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Condenação de humorista confirma decadência da tese do animus jocandi

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4 de junho de 2025, 17h47

O comediante Leo Lins foi recentemente condenado a oito anos e três meses de prisão no regime fechado por discriminação e preconceito contra diversas minorias e grupos sociais, devido a falas em um show de comédia stand-up. Na sentença da 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo, a juíza Barbara de Lima Iseppi disse que atualmente não há mais espaço para o animus jocandi — a tese de que a prática não pode ser enquadrada como crime se há intenção de causar humor ou diversão. Especialistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico corroboram esse entendimento.

Humorista Leo Lins durante apresentação de stand-up

Leo Lins foi condenado a oito anos de prisão por discriminação e preconceito em stand-up

De acordo com Barbara Iseppi, a ideia do animus jocandi vem de uma época em que piadas com referências a minorias eram toleradas “sob o fundamento da liberdade ilimitada do humor”. Hoje em dia, segundo ela, esse recurso argumentativo é “dissonante da dignidade da pessoa humana” e não pode ser usado como um “Habeas Corpus perpétuo” para a prática de ofensas.

A advogada Allyne Andrade e Silva, professora no Insper e especializada em teoria crítica racial, destaca que essa ideia já é criticada desde a década de 1970 por ativistas do movimento negro. Eles já apontavam que “o preconceito racial se escondia sob a aparência de cordialidade e brincadeira”.

A crítica ganhou mais força em 2019 graças à tese do advogado e professor Adilson Moreira sobre o racismo recreativo, “que sistematiza isso academicamente”. Ele desenvolveu a ideia de que o humor é frequentemente usado para perpetuar e normalizar a discriminação racial. A tese foi usada por Barbara na sentença contra Lins e em outros precedentes judiciais.

“Trata-se da prática de desumanizar grupos sociais por meio da ridicularização sistemática, naturalizando a exclusão sob o disfarce do entretenimento”, explica o criminalista Victor Lion Brown Monteiro Almeida, sócio do escritório Lion Mauro Advogados. “O riso, nesse caso, deixa de ser libertador e a a ser instrumento de opressão.”

Allyne acredita que a tese é correta: “Não é possível alegar que a liberdade de expressão dá a uma pessoa a possibilidade de fazer uma ofensa racial”. A mesma lógica foi aplicada pelo Supremo Tribunal Federal, em 2003, no famoso caso de Siegfried Ellwanger, editor condenado por racismo por publicar livros que negavam a ocorrência do Holocausto.

Da mesma forma, na visão da advogada, uma pessoa não pode alegar que uma injúria racial ou discriminação a qualquer minoria “foi somente uma piada”. Ou seja, a ideia do animus jocandi não é mais “aceitável”.

Lion Brown concorda: “Como advogado negro, que sofreu na pele o chamado ‘racismo recreativo’ no exercício da profissão — e precisou judicializar essa dor —, ouso afirmar que a tese do animus jocandi encontra-se ultraada quando invocada como escudo para discursos discriminatórios travestidos de piada.”

“A intenção de brincar ou de relatar um fato, em determinadas circunstâncias, pode afastar a tipicidade subjetiva (dolo) exigida para a configuração do delito. Nesse sentido, parece acertada a decisão da magistrada ao considerar, sob essa ótica, a importância do cotejo entre o contexto fático, a intenção subjetiva do agente e a proporcionalidade das manifestações feitas pelo comediante. Fala, gesto ou piada são, inegavelmente, produtos do seu tempo, e devem ser assim interpretados. Contudo, nos dias atuais, não há mais espaço — nem no plano social, nem no dogmático — para que condutas discriminatórias ou preconceituosas sejam consideradas atípicas ou irrelevantes sob o manto do animus jocandi, o que, por evidente, não excluem as eventuais críticas a um excesso acusatório e na dosimetria da pena imposta”, comentou Tiago Souza Rocha, criminalista da banca Bottini & Tamasauskas.

Direito Antidiscriminatório

O ex-juiz Márlon Jacinto Reis, advogado da organização Educafro Brasil, com experiência em casos de racismo, explica que “houve um desenvolvimento muito grande nos últimos anos do que se denomina Direito Antidiscriminatório”.

Segundo ele, “não é piada se o assunto evoca desrespeito e diminuição do outro em temas que a própria Constituição protege juridicamente, como a igualdade racial e de gênero e os direitos das pessoas com deficiência”. Isso porque “o riso de um não pode se dar às custas do sofrimento de outro”.

Reis ainda acrescenta que é necessário cobrar “mais daqueles que possuem posição de destaque capaz de produzir uma grande difusão de suas palavras”.

“Embora ainda falte muito caminho a trilhar, a civilização já evoluiu o suficiente para não aceitar mais que, sob o pretexto de fazer piada, se possa atingir tão fortemente as dores de pessoas que, diariamente, enfrentam a violência advinda do simples fato de serem quem são”, afirma o criminalista Guilherme Carnelós, assumidamente gay e militante pela causa LGBTQIA+.

Ele completa: “A liberdade de expressão tem limite e não pode ser aporte para se dizer o que queira e sobre a dor de quem se quer”.

No caso de Leo Lins, o advogado diz que nada justifica as afirmações discriminatórias do humorista. Para Carnelós, a Justiça não pode itir o uso do preconceito “como instrumento para gerar lucro a pretexto de se fazer comédia”.

De acordo com Lion Brown, “para minorias raciais, sexuais ou religiosas, o palco do stand-up não é neutro”. Ao seu ver, “piadas que zombam da dor alheia não são inofensivas”, mas, sim, “microagressões”.

“Não se trata de censura, mas de responsabilidade”, continua o advogado. “A liberdade de expressão é pilar da democracia, mas não pode ser usada como um salvo-conduto para a reprodução do preconceito.”

O criminalista explica que está em jogo não apenas o desejo de fazer rir, “mas sobretudo os efeitos do que se diz”. Ou seja, em vez de perguntar qual era a intenção do humorista, o certo é avaliar “como esse conteúdo repercute na vida das pessoas historicamente oprimidas”.

“Piadas que atacam corpos negros, pessoas com deficiência, homossexuais ou nordestinos não são engraçadas — são violentas. Não cabe às minorias ar o riso alheio enquanto sangram por dentro”, conclui. “O mínimo que se espera de quem tem um microfone nas mãos é discernimento sobre o poder da palavra. E, acima de tudo, empatia.”

 

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