Opinião

Doutrinadinhos: o sistema prisional e a morte da personalidade humana

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3 de junho de 2025, 19h16

Recentemente, em visita à Cidade da Polícia no Rio de Janeiro, deparei-me com uma cena trivial, provavelmente, para quem é acostumado a lidar com o sistema de justiça criminal e sua truculência, mas que me marcou de maneira diferencial. Talvez seja certo o ditado popular que diz que “o óbvio também precisa ser dito”, ou, nesse caso, também precisa ser visto.

A cena à qual me refiro era a visão de três jovens meninos, provavelmente no início da vida adulta. De pele preta e cabelos rigorosamente raspados, estavam de costas para mim, e andavam enfileirados, usando camisetas brancas, shorts azuis e chinelos (típico uniforme fornecido pelo Estado aos seus custodiados). Estavam cabisbaixos, e as algemas davam conta dos braços presos, rentes às costas e inertes. Seguiam acompanhados de dois policiais penais, um de cada lado, e iam em direção a uma das Delegacias Especializadas do enorme complexo da Cidpol. Chamou a atenção a cadência no caminhar, domesticado pela firme voz dos agentes penais, que diziam palavras de ordem e portavam fuzis atravessados ao peito. Da minha visão, os três jovens pareciam um só.

Em minha companhia, naquele momento, estava um policial experiente, que havia acabado de me receber em outra Delegacia Especializada, e conversávamos descontraídos, até então, sobre situações inusitadas que ele havia vivenciado dentro do sistema de justiça. Ao visualizar a cena em questão, o agente não segurou o sorriso de canto de boca, que logo precedeu suas espontâneas palavras de satisfação: “estão doutrinadinhos, olha lá”. Pois é. Estavam mesmo.

Michel Foucault, quando escreveu Vigiar e Punir, descreveu a imposição das disciplinas sobre o corpo como uma tática que opera mediante aquilo que ele denomina como anatomia política do detalhe [1]. Segundo sua observação, para o efetivo exercício do controle, as minúcias são imprescindíveis e ganham protagonismo, de maneira que os regramentos e ritos impostos não ignoram qualquer acaso: tudo é pensado, arquitetado, e o poder adentra, sorrateiramente, através daquilo que ele cunha como disciplina do minúsculo [2].

Rigoroso, perverso e calculado

Spacca

A padronização da aparência dos presos, como pude concluir desde então, não se resume a um procedimento de segurança costumeiro, neutro, ou apolítico. Em verdade, mais do que um projeto de docilização dos corpos, é, também, uma tática de legitimação da violência. No cárcere, a aniquilação das características pessoais básicas do indivíduo, aquelas que o constituem e o fazem existir no mundo como um alguém, é um verdadeiro “mal necessário”, ou, em outras palavras, uma forma de adubar o terreno para o que está por vir. Afinal de contas, sem impor essa pequena-grande-morte à personalidade do apenado (ou simplesmente detento provisório), como se poderia justificar a livre distribuição de violência e submissão, que não obedece a critérios lógicos, normativos, e muito menos humanos, senão os arbitrariamente impostos pelos que a exercem?

Igor Mendes, na obra referenciada pela professora Vera Malagutti como “talvez o mais importante livro brasileiro de criminologia dos últimos tempos”, ao contar sua breve (mas longa) experiência nos presídios do Rio de Janeiro em meados de 2014, já se referia aos procedimentos que regem a vida no submundo da cadeia afirmando que “nada ali é fortuito, mas obedece a uma lógica rigorosa, certamente perversa, mas metodologicamente calculada” [3].

Assim, para que a operacionalidade deste poder punitivo-encarcerador, centrada na distribuição indistinta de violência, tanto física quanto moral, se efetive na sua concretude, é preciso, tal qual retratou aquela cena descrita no início do texto, a transmutação de três jovens negros em um mesmo, destituídos de história, de verdade, de luz. É necessária a sua transformação em um objeto desprovido de brilho, pois só assim será possível reduzir (ou retirar completamente) a possibilidade de que se faça qualquer juízo acerca da barbárie que lhes é imposta.

Por outro lado, se Foucault diria que a imposição das disciplinas nas mais diversas instituições da sociedade, a partir dos séculos 17 e 18, representaram uma espécie de mudança na estrutura do poder punitivo, que antes tinha como característica central a expiação no corpo do condenado, através da pena publicamente espetacularizada, certamente não se poderia concluir desta forma tomando como base a realidade brasileira. Aqui, pena corporal e disciplina coexistem e sempre coexistiram [4], sendo a segunda apenas uma etapa que antecede e sucede a primeira, em um ritual constante.

Se a pena no corpo ainda é institucional, cotidiana e usual, embora seja, também, uma realidade ofuscada – ainda há quem acredite na velha ideia de prevenção especial positiva da pena, que a concebe como “ressocializadora” – a padronização da aparência dos presos faz parte da construção da sua imagem como inimigo, assim identificado sem distinções, tornando-o, paulatinamente, apto para a recepção da dor, pois, conforme preleciona Juarez Tavares “a pena executada é degradante, desumana, humilhante e produtora de destruição da personalidade do executado” [5].

Enfim. A barbárie do submundo do cárcere, frequentemente citada nos livros de criminologia e nos escritos críticos de muitos juristas neste país, ainda não ostenta, embora devesse, um caráter unânime de obviedade. Repetindo a ideia inicial do artigo, talvez seja certo o ditado popular que diz que “o óbvio também precisa ser dito” ou, nesse caso, também precisa ser visto. Talvez se a víssemos com mais frequência, tal qual a vi naquela cena mundana na Cidade da Polícia do Rio de Janeiro, pudéssemos repensar a nossa forma brutal de pensar e agir sobre a questão criminal.

 


Referências bibliográficas

BATISTA, Nilo. Pena Pública e Escravismo. Capítulo Criminológico: Revista de las Disciplinas del Control Social, Maracaibo, vol. 34, n. 3, pp. 279-321, jul.-set. 2006.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 42.ed. 2014.

MENDES, Igor. A pequena prisão. São Paulo: n-1 edições. 2017.

TAVARES, Juarez. Crime, crença e realidade. Rio de Janeiro: Da Vinci. 2023.

[1] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 42.ed. 2014., p.137.

[2] Ibidem.

[3] MENDES, Igor. A pequena prisão. São Paulo: n-1 edições. 2017. p. 76.

[4] A respeito do imbricamento entre a pena pública e privada no Brasil: BATISTA, Nilo. Pena Pública e Escravismo. Capítulo Criminológico: Revista de las Disciplinas del Control Social, Maracaibo, vol. 34, n. 3, pp. 279-321, jul.-set. 2006.

[5] TAVARES, Juarez. Crime, crença e realidade. Rio de Janeiro: Da Vinci. 2023. p.183.

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