Perigos ocultos do sistema de precedentes na Justiça do Trabalho
3 de junho de 2025, 7h04
Depois das experiências exitosas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça na implementação de um sistema de precedentes judiciais vinculantes, por meio dos recursos extraordinários submetidos ao rito de repercussão geral e dos recursos especiais repetitivos, o Tribunal Superior do Trabalho decidiu aprimorar o seu próprio modelo de julgamento de recursos repetitivos, por meio da Resolução nº 224, de 25 de novembro de 2024.

Por meio dela, a corte superior trabalhista regulamentou no âmbito do processo do trabalho a aplicação das previsões contidas no Código de Processo Civil sobre a gestão de precedentes qualificados (artigo 896-B da CLT), com foco na uniformização da jurisprudência e diminuição da litigiosidade [1], na mesma linha já desenhada pelas leis nº 13.015/2014 e 13.467/2017.
Em resumo, à semelhança dos outros recursos excepcionais, o trânsito do recurso de revista à instância superior a a ser condicionado ao filtro de precedentes qualificados, evitando-se o processamento de apelos contrários às teses vinculantes adotadas pelo TST. Da decisão regional de negativa de seguimento do recurso somente seria cabível agravo interno direcionado ao próprio TRT, salvo situações excepcionais combatidas por meio de reclamação.
Não obstante seja bem-vinda a alteração, com o objetivo de racionalizar e tornar mais célere a prestação jurisdicional, a implementação do sistema deve guardar alguns cuidados e cautelas.
O ponto crucial de diferença entre o sistema de precedentes qualificados geridos pelo STF e pelo STJ, em face daquele agora construído pelo TST, é a estrutura recursal hierarquicamente unificada da Justiça do Trabalho.
Dito de outro modo, o recurso de revista, ao contrário dos recursos extraordinário e especial, que guardam constitucionalmente funções específicas de uniformização da interpretação da Constituição (artigo 102, III, da CF/88) e da legislação federal (artigo 105, III, da CF/88), alberga em suas hipóteses de cabimento ambas essas possibilidades [2].
Usurpação
Na prática, isso quer dizer que toda a interpretação constitucional relativa aos direitos trabalhistas, na via difusa, a pelo crivo do TST antes de chegar ao STF. Se antes da implementação do sistema de precedentes qualificados isto não representava um problema, porque toda a violação constitucional, em tese, poderia ser objeto de recurso extraordinário, agora não mais. Travado o caminho do recurso de revista em segundo grau, a parte não terá mais o o ao STF pela via recursal, se a tese por ela defendida confrontar com a jurisprudência do TST em algum de seus precedentes qualificados.

A questão da possível usurpação da competência do STF pela supressão da sua função de intérprete último da Constituição não é nova no âmbito processual trabalhista. Foi o ocorrido com a aplicação do artigo 896-A, § 5º, da CLT, o qual previa a irrecorribilidade da decisão do relator que, em sede de agravo de instrumento, decretava a ausência de transcendência do recurso de revista. Vezes houve em que o TST negou a existência de transcendência em matérias com repercussão geral reconhecida, o que subvertia, obviamente, a ordem constitucional [3]. Tanto assim o foi, que a própria corte superior yrabalhista declarou a inconstitucionalidade do dispositivo [4].
Ademais, diante da abrangência das hipóteses de cabimento do recurso de revista, há o risco concreto de sobreposição das jurisdições do STF e do TST em matéria constitucional, o que pode gerar conflitos desnecessários. Exemplo disso é o caso da “pejotização”, que conta com um recurso de revista repetitivo afetado ao Plenário do TST (IncJulgRREmbRep n. 373-67.2017.5.17.0121) e, ao mesmo tempo, com recurso extraordinário de repercussão geral reconhecida (ARE 1.532.603 – Tema 1.389), ambos pendentes de julgamento.
Ainda, após a adoção do procedimento previsto na Resolução nº 224/2024, haverá maior restritividade de o à jurisdição constitucional na esfera difusa. O debate que poderia organicamente chegar ao STF pela via do recurso extraordinário, seja para a discussão de questões novas ou por outras albergadas pela teoria das distinções (distinguishing), em alguma medida, será afetado pela atuação jurisdicional do TST, conforme a maior ou menor contenção na criação de teses sobre temas constitucionais no julgamento de recursos de revista repetitivos. Isso tende, com o tempo, ao privilégio da busca do STF pela via do controle concentrado de constitucionalidade [5], caminho este não ível ao litigante comum.
Por fim, há também preocupação quanto ao caráter dialógico da construção dos precedentes qualificados, seja na abertura da Corte Superior Trabalhista para a issão de colaboradores processuais (amici curiae), seja na busca de representatividade dos diversos setores sociais envolvidos. O TST já deu sinalização no sentido de que o artigo 896-C, §§ 13 a 15, da CLT, diz respeito exclusivamente ao recurso extraordinário interposto no âmbito da Corte Superior, vetando a transposição do debate constitucional ao STF quanto aos recursos de revista sobrestados em segundo grau [6].
Disso decorre que, nos precedentes qualificados, a faculdade de interposição do recurso extraordinário ficaria limitada às partes do processo piloto, ao Ministério Público do Trabalho e a eventuais outros litigantes que já tenham ado o TST, sendo certo que mesmo a posição de amicus curiae, segundo o STF, não garante legitimidade recursal [7]. Restaria a parte prejudicada em segundo grau a hercúlea tarefa de buscar por meio da reclamação ao TST o destravamento do recurso de revista, para então poder ar ocasionalmente o Pretório Excelso, o que não ocorreria caso litigasse na Justiça Comum Federal ou Estadual.
Logicamente, a instalação do sistema de precedentes qualificados na Justiça do Trabalho, em especial no TST, demandará intensa avaliação dos seus impactos institucionais, na gestão processual e na preservação do due process of law. Se a sua adoção, indubitavelmente, reforça o papel da Corte Superior na unificação da jurisprudência trabalhista, por outro lado, não pode servir ao engessamento ou cristalização dos próprios precedentes, tampouco obstaculizar a revisão das teses fixadas em recursos de revistas repetitivos sobre questões eminentemente constitucionais pelo Pretório Excelso. Esses são alguns dos perigos ocultos do sistema de precedentes implantado na Justiça do Trabalho.
[1] Art. 1º-A Cabe agravo interno da decisão que negar seguimento ao recurso de revista interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Tribunal Superior do Trabalho, exarado nos regimes de julgamento de recursos repetitivos, de resolução de demandas repetitivas e de assunção de competência, de acordo com os arts. 988, § 5°, 1.030, § 2°, e 1.021 do C, aplicáveis ao processo do trabalho, conforme art. 896-B da CLT.
§1º Havendo no recurso de revista capítulo distinto que não se submeta à situação prevista no caput deste artigo, constitui ônus da parte impugnar, simultaneamente, mediante agravo de instrumento, a fração da decisão denegatória respectiva, sob pena de preclusão.
§2º Na hipótese da interposição simultânea de que trata o parágrafo anterior, o processamento do agravo de instrumento ocorrerá após o julgamento do agravo interno pelo órgão colegiado competente.
§3º Caso o agravo interno seja provido, dar-se-á seguimento, na forma da lei, ao recurso de revista quanto ao capítulo objeto da insurgência; na hipótese de o agravo interno ser desprovido, nenhum recurso caberá dessa decisão regional.
§4º As reclamações fundadas em usurpação de competência do Tribunal Superior do Trabalho ou desrespeito às suas decisões em casos concretos (C, art. 988, I e II) não se submetem ao procedimento estabelecido neste artigo, conforme expressa disposição do § 5º, II, do art. 988 do C.
§5º As disposições contidas neste artigo aplicam-se às decisões de issibilidade publicadas a partir do 90º dia após o início de sua vigência, que deverá ocorrer na data da publicação.
[2] Art. 896 – Cabe Recurso de Revista para Turma do Tribunal Superior do Trabalho das decisões proferidas em grau de recurso ordinário, em dissídio individual, pelos Tribunais Regionais do Trabalho, quando:
(…)
c) proferidas com violação literal de disposição de lei federal ou afronta direta e literal à Constituição Federal (g.n.).
[3] Ementa: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO. AUSÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO ACERCA DE PONTO SOBRE O QUAL DEVERIA O ÓRGÃO JULGAR MANIFESTAR-SE. OMISSÃO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO ACOLHIDOS COM EFEITOS INFRINGENTES. AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO. RECURSO DE REVISTA. MATÉRIA OBJETO DO TEMA 246 DA SISTEMÁTICA DA REPERCUSSÃO GERAL E DA ADC 16. DECISÃO DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO QUE NÃO RECONHECE A TRANSCENDÊNCIA DA MATÉRIA. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE DÁ PROVIMENTO PARA JULGAR PROCEDENTE A RECLAMAÇÃO (…) 2. Nos termos da jurisprudência desta Corte, o óbice suscitado pelo Tribunal Superior do Trabalho à issão do agravo de instrumento no recurso de revista (ausência de transcendência da matéria) está em descomo com a premissa de que os julgamentos pelo Supremo Tribunal Federal dos paradigmas referidos (Tema 246 e ADC 16) revelam a transcendência da questão debatida nos autos de origem. Dessa desarmonia, resulta a usurpação da competência desta Suprema Corte, pela inissível obstrução da via recursal extraordinária. 3. Embargos de declaração acolhidos, com efeitos modificativos, para dar provimento ao agravo regimental e julgar procedente a reclamação. (Rcl nº 38.529-AgR-ED, relator o ministro Edson Fachin, 2ª Turma, DJe de 24/06/2021, g.n.).
[4] “ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 896-A, § 5º, DA CLT. NORMA QUE DISCIPLINA A IRRECORRIBILIDADE DE DECISÃO UNIPESSOAL PROFERIDA PELO RELATOR EM RECURSO DE COMPETÊNCIA DO COLEGIADO. AFRONTA AOS PRINCÍPIOS DO JUIZ NATURAL (ARTIGOS 5º, LIII, E 111, II, CF/88); DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (ARTIGO 5º, LIV E LV, CF/88) DA ISONOMIA (ARTIGO 5º, CAPUT, CF/88); DA COLEGIALIDADE (DE ACORDO COM O STF, INTEGRANTE DA FORMAÇÃO HISTÓRICA DA ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA NACIONAL, PORTANTO, PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO); DAS GARANTIAS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA (ARTIGO 5º, CAPUT, CF/88). ÓBICE AO EXAME DA MATÉRIA OBJETO DO APELO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INCONGRUÊNCIA DOS PROCEDIMENTOS ADOTADOS PELA LEI NO JULGAMENTO DOS RECURSOS DE REVISTA E DE AGRAVOS DE INSTRUMENTO. FALTA DE RAZOABILIDADE DA INTERPRETAÇÃO LITERAL DO DISPOSITIVO (STF, ADI Nº 1.511-MC). É inconstitucional a regra inserida no artigo 896-A, § 5º, da CLT, ao prever a irrecorribilidade da decisão monocrática proferida pelo relator que rejeita a transcendência da questão jurídica versada no agravo de instrumento em recurso de revista. Tal prática viola os princípios da colegialidade, do juiz natural, do devido processo legal, da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia; impede o exame futuro da controvérsia pelo Supremo Tribunal Federal; revela a incongruência de procedimentos adotados no julgamento de recursos de revista e de agravos de instrumento, o que viola o princípio da razoabilidade; obstaculiza o exercício da competência reservada, por lei, às Turmas deste Tribunal; dificulta a fixação de precedentes por este Tribunal, considerando a ausência de parâmetros objetivos fixados para o reconhecimento da transcendência e a atribuição de elevado grau de subjetividade por cada relator – que não constitui órgão julgador, mas, sim, instância de julgamento, cuja atuação decorre de delegação do Colegiado. Arguição acolhida, para se declarar a inconstitucionalidade do dispositivo, no caso concreto (…)” (ArgInc-Ag-AIRR-1000845-52.2016.5.02.0461, Tribunal Pleno, Relator Ministro Claudio Mascarenhas Brandao, DEJT 17/12/2020).
[5] Com as devidas adequações, vide o exemplo da ADPF n. 501, que declarou a inconstitucionalidade da Súmula n. 450 do TST, que versava sobre a sanção da dobra de férias em caso de atraso no pagamento das verbas devidas no prazo previsto no art. 145 da CLT.
[6] “AGRAVO INTERNO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃO REGIONAL PUBLICADO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. MICROSSISTEMA DE GESTÃO DE CASOS REPETITIVOS. RECORRIBILIDADE. ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. ADICIONAL DE ATIVIDADE DE DISTRIBUIÇÃO E/OU COLETA EXTERNA (AADC). CUMULAÇÃO. POSSIBILIDADE. TEMA REPETITIVO 15 DO TST. AGRAVO DE INSTRUMENTO. INCABÍVEL. ARTIGO 1030, I, “B” E § 2º, DO C DE 2015. APLICAÇÃO SUPLETIVA E SUBSIDIÁRIA (ARTIGOS 896-B DA CLT E 15 DO C DE 2015). AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. FUNDAMENTO DIVERSO. TRANSCENDÊNCIA NÃO EXAMINADA. I. (…) II. Destaca-se, em relação à possibilidade de interposição de recurso extraordinário da decisão proferida em IRR, que o fundamento essencial para a instauração do incidente em apreço consiste na constatação de que há uma multiplicidade de recursos de revista fundados em idêntica questão de direito tramitando nesta Corte Superior. Não há óbice, portanto, para a interposição de recurso extraordinário sobre questão constitucional porventura existente em relação à tese fixada, mas isso se dá especialmente em relação aos processos afetados para o julgamento do próprio incidente, em razão do amplo contraditório a que foram submetidos, com ampla participação dos interessados (amici curiae), solicitação de informações junto aos regionais e possibilidade de realização de audiências públicas para que sejam ouvidas pessoas com experiência e conhecimento sobre a matéria. Nada impede, ademais, que se interponha recurso extraordinário das decisões proferidas nos múltiplos recursos de revista que ficaram suspensos nesta Corte Superior aguardando a fixação da tese nos casos representativos da controvérsia. A recorribilidade extraordinária não alcança, entretanto, os processos que tramitam nos Tribunais Regionais e nas Varas do Trabalho, pois, em ultima ratio, permitir que todas as ações ajuizadas e que todos os processos suspensos em primeiro e segundo graus de jurisdição tramitem até as Cortes Superiores para simples reafirmação de entendimento exarado no julgamento de casos repetitivos – sem que a parte recorrente articule a presença de distinção (distinguishing) ou de superação (overruling) – resultaria na perda total da eficiência, da eficácia e da utilidade do microssistema de gestão de casos repetitivos positivado no Código de Processo Civil de 2015. Essa é a essência da norma contida no art. 1.030, I, “b”, e § 2º, do C de 2015.(…)” (AIRR-0001287-22.2017.5.08.0206, 7ª Turma, relator ministro Evandro Pereira Valadao Lopes, DEJT 18/12/2024, g.n.).
[7] RE nº 595.486-AgR, Relator o ministro Roberto Barroso, 1ª Turma, DJe de 14/03/2017
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!