Direto do Carf

Cide-royalties, taxatividade, direitos autorais e tecnologia: qual a posição do Carf e do STF?

Autores

  • é advogada sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP (com período na Sciences Po/Paris) especialista pelo Ibet graduada pela Faculdade de Direito da USP árbitra no CBMA professora do mestrado profissional do IBDT professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.

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  • é graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e advogado.

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4 de junho de 2025, 8h00

Não é exagero afirmar que praticamente todo operador do Direito já se deparou com a seguinte aporia: o rol previsto pelo legislador é taxativo ou exemplificativo? Também não é absurdo dizer que esse dilema hermenêutico sempre esteve (e provavelmente sempre estará) presente na interpretação dos textos legais. Afinal, trata-se de uma consequência lógica invariável da coexistência dessas duas técnicas legislativas (numerus clausus x numerus apertus).

Essa questão interpretativa já permeava a jurisprudência das cortes superiores nos anos 60, quando o STJ afirmou ser exemplificativo o rol previsto no artigo 543 da Lei nº 556/1850 (Código Comercial) [1]. E ela prepondera em diversos debates com ampla repercussão jurídica e socioeconômica, como se observa, e.g., nas decisões do STJ quanto à taxatividade 1) da lista de procedimentos divulgada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) [2]; e 2) das causas suspensivas do crédito tributário (art. 151 do CTN) [3].

No Direito Tributário, o entrave hermenêutico se manifesta de forma ainda mais ostensiva. Isso ocorre, dentre outros motivos, devido ao disposto no artigo 110 do CTN e à impossibilidade de que a lei tributária altere a definição, o conteúdo e o alcance dos institutos de Direito Privado, previstos na CF. Essa previsão legal impõe um limite ao fato fenomênico descrito na hipótese de incidência do tributo. Dito de outro modo: a legislação tributária não cria os fatos geradores, mas apenas os enquadra, balizando-se por conceitos fixados por outras áreas do direito.

Seria virtualmente inviável elaborar um rol que exaurisse todos os fatos enquadráveis a uma determinada hipótese de incidência. Em especial, se considerarmos o potencial de mutabilidade infindável dos eventos fenomênicos que se pretende enquadrar e, por conseguinte, a impossibilidade prática de se delimitar um conjunto fechado de situações adequáveis ao evento previsto em lei.

Exatamente por isso, são diversos os questionamentos quanto à taxatividade dos róis elaborados pelo legislador tributário. Um bom exemplo disso é a controvérsia objeto do Tema 296 de repercussão geral, no qual o STF determinou que a lista de serviços referenciada no artigo 156, III, da Constituição, é fechada, itindo-se, contudo, a incidência do ISS sobre prestações elencadas em lei em razão da interpretação extensiva.

E não há expectativa de que os questionamentos dessa natureza cessem. A prova disso é que já existem discussões incipientes quanto à taxatividade do rol de bens e serviços de uso ou consumo pessoal, previstos no artigo 57 da Lei Complementar nº 214/25. Entendemos que essa delimitação é relevante, porque o artigo 47 excepciona o direito do creditamento do IBS e da CBS na aquisição dos bens listados no artigo 57. Se prevalecer o entendimento de que esse rol é exaustivo, não se poderá desconsiderar a possibilidade de que as autoridades fiscais restrinjam indevidamente do direito de crédito dos contribuintes, em dissintonia com o princípio da não-cumulatividade e da neutralidade [4].

Por se tratar de problemática interpretativa ínsita ao Direito Tributário, não é difícil pressupor que a jurisprudência do Carf também esteja repleta de debates perados pela distinção entre róis taxativos e exemplificativos [5]. É justamente uma das discussões balizadas por esse dilema interpretativo que nos propomos a analisar na coluna de hoje. Sem esgotar o tema, pretende-se identificar o tratamento atribuído pela jurisprudência da CSRF ao artigo 10 do Decreto nº 4.195/02, que elenca os royalties cujas remessas ao exterior são tributadas pela Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), instituída pela Lei nº 10.332/01.

Nossa análise levará em consideração, principalmente, a recente posição firmada pela 3ª Turma em demandas envolvendo a incidência da referida contribuição nos pagamentos de royalties classificados pelos contribuintes como remuneração pela cessão de direitos autorais (Lei nº 9.610/98). Além disso, considerará os eventuais impactos do julgamento do Tema/STF 914, suspenso na última quinta-feira (29/5/2025).

Considerações preambulares sobre a Cide-royalties/remessas

A Cide, destinada a financiar o Programa de Estímulo à Interação Universidade-Empresa para o Apoio à Inovação (Cide-royalties/remessas), foi instituída pela Lei nº 10.168/00. Esse diploma legal foi alterado pela Lei nº 10.332/01, que ou a prever que, a partir de 1º de janeiro de 2002, a contribuição também seria devida nas remessas ao exterior a título de royalties.

Spacca

As Leis nº 10.168/00 e nº 10.332/01 foram regulamentadas pelo Decreto nº 4.195/2002, que, em seu artigo 10, previu que as remunerações enquadráveis como royalties para fins de Cide-royalties/remessas seriam aquelas decorrentes de contratos que tivessem por objeto: 1) o fornecimento de tecnologia; 2) os serviços de assistência técnica; 3) os serviços técnicos especializados; 4) a cessão e licença de uso de marcas; e 5) a cessão e licença de exploração de patentes.

A celeuma quanto à ontologia (taxativa ou exemplificativa) do rol previsto no artigo 10 do Decreto nº 4.195/2002 foi instaurada, em um primeiro momento, em razão do descomo com o conceito previsto no artigo 22 da Lei nº 4.506/64. Tal dispositivo, tratando sobre o imposto de renda, enquadrou como royalties os rendimentos de qualquer espécie, decorrentes da exploração de direitos autorais, salvo quando percebidos pelo autor ou criador do bem ou da obra.

Considerando que tal hipótese não está elencada no artigo 10 do Decreto nº 4.195/2002, alguns contribuintes deixaram de recolher a Cide-royalties/remessas nas remessas ao exterior a título de direitos autorais, sustentando que o rol contido naquele dispositivo seria taxativo. As autoridades fiscais, por outro lado, manifestaram a posição de que a contribuição incidiria em tais operações, alegando se tratar de um elenco meramente exemplificativo.

Posição firmada pela 3ª Turma da CSRF

Em razão da existência de reiterada divergência na jurisprudência do Carf, a questão foi submetida ao crivo da 3ª Turma da CSRF, que, por meio do Acórdão nº 9303-015.639, sedimentou, por votação unânime, a posição de que o rol previsto no artigo 10 do Decreto nº 4.195/2002 teria caráter exemplificativo.

A decisão da CSRF foi exarada em demanda envolvendo uma sociedade do ramo têxtil que realizou remessas ao exterior, a título de royalties, em decorrência de contratos de licença de uso de personagens, representações gráficas, imagens, símbolos e desenhos artísticos (como, e.g., Batman, Hannah Montana, Harry Potter, High School Musical, Pooh e Pucca).

Para afastar a incidência da Cide-royalties/remessas, demonstrou-se que tais pagamentos não fariam referência a cessão de direito de uso de marca, mas sim de direitos autorais. Sob o prisma da tese defendida pelo contribuinte, essa distinção é importante, pois a cessão de uso de marca consta expressamente do inciso V do artigo 10 do Decreto nº 4.195/2002, sendo irrelevante, nesses casos, a análise da ontologia do rol do referido dispositivo.

A despeito disso, a natureza das remessas promovidas pelo contribuinte não foi analisada pela 3ª Turma da CSRF no Acórdão nº 9303-015.639. A decisão partiu da premissa de que, se a Lei nº 10.168/00 (com redação dada pela Lei nº 10.332/01) prevê que a Cide-royalties/remessas incide sobre quaisquer remessas de royalties ao exterior, seria defeso ao Decreto nº 4.195/2002 restringir o alcance do fato gerador previsto na norma legal, sob pena de violação aos artigos 97, III, e 99 do CTN.

Partindo desse racional, o voto condutor consignou que o rol do artigo 10 do Decreto nº 4.195/2002 somente poderia ser exemplificativo, sendo irrelevante que as remessas tenham sido promovidas a título de cessão de direito de uso de imagem ou de direitos autorais, uma vez que a Cide-royalties/remessas incidiria indiscriminadamente sobre as remessas de quaisquer royalties (arrolados ou não no elenco da norma regulamentar).

Essa posição foi recentemente ratificada no Acórdão nº 9303-016.522, por meio do qual o colegiado apontou que o conceito amplo de royalties, previsto no artigo 22 da Lei nº 4.506/1964, seria aplicável à Cide-royalties/remessas, por força da previsão contida no artigo 3º, parágrafo único, da Lei nº 10.168/2000, que estabelece que as disposições relativas à legislação do imposto de renda são subsidiariamente aplicáveis à referida contribuição. O voto condutor ainda consignou que, por mais que seja lastimável a legislação tributária usar o mesmo termo com acepções diferentes, ao tratar de distintos tributos, se ela efetivamente o faz, não cabe ao julgador ignorar o comando legal vigente específico.

O início do julgamento do Tema/STF 914 e os impactos da tese fixada no voto do ministro Luiz Fux

A constitucionalidade da Cide-royalties/remessas está sendo analisada pelo STF no Recurso Extraordinário nº 928.943/SP (Tema/STF 914), que teve o julgamento suspenso na última quinta-feira (29/5/2025) com a votação empatada (1×1). De um lado, o ministro Luiz Fux (relator) declarou a inconstitucionalidade parcial da Lei nº 10.168/00 (com redação dada pela Lei nº 10.332/01), sustentando que as remessas ao exterior de valores que não impliquem a remuneração pela exploração de tecnologia estrangeira não perfazem a hipótese de incidência da Cide-royalties/remessas.

A tese proposta pelo relator é a seguinte

“I – É constitucional a contribuição de intervenção no domínio econômico (Cide) destinada a financiar o Programa de Estímulo à Interação Universidade-Empresa para o Apoio à Inovação, instituída e disciplinada pela Lei nº 10.168/2000, com as alterações empreendidas pelas Leis nºs 10.332/2001 e 11.452/2007, incidente sobre as remessas financeiras ao exterior em remuneração de contratos que envolvem exploração de tecnologia, com ou sem transferência dessa;

II- Não se inserem no campo material da contribuição as remessas de valores a título diverso da remuneração pela exploração de tecnologia estrangeira, tais quais as correspondentes à remuneração de direitos autorais, incluída a exploração de softwares sem transferência de tecnologia, e de serviços que não envolvem exploração de tecnologia e não subjazem contratos inseridos no âmbito da incidência do tributo” [6].

Instaurando a divergência, o ministro Flávio Dino entendeu pela constitucionalidade da Cide-royalties/remessas, em sua integralidade, i.e., nos exatos termos do que dispõe a Lei nº 10.168/00 (com redação dada pela Lei nº 10.332/01).

Por ora, considerando o atual estágio do julgamento do Tema/STF 914, é possível identificar três cenários quanto à Cide-royalties/remessas: 1) inconstitucionalidade integral; 2) inconstitucionalidade parcial, no tocante à incidência sobre as remessas que não impliquem remuneração pela exploração de tecnologia estrangeira (tese sugerida pelo ministro Luiz Fux); ou 3) constitucionalidade (voto do ministro Flávio Dino).

A análise dos efeitos da prevalência dos cenários descritos nos itens ‘i’ e ‘iii’ acima na jurisprudência do CSRF não demanda maiores delongas. Se for declarada a inconstitucionalidade da Cide-royalties/remessas, será imperativo o cancelamento dos autos de infração lavrados para a exigência dessa contribuição, por força do artigo 99 do Ricarf [7]. A declaração de constitucionalidade da Cide-royalties/remessas, por sua vez, não implicará qualquer alteração na posição atualmente preponderante no Tribunal istrativo [8].

Por outro lado, a prevalência da tese proposta pelo ministro Luiz Fux (item ‘ii’ – inconstitucionalidade parcial) produziria uma significativa alteração na posição fixada na jurisprudência do Carf. Isso porque a solução das controvérsias submetidas ao Tribunal istrativo demandaria a análise da natureza dos royalties originários das remessas ao exterior promovidas pelos contribuintes em cada caso concreto.

Se a Cide-royalties/remessas já tivesse sido declarada parcialmente inconstitucional (nos termos do item “ii” acima), não seria possível, por exemplo, alegar, como fez a 3ª Turma da CSRF no Acórdão nº 9303-015.639, que o fato de as remessas terem sido promovidas em decorrência da cessão de direitos autorais é irrelevante para delimitar a incidência da referida contribuição. Afinal, nessa hipótese, não há dúvidas quanto à inexistência de exploração de tecnologia estrangeira.

Os reflexos da adoção da tese fixada pelo ministro Luiz Fux poderão gerar outros ecos favoráveis aos contribuintes na jurisprudência do Carf. Como já explorado nesta coluna anteriormente [9], no Acórdão nº 9101-006.889, a 1ª Turma da CSRF reconheceu, por unanimidade, a natureza de direito autoral dos royalties pagos por outra sociedade do ramo têxtil para a cessão de uso de personagens da Walt Disney Company. Se essa mesma posição for adotada pela 3ª Turma em contextos fáticos análogos ao do Acórdão nº 9303-015.639, será imperativo o cancelamento da cobrança da Cide-royalties/remessas sobre tais pagamentos (em decorrência da mera aplicação do entendimento vinculante do STF).

É importante ponderar que a posição da 1ª Turma não diverge da firmada no Acórdão nº 9303-015.639. De um lado, porque essa decisão não tratou efetivamente da classificação da natureza dos royalties pagos pelo contribuinte. De outro, porque a 3ª Turma da CSRF parte justamente da premissa de que os royalties fariam referência a direitos autorais para afastar a taxatividade do rol do artigo 10 do Decreto nº 4.195/2002.

Portanto, ainda que prevaleça a tese proposta pelo ministro Luiz Fux quanto à inconstitucionalidade parcial da Cide-royalties/remessas, a expectativa é de que o julgamento do Tema/STF 914 repercuta favoravelmente aos contribuintes na jurisprudência do Carf, sobretudo nos casos que versem sobre a incidência da contribuição nas remessas promovidas no contexto da cessão de direitos autorais e em outras remunerações não relacionadas à utilização de tecnologia estrangeira.

 


[1] AI 22826, 27/10/1960.

[2] EREsp 1886929, 8/6/2022.

[3] REsp 1.156.668, 24/11/2010.

[4] Previsto como informador dos referidos tributos no artigo 2º da Lei complementar nº 214/25.

[5] Apenas para citar alguns exemplos: i) parágrafo 9º do artigo 28 Lei nº 8.212/91 (elenco de pagamentos que não integram a base de cálculo da contribuição previdenciária); e ii) artigo 3º das Leis nº 10.637/02 e 10.833/03 (lista das hipóteses de creditamento de PIS e COFINS, além da aquisição de insumos). Nesse sentido, vide, e.g., Acórdãos 2301-011.363 e 3002-001.154.

[6] Ata de julgamento publicada em 30/5/2025.

[7] A depender da modulação temporal dos efeitos da tese.

[8] A atual posição parte da higidez das Leis nº 10.168/00 e 10.332/01, já que o CARF não tem competência para declarar a (in)constitucionalidade das leis tributárias.

[9] /2024-ago-21/natureza-juridica-do-uso-do-tio-patinhas-cessao-de-direito-autoral-ou-cessao-de-marca/#_ftn1

Autores

  • é advogada, sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP, com período na Sciences Po/Paris, especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, árbitra no CBMA, professora do mestrado profissional do IBDT, professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.

  • é graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e advogado.

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