Ainda sobre a Rerum Novarum
3 de junho de 2025, 17h18
O papa Leão 13, quando escreveu sua inolvidável encíclica Rerum Novarum [1], soube compendiar num só documento os intransferíveis encargos do verdadeiro Pastor da Igreja Universal, ou seja, ensinar, santificar e governar [2].

Robert Francis Prevost, o papa Leão 14
Conseguiu ele discernir não só o problema que vinha assolando de modo crescente aquela sociedade moderna desejosa de emancipação, cujos elementos menos favorecidos encontravam-se à mercê da “sede de inovações”[3] de seus patrões, mas foi capaz de desvendar a solução para esse mesmo problema.
Cumprindo sua função docente, alertou o mundo de que os problemas do proletariado, malgrado provirem da classe menos influente da sociedade, transbordariam para além da esfera política na qual já se encontravam e colidiriam com a economia social.
Tornava-se imperioso tomar uma atitude! E Leão 13, longe de se esquivar do problema de sua época, teve a coragem de resolvê-lo, “pois graves interesses [do mundo e da Igreja] estavam em jogo” [4]. Sabia ele que todo problema social, mais cedo ou mais tarde, acaba por tanger questões morais, para as quais a Igreja é chamada a ser guia.
De fato, se a Igreja deixasse de esclarecer alguma verdade, tornar-nos-íamos como tripulantes de um navio que navega em mar desconhecido e encapelado, à mercê das vagas.
Em outras palavras, estaríamos como em um país que relegou seu Estado de Direito à anarquia.
Ora, segundo palavras do pontífice, “o problema nem é fácil de resolver, nem isento de perigos” [5]. Mas nem por isso Leão 13 se intimidou, soube partir do bom senso que deve imperar em questões intrincadas, na intenção de obter um feliz resultado.
Deveras, como reger, a um só tempo, problemas que atingem ricos e pobres, capital e trabalho?
Toda vez que encontramos conflitos, de qualquer espécie, é porque um lado quer deixar de cumprir o papel que lhe cabe, engendrando inevitavelmente algum desconcerto. Mas, atenção, em uma sociedade – se preciso dizer o óbvio – todos têm um papel; logo, o que convém questionar não é tanto quem tem o maior papel a desempenhar, mas sim como desempenhar o papel que é maior (ou menor).
O fundo moral da Rerum Novarum vem, portanto, deitar luz a esse inimigo chamado cobiça.

Por isso, Leão 13 vem fazer um apelo: dentro dos desníveis harmônicos que devem existir em qualquer sociedade sã, os que se decidiram aos trabalhos servis façam-no para atender àqueles que, ora, servem por sua instrução e cultura ao progresso de todo o edifício social.
Dito de outro modo, se cada um desempenhar o papel que lhe cabe nessa imensa trama do tecido social, tudo concorrerá para o avanço. Do contrário, haverá uma ingerência do superior — e aqui vale para qualquer situação de superioridade, intelectual, financeira, etc. — sobre quem se qualifica inferior.
Do exposto, conclui-se que toda luta de classes se cifra não só e nem primordialmente em questões financeiras; antes e pelo contrário, em uma questão moral, porquanto é sempre má. Leão 13 assim o viu e apontou.
Nesta ótica entende-se melhor quão espúria é aquela ideia tantas vezes vendida em certos livros de História de que fora comprada pela “falta de pão” a luta de classes que levara à guilhotina Maria Antonieta…
Foi pelo desejo desregrado de alguns de ter para si aquilo que pertencia a outrem, ou de que não houvesse para ninguém aquilo que não podiam ter para si, que eclodiu aquela Revolução e quantas outras que lhe são afins.
Desta feita, nossa lei civil vem a ser a guardiã e a fiel intérprete dessa outra lei, gravada pelo próprio Criador na alma de toda criatura, e na qual devem estar fundados os direitos da liberdade humana.
Daí se deduz aquilo do artigo 1º do CDC, de que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” [6]; pois que todos, como criaturas, devemos algo a alguém, a começar por aqueles que nos geraram, mas antes e acima deles Àquele que nos deu o ser, de onde compreendermos a necessidade ontológica da restituição.
É, pois, essa restituição que vem fazer frente à cobiça alertada pela “sede de inovações” denunciada por Leão 13.
Harmonia entre as classes sociais
Sabendo tomar opções decisivas para o futuro, Leão 13 evidenciará ainda as injustiças e as consequências daqueles que perturbam as classes da sociedade em uma “odiosa e inável servidão para todos os cidadãos, porta aberta a todas as invejas, a todos os descontentamentos, a todas as discórdias” [7]. Desnaturando as funções do Estado ou as próprias funções, acabam por plantar o germe da desarmonia e da desordem.
Dessa sorte, “se não apelamos para a Religião e para a Igreja, é impossível encontrar-lhe uma solução eficaz” [8]; entende-se, então, porque Leão 13 quis restabelecer contatos e construir pontes com aquele mundo moderno que parecia afastar-se irremediavelmente da Igreja.
Ademais de educador, Leão 13 quis cumprir sua missão de santificador estendendo ao mundo as chaves que ligam as coisas da Terra com as do Céu (cf. Mt 18,18), por meio da verdade do Evangelho: se é lhaneza que o homem deve aceitar com paciência a sua condição, o trabalho humano não é mercadoria; e a vida social é feita para que uns auxiliem os outros.
Portanto, a Rerum Novarum vem deslindar aquele ardiloso argumento de que as classes são inimigas uma da outra, “como se a natureza tivesse armado os ricos e pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado” [9]. Tivessem aqueles operários — como também os de hoje — olhado para a beleza da diversidade e hierarquia de seu corpo, na variedade de seus membros, e dar-se-iam conta de que tudo nele é proporcionado e destinado ao bem comum, mas não ao comunismo.
Com efeito, a Rerum Novarum veio definir posições que ainda hoje pautam as questões sociais do Direito do Trabalho [10], pois que fazer bem às almas de todos, operários ou patrões, é domínio da Igreja, e, indo até eles para vencer o erro, ela desbravou novos horizontes para si, compartindo-os com o mundo: soube exercer a missão de proteger a dignidade humana.
Mas ela não se eximiu também de alertar que, no final das contas, “é mais feliz aquele que dá do que aquele que recebe” (cf. At 20,35), razão pela qual cada um dê conforme houver decidido em seu coração (cf. 2Cor 9,7), para o aperfeiçoamento da sociedade. Melhor será, então, que cada um coloque à disposição dos outros o bem que recebeu, como para fazer progredir todo o Estado. É nessa comunhão de bens — “economia dos direitos e dos deveres que ensina a filosofia cristã” [11] — que são edificadas as melhores promessas de paz.
A Leão 13, portanto, não ou despercebido o seu papel de ensinar, santificar e, como veremos, de governar, pois ainda afirma: “Nem se pense que a Igreja se deixa absorver de tal modo pelo cuidado das almas, que põe de parte o que se relaciona com a vida terrestre e mortal. Pelo que em particular diz respeito à classe dos trabalhadores, ela faz todos os esforços para os arrancar à miséria e procura-lhes uma sorte melhor” [12].
Neste sentido, antes que houvesse SUS, havia Santas Casas de Misericórdia destinadas ao cuidado integral e gratuito da saúde [13]; antes que houvesse universidades, não deixava de haver ensino nas Casas Religiosas [14]; antes que houvesse leis sociais de trabalho, houve a preocupação da Igreja pela classe operária.
Logo, se queremos hoje regenerar nossa sociedade, por que não olharmos outra vez para nossas origens radicadas no Evangelho?
Assim como cabe à Igreja o dever primordial de proteger as almas, cabe ao Estado favorecer esta promoção, além de proteger tudo que lhe possa ser afim, tal como a propriedade particular, a família, e as condições humanitárias adequadas.
Promovessem os países estes bens, e a suspensão do movimento emigratório se desfaria por si, pois quem quereria trocar a sua pátria por uma região estrangeira, se em sua terra natal encontrasse os meios de levar uma vida digna [15]?
Comprova-se, nesse contexto, quão acertadas foram as intuições e as atitudes de Leão 13, e o ponto de inflexão que a Rerum Novarum significou nesta revisão de conceitos do que é o trabalho humano e a sua dignidade, cujos os de lá para cá, aliás, foram imensos [16].
Numa esteira retrospectiva, seu alcance foi muito além do mero setor operário, pois que ela ensinou aos homens que a harmonia vivida em sociedade é um esteio de ordem e progresso, de acordo com aquelas palavras do sábio: “o irmão que é ajudado por seu irmão, é como uma cidade forte” (Pr 18,19).
Este Brasil pode, nesta perspectiva, crescer e prosperar ainda mais, pois aqui há germes de união capazes de promover no setor servil o estímulo pelo trabalho dedicado e bem-feito, que favoreça às classes que coordenam e guiam esses mesmos trabalhos, numa permuta amistosa de ofícios.
Se medíssemos, para além das providenciais configurações geográficas, a estatura deste Brasil edificado sobre os alicerces da harmonia social e do trabalho justo, divisaríamos a força e a potência desta nação. Protegesse o Estado as sociedades fundadas segundo o Direito, sem excessivas ingerências nas molas íntimas que lhe dão vida, e a prosperidade nos viria por acréscimo.
Em resumo, “constituída assim a Religião em fundamento de todas as leis sociais, não é difícil determinar as relações mútuas a estabelecer entre os membros para obter a paz e a prosperidade da sociedade. As diversas funções devem ser distribuídas da maneira mais proveitosa aos interesses comuns, e de tal modo, que a desigualdade não prejudique a concórdia” [17].
Ao cabo, Leão 13 não deixa de frisar qual o medicamento a empregar na cura de toda essa questão social:[18] caridade, eis a solução definitiva [19]. “Tome cada um a tarefa que lhe pertence; e isto sem demora, para que não suceda que, adiando o remédio, se torne incurável o mal, já de si tão grave [20].”
Sensata escolha do papa Leão 14
Neste contexto compreende-se melhor o acertado juízo do atual papa, no sentido de resgatar não só a memória de seu homônimo, mas também as suas atitudes ponderadas, tais como a desta encíclica. Deveras, o recém-eleito Robert Prevost enfatizou a razão que o levou a eleger o nome de Leão: “[…] a principal é que o papa Leão 13, com a histórica encíclica Rerum Novarum, abordou a questão social no contexto da primeira grande revolução industrial; e, hoje, a Igreja oferece a todos a riqueza de sua doutrina social para responder a outra revolução industrial e aos desenvolvimentos da inteligência artificial, que trazem novos desafios para a defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho” [21].
Abre-se, doravante, para o papa e os líderes de nossa sociedade, a ingente tarefa de enfrentar os desafios atuais, não menos difíceis do que aqueles lidados por Leão 13 na Rerum Novarum.
Mas, segundo podemos afiançar, a sensibilidade de Leão 14 em face aos desafios é fina e criteriosa, pelo que, em breve – assim almejamos –, ser-nos-ão brindadas respostas claras e inteligentes, próprias a homens que fazem dos momentos difíceis a ocasião de se tornarem memoráveis, à semelhança de um farol que se torna inesquecível, por ter iluminado as noites do mundo [22].
[1] Cf. Leão XIII. Carta Encíclica Rerum Novarum, de 15 de maio de 1891. Palavras introdutórias. Disponível em: https://www.vatican.va/content/vatican/pt.html.
[2] Cf. Código de Direito Canônico. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2004, Parte II – Da constituição hierárquica da Igreja, cân. 375; cân. 330-334; etiam: João Paulo II. Constituição Apostólica Divinus Perfectionis Magister, de 25 de jan. de 1983: “[…] a Sé Apostólica, desde tempos imemoriais, pela importante missão que lhe foi confiada de ensinar, santificar e governar o Povo de Deus, propõe à imitação, veneração e invocação dos fiéis homens e mulheres que sobressaem pelo fulgor da caridade e das outras virtudes evangélicas […]”. (Cursivas pessoais).
[3] Que em latim diz-se “rerum novarum”. Palavras com as quais o Pontífice enceta sua memoranda Encíclica.
[4] Cf. Leão XIII. Carta Encíclica Rerum Novarum, n. 1.
[5] Cf. ibid.
[6] Código de Direito Civil. Parte geral. Livro I, Título I, Cap. I, art. 1º.
[7] Leão XIII. Carta Encíclica Rerum Novarum, n. 7.
[8] Leão XIII. Carta Encíclica Rerum Novarum, n. 8.
[9] Leão XIII. Carta Encíclica Rerum Novarum, n. 9.
[10] Neste sentido, é de interesse a leitura da seguinte obra: Cardoso, Jair Aparecido. Rerum Novarum: a influência da cultura social cristã no Direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2019;
[11] Leão XIII. Carta Encíclica Rerum Novarum, n. 9.
[12] Leão XIII. Carta Encíclica Rerum Novarum, n. 15.
[13] Além de certos estabelecimentos desses ora pertencerem à gerência estatal, cumpre salientar o papel que desempenharam na promoção da saúde comum, como, aliás, não deixam de dar provas, hoje, hospitais coordenados por religiosos, notadamente o Santa Catarina, localizado no coração de São Paulo e, por anos consecutivos, considerado entre os melhores de nossa nação (cf. Newsweek. The World’s Best Hospitals, 2018-2024. Disponível em: https://rankings.newsweek.com/worlds-best-hospitals-2025/brazil).
[14] Cito aqui o suficiente exemplo do Caraça, colégio conhecido pela sua formação de alto quilate intelectual e moral, que forjou figuras ilustres desse nosso Brasil, dentre as quais dois Presidentes da República: os mineiros Afonso Pena (1906-1909) e Artur Bernardes (1922-1926). Além destes, diversos políticos, magistrados, médicos e, é claro, religiosos.
[15] Cf. Leão XIII. Carta Encíclica Rerum Novarum, n. 27-28.
[16] Interessa ainda salientar a ulterior apreciação do Papa Pio XI (1922-1939): “[…] a Encíclica [Rerum Novarum] de Leão XIII se demonstrou com a longa experiência do tempo a Magna Carta em que se deve basear como em sólido fundamento toda a atividade cristã no campo social” (cf. Pio XI. Carta Encíclica Quadragesimo Anno, de 15 de maio de 1931. Palavras conclusivas. Disponível em: https://www.vatican.va/content/pius-xi/pt/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19310515_quadragesimo-anno.html).
[17] Leão XIII. Carta Encíclica Rerum Novarum, n. 33.
[18] Leia também o assunto da “questão social” em: João Paulo II. Carta Encíclica Centesimus annus, no centenário da Rerum Novarum, de 1º de maio de 1991. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_01051991_centesimus-annus.html).
[19] Sem pretender uma redação exaustiva, apenas mencionamos aqui a conveniência da leitura da obra (em espanhol) Compendio de la doctrina social de la Iglesia. Madrid: BAC, 2009, com ênfase nas páginas 31 a 54.
[20] Leão XIII. Carta Encíclica Rerum Novarum, n. 35.
[21] Leão XIV. 1º encontro com os Cardeais, 10 de maio de 2025. Disponível em: https://www.vatican.va/content/leo-xiv/pt/speeches/2025/may/documents/20250510-collegio-cardinalizio.html. (Cursivas pessoais).
[22] Alusão à homilia de Leão XIV. Missa Pro Ecclesia, celebrada com os Cardeais eleitores, 9 de maio de 2025. Disponível em: https://www.vatican.va/content/leo-xiv/pt/homilies/2025/documents/20250509-messa-cardinali.html.
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