A tão falada decisão trabalhista que 'enfrentou' o STF
4 de junho de 2025, 12h13
Há poucos dias noticiou-se a decisão monocrática do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (RS), que, em sede de mandado de segurança, determinou o prosseguimento de duas ações trabalhistas que haviam sido suspensas em cumprimento a ordem do Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a existência de repercussão geral no ARE 1.532.603 (Tema 1.389), nos termos do artigo 1.035, §5º, do C.

Na decisão em questão, afirmou a relatora que a controvérsia referente ao Tema 1.398 não guardava relação com os processos ajuizados pelo então impetrante, por ser “incontroverso que as partes das ações originárias não firmaram contrato escrito de prestação de serviços”, razão pela qual a suspensão não se justificava.
No entanto, as decisões impugnadas pelo impetrante, que haviam determinado a suspensão dos processos, foram fundamentadas na linha de que a tese central da defesa era “no sentido de que o trabalhador Reclamante prestou serviço como autônomo à parte Reclamada”, e, portanto, foram corretas ao determinar a suspensão, já que o Tema 1.389 apreciará a “Competência e ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços; e a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade”.
Além disso, ao reconhecer a repercussão geral, o ministro Gilmar Mendes, relator do caso, havia destacado a necessidade de se abordar a controvérsia de maneira ampla, considerando todas as modalidades de contratação civil/comercial.
Vale ressaltar que a suspensão nacional, recentemente determinada pelo ministro Gilmar Mendes para as instâncias ordinárias, é crucial para a segurança jurídica de modo a determinar tanto o que é quanto o que não é relação jurídica trabalhista sob égide da CLT.
Uma simples análise das decisões, portanto, é suficiente para evidenciar que a suposta “distinção” destacada pela decisão do TRT-4ª, isto é, o fato de não haver contrato escrito de prestação de serviços no caso apreciado, na realidade é inexistente, já que a controvérsia que será analisada pelo STF é expressamente mais ampla. Aliás, nem o leading case (ARE 1.532.603) trata sobre contrato de prestação de serviços propriamente, e sim, contrato de franquia, a corroborar o fato de que o tema afetado é mais amplo.
‘Distinção’
Porém, nesta coluna, não estamos preocupados com o equívoco, do ponto de vista técnico, cometido pela desembargadora, mas sim com um problema muito mais grave, que se desenrola em dois aspectos: (i) o deliberado descumprimento de decisões do STF por setores do Judiciário; e (ii) a deliberada substituição do direito por convicções particulares no momento decisório.
Isso porque o argumento da “distinção” cujo equívoco apontamos não é o verdadeiro fundamento da decisão. Fosse este, falaríamos em um mero erro de julgamento, o qual poderia ser facilmente corrigido pelas vias processuais sem representar maior risco à democracia constitucional. O problema é que o verdadeiro fundamento, expressamente colocado, foi o fato de seu posicionamento ser absolutamente contrário à decisão do STF (sic), quanto à suspensão dos processos até julgamento definitivo do Tema 1.389 da repercussão geral.
Ou seja, a decisão do TRT-4ª escolheu decidir daquele modo por discordar pessoalmente da decisão do STF. Ocorre que, para a nossa surpresa, ela foi aplaudida por parte da comunidade jurídica, em razão dessa perigosa decisão.
Descumprimento de decisões do STF por juízes e a degeneração do direito
Sob o primeiro aspecto que destacamos, devemos antecipar que o descumprimento de decisões do STF por parte de juízes é um evento lamentável sob a perspectiva da democracia constitucional e que contribui para a quebra da coesão do Poder Judiciário. Com isso, não se alcança uma suposta pretensa correção de rumo em relação a paradigmas tidos como equivocados, mas, pelo contrário, produz-se insegurança jurídica e descredibilização da justiça.
Nos parágrafos subsequentes pretendemos demonstrar, do ponto de vista democrático, que esse tipo de decisão é tão inconstitucional e absurdo quanto a ideia de que o presidente da República poderia suscitar o artigo 142 da Constituição para descumprir ordens judiciais do STF.
O Judiciário organiza sua função dentro da hierarquia de seu organograma. É pensada, portanto, para funcionar dentro deste quadro hierárquico segundo o qual decisões de órgãos inferiores possam ser corrigidas pelos graus superiores. Assim é quando pensamos que nosso modelo atual dispõe de um duplo modelo de vinculação. Em primeiro lugar, temos as decisões formalmente vinculantes, que são aquelas cuja obrigatoriedade de observância por todos os órgãos do Judiciário decorre da lei. Em segundo lugar, temos chamada vinculação argumentativa, em que é o poder de persuasão interno da decisão a determinar sua observância.
No desenho atual do processo brasileiro, a grande maioria das decisões do Supremo produz vinculação imediata, seja pelo procedimento, seja pelo argumento, até mesmo porque compete a ele fixar em última instância, dentro do Judiciário, o sentido das disposições constitucionais.
No caso em discussão, não se pode deixar de destacar que o STF não escolheu, por conta própria, suspender processos em âmbito nacional que tratassem do tema em discussão. Na realidade, o Supremo agiu de maneira estritamente vinculada à legalidade, haja vista que o artigo 1.035, §5º, do C determina que “[r]econhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional”.
Veja-se bem: a legislação processual estabelece que o relator “determinará” e não “poderá determinar segundo seu juízo de conveniência”, ou coisa do gênero. O ministro Gilmar Mendes, portanto, em decisão fundamentada, apenas obedeceu ao comando legal de modo a prestigiar, no futuro, a isonomia e a segurança jurídica.
Assim, a afirmação peremptória de que “meu posicionamento é absolutamente contrário à decisão do STF” feita por qualquer juiz ou juíza para afastar a determinação de suspensão de caso abrangido por tema de repercussão geral — formalmente vinculante — demonstra um comportamento nada saudável de inversão da hierarquia judiciária e, portanto, de subversão da sua lógica de funcionamento.
Nesse cenário, juízes que, de forma deliberada, descumprem decisões do STF contribuem para a deslegitimação institucional da Suprema Corte e acabam por incentivar os espectros extremistas e golpistas que fazem da transformação do STF em inimigo ficcional sua principal arma política.
Não fosse o bastante, há ainda um segundo aspecto, tão perigoso, senão pior, quanto o primeiro: a deliberada substituição do direito por convicções particulares no momento decisório. Para esse ponto, fundamental retomarmos o tema do fundamento da decisão. Como visto, a desembargadora tenta justificar sua decisão com base em uma aparente distinção: não havia contrato escrito de prestação de serviço. Mas tampouco o Tema 1.389 tem esse elemento como pressuposto; a controvérsia ali é notoriamente mais ampla do que isso, de modo a abranger os processos que originaram o MS.
O possível argumento propriamente jurídico, portanto, não se sustenta, e nem em relação a ele a julgadora dedica muitas linhas de sua decisão. Seu foco é outro: a absoluta discordância em relação ao STF. Ocorre que esse fundamento não é jurídico, e sim uma convicção pessoal. Nesse aspecto, a discordância pode e deve se desenvolver no debate acadêmico: sua posição em relação à compreensão adequada da competência da Justiça do Trabalho, sua posição em relação à sistemática processual no que concerne ao reconhecimento de repercussão geral, etc. No entanto, podem os juízes, ao decidirem, sobrepor sua convicção pessoal à lei vigente e às decisões do STF? A resposta evidentemente é negativa.
Há anos defendemos que não existe bom ou mau ativismo judicial, porque o ativismo sempre é a decisão discricionária (leia-se: arbitrária) que subverte o próprio direito para decidir a partir de fatores alheios ao direito — entre eles, a convicção pessoal do magistrado. Nesse sentido, não existe bom ativismo porque, ainda que o intérprete seja bem-intencionado, isto é, genuinamente acredite que sua convicção pessoal é mais justa ou mais correta do que a solução jurídica devidamente aplicável, em hipótese alguma o direito deve ser substituído por valores morais ou políticos pessoais do julgador.
Coisa diversa, sempre destacamos, é a atuação do Judiciário como organizar de espaços de discussão dentro dos quais podem ser construídas soluções negociadas para questões complexas e/ou indecidíveis por não encontrar resposta na Constituição. Não se trata, aqui, de ativismo, mas sim do reconhecimento de que questões desse jaez não podem ser simplesmente decidias pela força, ainda que força política, em desprezo aos direitos fundamentais e da legitimidade do procedimento que a justifica.
Respeitar o direito democraticamente produzido é fundamental para evitar a degeneração do direito e da própria democracia. O ativismo, portanto, é sempre ruim para a democracia, pois se configura como uma forma de degeneração da independência dos juízes, exercida mediante uma interpretação sem limites.
A experiência da história muito bem demonstra de que modo a fragilização da autonomia do direito se relaciona com a sua degeneração [1].
Nesse sentido afirmamos que o ativismo judicial, compreendido como uma interpretação sem limites, é um dos principais instrumentos da degeneração que se opera mediante adoção desenfreada e polarizada de um modo específico de se aplicar o direito. Ou seja, o sistema jurídico igualmente se degenera mediante um ativismo que almeja fazer o bem e garantir uma sociedade mais justa. A discricionariedade, se normalizada no cotidiano da aplicação do direito, solapa a própria autonomia porque serve de álibi teórico para exercício de uma interpretação sem limites.
No caso, não se pode perder de vista que a suspensão dos processos era uma decorrência legal e, numa democracia constitucional, não há espaço para a substituição da legalidade (entendida como lei + CF) por preferências pessoais ou qualquer outro argumento não-jurídico. Para homenagearmos Michael Stolleis, a decisão judicial não pode ser um local essencialmente jurídico para produzir um não Direito.
Portanto, reforçamos: mais do que equivocada, ao sobrepor ao direito uma convicção pessoal, a decisão é temerária e não pode ser normalizada (muito menos aplaudida) pela comunidade jurídica.
Justiça do Trabalho como locus de concretização da Constituição (e não de interpretação conforme à CLT)
Apesar de todos os problemas apontados na decisão, não podemos deixar de destacar que há um elemento importante a ser desenvolvido no meio acadêmico e no aprimoramento da prática jurídica, que diz respeito ao reconhecimento da maior complexidade nas relações de trabalho na atualidade, o que evidencia uma insuficiência do regime estabelecido na CLT.
Acertadamente, sobre esse ponto (apesar de escapar do escopo da decisão), a desembargadora aponta que essas novas e mais complexas formas de trabalho “exigem um novo tipo de abordagem e regulamentação, até porque os nossos parâmetros não resolvem este tipo de relação, muito distante do trabalho pessoal, oneroso e subordinado, estabelecido nos anos quarenta do Século XX pela CLT”.
Acerca desse aspecto, devemos observar, ainda, que grande parte dos conflitos entre a Justiça do Trabalho e o Supremo vem sendo produzidos em razão de uma resistência ao reconhecimento dessas mudanças e da insistência em reduzir a JT à CLT, ou, ainda, às complexas relações de trabalho da atualidade aos elementos previstos pela consolidação varguista.
Nesse cenário, entendemos que a Justiça do Trabalho precisa se renovar para, sob outros modelos regulatórios, aprender a julgar outros temas que não se limitam ao regime tradicionalmente estabelecido.
Mais precisamente, é necessário avançar o debate trabalhista para além da CLT. Se queremos que a Justiça do Trabalho seja aprimorada e se torne capaz de lidar com as novas relações de trabalho de modo constitucionalmente adequado, não podemos incorrer no erro de olhar para a JT apenas sobre a perspectiva da CLT, como se esta legislação induzisse a leitura do sistema constitucional, quando na verdade, deveria ser o contrário.
Assim, é crucial que a justiça trabalhista compreenda a fase contemporânea do capitalismo que tem criado uma relação inédita entre tecnologia e trabalho que não é mais subsumível ao modelo de rigidez regulatória da CLT. Essa compreensão é importante para a sociedade e para a própria Justiça do Trabalho manter sua relevância.
De todo modo, defendemos que aperfeiçoamento institucional se faz com diálogo. A toda sociedade interessa um aprimoramento da função jurisdicional do Estado para lidar com a complexificação da sociedade, especialmente em uma esfera tão fundamental quanto a Justiça Trabalhista. No entanto, o enfraquecimento da coesão do Poder Judiciário e rebeldias institucionais travestidas de pretensões aparentemente legítimas, mas que se apresentam à margem da legalidade vigente, como muito bem nos ensina a história, não servem à democracia, mas à sua degeneração.
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[1] Exploramos largamente esse tema na primeira parte da obra Direito Constitucional Pós-Moderno, em que tratamos sobre o paradigma de degeneração a partir da experiência alemã, demonstrando como a fragilização da autonomia do direito pode contribuir para a exposição da ordem jurídica às investidas da política, moral, etc., o que coloca em risco a própria democracia.
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