Depoimento especial: meio de prova com necessárias adaptações
3 de junho de 2025, 6h07
Embora o recente artigo “Depoimento especial paulista é antiético e autoritário“, publicado nesta ConJur, suscite um debate necessário, ele parte de premissas que, a nosso ver, merecem um olhar mais aprofundado e contextualizado. O texto critica a entrevista prévia realizada por técnicos do Poder Judiciário de São Paulo com crianças e adolescentes antes da tomada do depoimento especial (DE), alegando violação ao contraditório e à ampla defesa devido ao não acompanhamento do procedimento pelas partes e à ausência de gravação.
Como profissionais que atuam e pesquisam o depoimento especial, sentimo-nos convocados ao debate. Nosso objetivo é esclarecer a natureza, a finalidade e as distinções fundamentais entre a entrevista prévia e o depoimento especial propriamente dito.
Longe de configurar um ato antiético ou autoritário, a entrevista ou avaliação técnica prévia ao DE, quando corretamente entendida e realizada, é um instrumento fundamental de proteção integral às crianças e adolescentes, essencial para a humanização da justiça e para a salvaguarda de seus direitos, em consonância com a Lei nº 13.431/2017.
Depoimento especial: meio de prova com necessárias adaptações
A Lei nº 13.431/2017 representa um divisor de águas na proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência ao estabelecer formas para que a sua oitiva seja protegida e humanizada. A lei prevê o depoimento especial como procedimento adequado de oitiva protegida perante a autoridade policial ou judiciária (artigo 8º), e a sua natureza é inequivocamente probatória, conforme disposto no artigo 22, caput, do Decreto nº 9.603/2018, que regulamenta a referida lei:
“O depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária com a finalidade de produção de provas.”
Portanto, o depoimento especial é meio de prova utilizado para a formação da convicção da autoridade judiciária quando da prolação de sentença penal, seja para condenar ou para absolver a pessoa acusada de, supostamente, ter cometido violência contra uma criança ou adolescente.
Sendo meio de prova, o depoimento especial submete-se ao contraditório e à ampla defesa, como consigna expressamente o artigo 11, caput, parte final, da Lei nº 13.431/2017. A defesa técnica acompanha o ato em tempo real e pode formular perguntas, que são adaptadas pelo entrevistador forense (artigo 12, IV e V).
Entretanto, a oitiva de crianças e adolescentes não pode ser uma réplica da inquirição de adultos, sob pena de causar nova violência (institucional) à vítima e gerar a sua revitimização. O DE, como afirmamos em outra ocasião, “reúne características específicas que diferenciam a audiência das demais. Em síntese panorâmica, a oitiva é conduzida por profissional capacitado, respeitando protocolos científicos fundamentados na Psicologia Cognitiva Experimental e em ambiente apropriado e acolhedor” (OLIVEIRA; FAIZIBAIOFF, 2022, p. 55). O foco é a não revitimização e o respeito à condição peculiar do depoente como pessoa em desenvolvimento.
O DE busca considerar as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos e não meros instrumentos para extração de provas. Justamente por isso, a Lei nº 13.431/2017 estabelece uma sistemática específica para a produção da prova, que não se submete à integralidade do regime ordinário previsto no Código de Processo Penal.
Permissa vênia, uma primeira crítica infundada apresentada pelo autor do artigo citado acima em face do procedimento do depoimento especial reside na alegação de que o o do entrevistador forense aos autos processuais seria irregular e prejudicial. Tal assertiva não encontra respaldo legal ou técnico.
A Lei nº 13.431/2017, em seu artigo 12, inciso I, veda expressamente que o profissional especializado realize a leitura de peças processuais para a criança ou o adolescente, com o nítido objetivo de impedir a contaminação do relato e evitar a indução de respostas ou a inserção de falsas memórias. Contudo, a legislação não proíbe, e nem poderia razoavelmente fazê-lo, que o próprio entrevistador tenha o prévio aos autos. Pelo contrário, tal conhecimento contextual é frequentemente essencial para que o profissional possa desempenhar adequadamente seu papel de facilitador da comunicação.
Compreender o panorama mais amplo em que a suposta violência ocorreu, as dinâmicas familiares envolvidas e os pontos controvertidos da demanda judicial permite ao entrevistador conduzir a oitiva de forma mais sensível e eficaz, especialmente na fase de detalhamento, quando se buscam informações mais específicas após o relato livre e espontâneo da criança ou adolescente. Ademais, o conhecimento prévio dos autos é crucial para a interação entre a sala de depoimento especial e a sala de audiência ou observação, permitindo que o entrevistador compreenda a pertinência dos quesitos formulados pelas partes e os transmita ao depoente de forma clara e adaptada, sem, contudo, introduzir informações não reveladas espontaneamente por este.
Entrevista prévia: instrumento de proteção e avaliação do depoente infantil, não produção probatória
Entretanto, o ponto central de nossa argumentação reside no esclarecimento de que a entrevista ou avaliação prévia não se confunde com o depoimento especial.
Diferentemente do depoimento especial, a entrevista prévia não está prevista expressa e textualmente na Lei nº 13.431/2017. Contudo, como etapa fundamental, está prevista ou implicitamente contida em diversas normativas e protocolos técnicos.
Em nível nacional, a entrevista prévia está prevista nos itens 4.7 e 4.13 do “Protocolo para a escuta especializada e depoimento especial de crianças e adolescentes nas ações de família em que se discuta alienação parental”, anexo à Recomendação CNJ nº 157/2024. No estado de São Paulo, encontra previsão no Protocolo CIJ nº 00066030/11 e no Comunicado Conjunto nº 2.501/2021.
A entrevista prévia é um procedimento anterior e preparatório à coleta da prova judicial. Sua existência, como já defendemos, é crucial, pois “o contato com o sistema de Justiça pode ter o potencial condão de causar medo, ansiedade e insegurança nas pessoas a serem ouvidas enquanto vítimas ou testemunhas, até mesmo quando adultos” (OLIVEIRA; FAIZIBAIOFF, 2022, p. 50).
Assim, “a avaliação psicológica prévia à audiência é imprescindível para garantir a integridade psicológica das crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, já que a mera aplicação de protocolos de entrevista forense para conduzir o DE não exclui, por si só, o risco de danos psíquicos ou revitimização desses sujeitos nos meandros do processo penal” (FAIZIBAIOFF; TARDIVO, 2021, p. 175). Trata-se de um ato preparatório vocacionado a garantir que o depoimento especial (que lhe é posterior), caso seja efetivamente realizado, ocorra de modo humanizado e não revitimizante.

O Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF) destaca a importância de “ter previamente informações básicas sobre o desenvolvimento da criança ou adolescente (motor, cognitivo, linguagem, emocional), seu contexto sociocultural e o impacto de experiências traumáticas no seu desenvolvimento”, o que o entrevistador “ajudará o(a) entrevistador(a) a cumprir melhor sua missão” (SANTOS; GONÇALVES; ALVES JÚNIOR, 2020, p. 23). Santos, Viana e Gonçalves (2017, p. 277) complementam que, “antes da realização do depoimento propriamente dito, os entrevistadores executam uma fase de preparação, que inclui a obtenção de informações sobre os entrevistados (…) verificando se há qualquer tipo de deficiência, comprometimento de linguagem, uso de medicamentos, problemas emocionais (…) que possam afetar sua capacidade em participar da entrevista”.
Os objetivos da entrevista prévia são eminentemente protetivos e incluem conhecer a dinâmica familiar, avaliar as condições psicoemocionais, identificar a rede de apoio, estabelecer rapport (vínculo intersubjetivo que favoreça a espontaneidade e a confiança do depoente infantojuvenil para com o profissional entrevistador), esclarecer para a criança ou adolescente alguns aspectos do procedimento do DE e, crucialmente, avaliar a própria viabilidade da tomada do depoimento especial, podendo levar à sua contraindicação, hipótese na qual, se a recomendação técnica for acolhida pela autoridade judiciária, o depoimento especial sequer é realizado.
Nessa linha de raciocínio, é imperativo que, durante a entrevista prévia, o técnico não inquira a criança ou adolescente sobre o mérito da acusação ou os detalhes da suposta violência. Essa não é a sua finalidade. Seu foco é a avaliação do estado da criança/adolescente e a garantia de seus direitos, notadamente do direito à informação. Se tal incursão indevida ocorre, como realmente vem acontecendo na prática de algumas Comarcas, trata-se de um erro de aplicação, que demanda capacitação e correção, mas não invalida a concepção do instituto. Nesse sentido, a crítica do Dr. Donadon, ao apontar essa possível confusão prática, toca em um ponto sensível, mas se equivoca ao atribuir o vício à natureza da entrevista prévia, e não aos desvios em sua execução.
Não é objetivo da entrevista prévia verificar nada relacionado ao mérito da acusação penal, isto é, detalhes específicos a respeito da suposta violência (Quem praticou? Como? Onde? Quando? Quantas vezes?). A Comarca ou o profissional que fazem da entrevista prévia um “depoimento especial” prévio estão absolutamente equivocados e, por isso, é necessário que o procedimento seja corrigido.
Entrevista prévia não serve para produção de prova sobre a violência. Não há “laudo” pericial a ser emitido após a entrevista prévia, mas apenas um singelo relatório informativo a respeito das condições psicológicas da criança ou adolescente, se ela reúne o mínimo necessário para prestar o depoimento, se prefere fazê-lo ao técnico ou diretamente à autoridade judiciária (art. 11, §1º, da Lei nº 13.431/2017) ou se não quer prestar depoimento e prefere permanecer em silêncio (art. 5º, inciso VI, da Lei nº 13.431/2017). Basicamente isso.
Tendo isto em vista, a ausência de gravação e da presença da defesa na entrevista prévia justifica-se pela sua natureza. Não sendo ato de produção de prova, mas uma avaliação técnica, frequentemente de índole psicológica ou psicossocial, está resguardada pelo sigilo profissional ético. Exatamente por isso, não faz sentido que o profissional advogado (assim como o membro do Ministério Público e o próprio magistrado) acompanhe a entrevista prévia, sob pena de comprometer a realização do trabalho ético psicossocial.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, no Comunicado CG Nº 512/2024, acertadamente, recomenda que não seja permitida a participação de advogados nas entrevistas psicossociais. A presença de terceiros contamina o campo intersubjetivo necessário para o estudo e a verificação das condições psicológicas da criança para depor e o risco de ocorrência de danos psíquicos associados ao DE (FAIZIBAIOFF; TARDIVO, 2021).
Basta pensarmos em nós sendo submetidos a uma cirurgia e terceiros, além da equipe médica e paciente, querendo adentrar o espaço. Se o médico os autoriza, contaminarão a sala de cirurgia, corrompendo a assepsia necessária ao ato e colocando nossa vida em risco. No campo intersubjetivo, ocorre o mesmo. Evidentemente, o contraditório e a ampla defesa serão exercidos no depoimento especial (artigo 11, caput, parte final, da Lei nº 13.431/2017), este sim um ato probatório.
Entrevista prévia e o contraditório: reafirmando a distinção
Entendido corretamente o instituto da entrevista prévia, é forçoso concluir, com as devidas vênias, que a crítica do artigo não se sustenta, porquanto não se trata de ato de produção de prova.
As garantias do contraditório e da ampla defesa incidem sobre os atos que visam formar o convencimento do julgador sobre o mérito da causa, o que não é o caso da entrevista prévia, procedimento preliminar destinado ao planejamento do depoimento especial, com vistas a evitar que seja fonte de revitimização da criança.
A sua natureza técnica, avaliativa e sigilosa justifica a ausência da defesa e da gravação. O contraditório é plenamente assegurado no depoimento especial, momento quando a prova é produzida e as partes podem efetivamente atuar.
Conclusão
O depoimento especial representa um avanço civilizatório na oitiva de crianças e adolescentes. A entrevista prévia, por sua vez, é um componente essencial desse sistema, atuando como salvaguarda contra a revitimização e como instrumento de avaliação da viabilidade e adequação da oitiva protegida.
As críticas que desconsideram a natureza e a finalidade distintas desses institutos acabam por obscurecer o debate e comprometer a correta aplicação de um sistema legal que visa, acima de tudo, proteger os mais vulneráveis.
É fundamental que a comunidade jurídica, incluindo todos os seus atores, aprofunde a compreensão sobre a entrevista prévia, não como um ato de produção de prova às escondidas, mas como uma etapa técnica, protetiva e indispensável para a humanização da justiça e para a garantia integral dos direitos de crianças e adolescentes.
Distorções na prática devem ser corrigidas com formação e aprimoramento contínuo, sem, contudo, invalidar a importância e a juridicidade de um procedimento pensado para proteger e acolher.
O depoimento especial paulista não é — e não deve ser — antiético e autoritário. Pelo contrário, a entrevista prévia visa justamente garantir uma oitiva ética e justa da criança ou adolescente, que respeite a sua dignidade, os seus direitos e não a trate meramente como meio de prova.
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Referências
FAIZIBAIOFF, D.S.; TARDIVO, L.S.L.P.C. Avaliação do dano psíquico associado ao depoimento especial. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, v. 12, n. 1, p. 154-179, 2021. Disponível aqui
OLIVEIRA, H.M.; FAIZIBAIOFF, D.S. Depoimento especial por videoconferência: um relato de experiência no Poder Judiciário paulista. Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, ano 23, nº 63, p. 47-73, 2022. Disponível aqui
ROVINSKI; S.L.R.; PELISOLI, C.L. Tomada de decisão em situações de violência sexual contra crianças e adolescentes. In: ROVINSKI; S.L.R.; PELISOLI, C.L. Violência sexual contra crianças e adolescentes: testemunho e avaliação psicológica. São Paulo: Vetor, 2019. p. 213-230.
SANTOS, B. R.; GONÇALVES, I. B.; ALVES JÚNIOR, R. T. (Orgs.). Protocolo brasileiro de entrevista forense com crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. São Paulo e Brasília: Childhood Brasil: CNJ: UNICEF, 2020.
SANTOS, B. R.; VIANA, V. N.; GONÇALVES, I. B. Crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência sexual: metodologias para tomada de depoimento especial. Curitiba: Appris, 2017.
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