O amor e a advocacia nos tempos do cólera
3 de junho de 2025, 8h00
Tomo de empréstimo o belo livro de Gabo, Gabriel Garcia Marques, intitulado O Amor nos Tempos do Cólera, para tratar da prática da advocacia contra o Estado em períodos autoritários.
Comecemos pelo livro, isto é, pelo amor. A história se a no século 19 e trata dos labirintos e desencontros entre Florentino Ariza e Fermina Daza, que se apaixonaram e aram dois anos trocando cartas de amor, até que ele a pede em casamento. Ela concorda, mas impôs como condição que esperassem dois anos para se casar. Quase ao final dos quatro anos, o pai de Fermina descobre a troca de cartas e, furioso, a leva para outra cidade, proibindo o relacionamento, pois Florentino era um pobre telegrafista. Constata-se, tristemente, os preconceitos em razão de status social, idade, riqueza, origem etc., que impactam relacionamentos.
Após algum tempo, Fermina casa com Juvenal Urbino, médico rico e com estudos no exterior, e, apesar de não amar o marido, com ele vive muitas décadas de um casamento feliz, monótono e cumpridor das obrigações impostas em situações como tais.
Florentino, contudo, segue apaixonado, como diz o próprio Gabo, relator onipresente da história: “Pode-se estar apaixonado por várias pessoas ao mesmo tempo, por todas com a mesma dor, sem trair a nenhuma”. Assim, Florentino segue sua vida, plena de paixões fugazes.
Após a morte de Juvenal, Florentino retoma os contatos com Fermina e a vai (re)conquistando pouco a pouco. ados 51 anos, nove meses e quatro dias, Fermina finalmente se rende ao amor de Florentino, e ficam juntos em uma viagem de barco ao longo dos rios da Amazônia colombiana, infestados pelo cólera, que é uma doença infecciosa que pode levar à morte.
Governo colérico
Faço uma pequena alteração pronominal para seguir adiante. Troco “o” cólera, por “a” cólera, esta significando fúria, raiva, ira, busca de eliminação do outro. É possível existir amor nos tempos atuais, nos quais impera “a” cólera, e esperar mais de 50 anos para se ter a amada em seus braços? Diz Gabo que sim, e concordo com ele, embora nosso tempo seja finito e cruel. O amor com final feliz, após mais de 50 anos de espera, como o de Florentino e Fermina, só se concretiza na escrita de ficção do realismo fantástico. Triste, mas real.
Uso essa imagem para escrever sobre a advocacia nos tempos coléricos em que vivemos. Segundo relatos de João Osório de Melo, correspondente desta ConJur nos Estados Unidos, Donald Trump vem pressionando escritórios de advocacia naquele país a fim de impedir que advoguem causas contrárias aos interesses de seu governo e de seus aliados. A ameaça é o cancelamento das chamadas security clearances, uma espécie de credencial que garante o a informações do governo, bem como a dependências de órgãos públicos, sem a qual não se consegue obter informações satisfatórias para a defesa de seus clientes. Outra sanção é o cancelamento de contratos dessas bancas com o governo, ou, ainda pior, a ameaça aos clientes que mantem contratos com os escritórios considerados “inimigos do governo”, a fim de que os rescindam. Algumas bancas resistiram às ordens executivas de Trump, enquanto outros capitularam e firmaram acordos pagando indenizações ao governo.

Foi noticiado que a American Bar Association (ABA), espécie de OAB norte-americana, começa a se insurgir contra essas medidas, e que procuradores-gerais de mais de 20 estados e do distrito de Columbia, todos do Partido Democrata, declararam o compromisso de apoiar os escritórios de advocacia que estão enfrentando Trump, e incitando os que capitularam a rescindir seus acordos.
Nessa reportagem consta a declaração do próprio Trump: “Muitos escritórios de advocacia estão assinando acordos com Trump. US$ 100 milhões, outros US$ 100 milhões, e os escritórios dizem: ‘Não fizemos nada errado’. E eu concordo, eles não fizeram nada errado. Mas, diabos, eles estão me dando muito dinheiro, considerando que não fizeram nada errado”.
Será que algo semelhante poderia ocorrer em nosso país? Não se tem notícias de algo assim no Brasil pós-1988, mas é necessário ter cautela. Quais bancas resistiriam à tal pressão?
Exatamente por isso é importante estarmos atentos ao que se a nos Estados Unidos sob Trump com referência ao exercício da advocacia e sua independência em face dos governos – qualquer que seja a opção ideológica. Creio que o advogado é indispensável à istração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, conforme consta de nossa Constituição, mas um governo colérico pode alterar tudo, pressionando os advogados, que se constituem em um dos pilares da democracia, sufocando-os financeiramente.
Entre 1964 e 1988 várias décadas se aram. Se não ficarmos atentos, podemos ter que esperar mais de 50 anos para ter a democracia de volta, tal como Florentino Ariza aguardou para ter Fermina Daza em seus braços. E, na vida vivida, nem sempre o final é feliz.
É muito difícil amar e advogar em tempos coléricos, como relatou Garcia Marques.
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