar por caminho oposto, acredita-se que a reforma possui traços do individualismo do século 19, centrada em um “indivíduo culpado e responsável”, com características típicas de uma sociedade pré-industrial [8]. A combinação do primeiro parágrafo do artigo 944 com o § 2º do artigo 927-B faria com que o julgador fosse obrigado a permitir longa e muitas vezes complexa dilação probatória, centrada na conduta do agente, para permitir a verificação do grau de risco e de culpa, em caminho exatamente oposto à objetivação da responsabilidade civil. Como o perdão da cacofonia, a reforma retiraria a objetividade da responsabilidade objetiva.

O segundo parágrafo do artigo 944, por seu turno, possibilitaria o afastamento da função reparatória e do princípio da reparação integral em todos os casos de indenização de danos patrimoniais, oferecendo um critério vago e sujeito a todo tipo de interpretação.

Em um mundo cada vez mais preocupado com a previsibilidade da sanção indenizatória, com a utilização de baremos até mesmo para o dano extrapatrimonial [9],  possibilitando um mais eficiente e moderno sistema de seguros para a proteção da vítima, o Direito brasileiro colocar-se-ia em direção absolutamente oposta.

Diante do exposto, caso a reforma prossiga, sugere-se, respeitosamente, a supressão das propostas analisadas.

 


[1] MARTINS, Fábio Floriano Melo; SAMPAIO, Gisela; SILVA, Rafael Peteffi; WESENDONCK, Tula; MORAES, Maria Celina Bodin de. Responsabilidade Civil. In: REVISTA DO IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo. Vol. 38.1, Ano 27, São Paulo: Instituto dos Advogados de São Paulo, 2024, p. 56, “O §1º do art. 944, entretanto, é causa de graves preocupações, pois permite flexibilizar a indenização integral se houver desproporção entre o dano e a “conduta” do agente, afastando o critério da culpa que é observado no atual Código Civil. Pela vagueza típica do termo conduta, ampla insegurança jurídica poderá ser observada, pois os magistrados poderão entender que o termo se refere ao nexo de causalidade (conduta causadora do dano) ou a fatores de qualificação da conduta, como a culpa (conduta culposa).”

[2] MENEZES CORDEIRO, António. Reestruturar a responsabilidade civil do projeto de reforma do Código Civil. Consultor Jurídico, 10 nov. 2024. Disponível aqui.

[3] LUZ, Vanessa Moritz. (In) aplicabilidade do artigo 944, parágrafo único, do Código Civil à responsabilidade objetiva: (in) viabilidade da análise da gravidade da culpa no quantum debeatur. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2022. Orientador: Rafael Peteffi da Silva.

[4] BRASIL. Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Parecer nº 1 – Subcomissão de Responsabilidade Civil e Enriquecimento sem Causa da CJCODCIVIL. Brasília, 15 dez. 2023. Disponível em o em: 12 fev. 2025.

[5] No espaço deste texto não se comentará sobre a segunda parte do parágrafo, ligado ao lucro da intervenção, que já foi comentado por JIUKOSKI DA SILVA, Sabrina. Revisão da cláusula geral de enriquecimento sem causa do Código Civil. Migalhas, 22 jan. 2025. Disponível aqui.

[6] MARTINS, Fábio Floriano Melo; SAMPAIO, Gisela; SILVA, Rafael Peteffi; WESENDONCK, Tula; MORAES, Maria Celina Bodin de. Responsabilidade Civil. In: REVISTA DO IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo. Vol. 38.1, Ano 27, São Paulo: Instituto dos Advogados de São Paulo, 2024, p. 49-56.

[7] Para uma análise crítica da possível inserção de uma função moralizando em nosso sistema veja-se REINIG, Guilherme Henrique Lima. A função “moralizante” da responsabilidade civil no anteprojeto de lei para revisão e atualização do Código Civil de 2002: críticas à previsão do instituto da “sanção pecuniária de caráter pedagógico”, Revista Jurídica Profissional, volume especial, 2024.

[8] VINEY, Geneviéve. Introduction à la responsabilité. Paris: LGDJ, 1995. p.  18.

[9] MARTÍN-CASALS, Miquel. Por una puesta al día del sistema de valoración del daño corporal (“baremo”). InDret 4/2012, Barcelona, out. 2012. Disponível aqui.

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