Justo Processo

Só há 'sistema acusatório' no Tribunal do Júri!

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  • é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

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7 de junho de 2025, 8h00

Neste mês foi publicado o segundo volume da edição do Boletim Especial do conceituado Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), Tribunal do Júri entre Ataques e Defesas: Tratamento na Atualidade como Instituição da Democracia. Tive a honra de ser convidado para ser o editor e, por conta disso, acompanhei de perto a discussão de diversas matérias importantes para o instituto pelo viés de inúmeros pesquisadores brasileiros, além de ter entrevistado a americana Valerie Hans e o argentino Andrés Harfuch.

Também, semana retrasada na conferência Juries in the Americas: Variation and Change, que ocorreu na Northwestern University, em Chicago, nos Estados Unidos, apresentei e debati o modelo brasileiro de júri, com doutrinadores do Canadá, Estados Unidos, Argentina, Chile e Uruguai.

Algumas conclusões são inevitáveis e de fácil percepção: as vantagens do júri sobre a Justiça profissional são evidentes. Apenas no rito do Tribunal do Júri que as partes conseguem participar efetivamente da produção probatória e ter o direto e imediato aos julgadores no momento da tomada da decisão, os quais também devem julgar no mesmo ato.

Desde que o Uruguai implementou o sistema acusatório em 2017, o Brasil ficou na vergonhosa posição de último e único país das Américas que possui um processo penal de matriz inquisitorial. Apesar de termos uma rica tradição jurídica, reconhecida internacionalmente em diversas áreas do Direito, no processo penal somos considerados um país obsoleto, que não consegue se desvincular de raízes autoritárias e que patina em reconhecer direitos e garantias previstas em convenções internacionais de direitos humanos. Não que o retrocesso punitivista não seja globalizado, mas sequer conseguimos romper a bolha para um modelo verdadeiramente democrático.

Pelo aspecto geral do Judiciário, as pesquisas demonstram que a “Justiça” está sendo vista com grande desconfiança pela população [1]. Aliás, as discussões na imprensa e redes sociais giram em torno de casos criminais (desde os ataques de 8 de janeiro, até o triste cotidiano de incontáveis crimes comuns) e é fácil compreender que há uma crise de legitimidade e de confiança.

O Poder Judiciário, precisa, para além de se aproximar aos jurisdicionados, proferir decisões justas e imparciais. Nesta esteira, os julgadores precisam também parecer imparciais. Se à primeira vista as ideias são redundantes, esses fatores implicam na percepção da sociedade que deseja que o Judiciário fique indene de influências e interesses. Qual a resposta encontrada no Direito Comparado? O juízo de jurados! O nosso Tribunal do Júri [2]!

Neste sentido, outra vantagem do juízo por jurados é justamente a característica que, em tese, inviabiliza pressões externas. Enquanto praticamente não se tem notícias (nem casos) de ameaças a jurados (nem aqui no Brasil, nem no exterior), os magistrados frequentemente são alvos de pressões, visitas, conversas, conchavos e ameaças. Os jurados têm na sigilosidade das votações uma ferramenta que lhes permite exercer sua função e voltar para as suas atividades cotidianas sem qualquer consequência.

Já ou da hora de deixarmos de lado as amarras do autoritarismo. Devemos aproveitar que o nosso sistema de júri é oral, público e imediato, para que ele sirva, após aperfeiçoado, como uma referência a ser aplicado em todo o sistema de Justiça.

Spacca

O Tribunal do Júri serve de exemplo para todos aqueles que reconhecem a relevância da participação da defesa – ainda mais em tempos de restrição da atuação defensiva, em que há um movimento para silenciar os defensores, permitindo a atuação apenas por vídeos gravados ou memoriais escritos. Não se pode itir o cerceamento do uso da palavra e buscar, em pleno século 21, a burocratização de predominância escrita. Perceba-se que isso é o oposto do que o júri popular representa.

Comparativo

O Tribunal do Júri, em diversos países do mundo, não apenas funciona como uma ferramenta de pedagogia social, melhorando e engajando a comunidade sobre seus direitos e a aplicação da justiça, como também legitima as decisões tomadas. Ninguém possui mais aceitação do que a própria comunidade. Afastam-se as decisões monocráticas e se fortalecem as decisões coletivas. Se, no Brasil, o júri é que o mais se aproxima de um sistema acusatório, nos demais países ele é o próprio sistema!

O estudo dos sistemas de juízos de jurados pelo mundo permite explorar suas vantagens e desvantagens, especialmente quando baseado em pesquisas e dados empíricos. Não se trata de propor a importação de modelos estrangeiros, mas de reconhecer que muitos países enfrentam os mesmos problemas ou questionamentos sobre a legitimidade do Judiciário, e que as reflexões possuem bases comuns.

Por exemplo, com um ado tão traumático quanto o nosso, a Argentina implementou o júri apenas em 2014. No entanto, ao pensar o juízo de jurados com seriedade, utilizou-o para a sedimentação definitiva do sistema acusatório, com julgamentos céleres, orais e com produção de provas pelas partes e diante dos julgadores. Por conta de suas características, praticamente se esvaíram as críticas contra as decisões do judiciário. Quem pode reclamar de decisões tomadas por unanimidade, por 12 cidadãos que representam efetivamente a comunidade, especialmente após uma deliberação probatória genuína e informada?

Assim, entender como a Argentina, apesar de ser um país profundamente divido ideologicamente, implementou o júri em quase todas as províncias, em premissas claras de um sistema acusatório, é fundamental. Por conseguinte, os estudos comandados pelos professores Andres Harfuch e Alberto Binder são essenciais.

Ou ainda, o país em que mais ocorrem julgamentos pelo júri, os Estados Unidos, que há anos enfrenta uma onda para diminuir cada vez mais os julgamentos populares, por diversas justificativas, principalmente de cunho financeiro. As obras e pesquisas como os das professoras Shari Diamond, Valerie Hans e John Gastil, dentre tantos outros, propiciam olhares que vão muito além do utilitarismo típico e comprovam empiricamente a dimensão do júri para o Estado de Direito.

É claro que a transformação para uma Justiça Penal adversarial pera por mudanças não apenas nas leis, nas instituições e no ensino do processo penal, mas também por um câmbio na cultura inquisitorial arraigada.

Até mesmo por isso, o julgamento popular precisa ser trazido para o centro da discussão técnica-jurídica. Não é possível conceber que tantas críticas estejam sendo feitas por magistrados, ministros e políticos, que não entendam efetivamente como é o funcionamento do Tribunal do Júri no Brasil; ou tampouco compreendem como os diversos países e sistemas estão trabalhando com o juízo de jurados; ou também não assimilam a urgência para aperfeiçoar o instituto a partir de conhecimentos científicos e dados, sem os típicos achismos ou discussões rasas dos bem-intencionados.

Se a nossa Constituição exige um modelo processual penal democrático, o tribunal do júri sempre será o protagonista.

 


[1] Pesquisa Ipespe de dezembro de 2024 “A democracia que temos e a democracia que queremos”. https://ipespe.org.br/a-democracia-que-temos-e-a-democracia-que-queremos-pesquisa-ipespe-dezembro-2024/

[2] Claro que o modelo brasileiro não está indene de críticas, muito pelo contrário. Há uma série de mudanças que são necessárias para mitigação de erros judiciais e para reforçar os valores democráticos. Valendo-se de estudos sobre a democracia participativa, a experiência internacional e os próprios estudos sobre os sistemas processuais penais, algumas características para o modelo adversarial são plausíveis de pensar para o Brasil, como: a necessidade de composição mais plural e diversificada da lista de jurados, de maneira com que representem adequadamente a sociedade local; o aumento do número de jurados no Conselho de Sentença, concomitante com a exigência de uma maioria qualificada para a condenação, eis que o Brasil está na contramão dos países democráticos ao permitir a condenação com maioria simples da votação; uma primeira fase do procedimento mais enxuta, uma vez que a fase de issibilidade deve ser mais célere do que o julgamento pelos jurados; uma arquitetura em plenário que respeite o sistema adversarial, com a acusação e a defesa em posição de equidistância com o juiz presidente; uma fase para o selecionamento dos jurados (voir dire), em que aqueles com preconceitos ou predisposições sobre o caso possam ser excluídos; respeito real à paridade de armas entre acusação e defesa; uma fase de issibilidade probatória, retirando os elementos que não possuem relevância epistêmica para a solução do caso; o afastamento da decisão de pronúncia e sua substituição por opening statements (discurso de abertura pelas partes);  a implementação de uma fase de deliberação entre os jurados antes da votação, permitindo um debate qualificado sobre as provas e teses apresentadas.

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  • é advogado criminalista habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

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