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Fraudes no INSS: retaliação e mecanismos institucionais de contra-ataque do serviço público

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  • é auditor federal de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União (CGU) graduado em istração Pública pela Escola de Governo de Minas Gerais e em Direito pela UFMG e doutorando e mestre em Direito de Estado pela Universidade de São Paulo.

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8 de junho de 2025, 8h00

O caso recente do escândalo do  INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) sobre os descontos indevidos na folha de segurados que eram reados ilicitamente a entidades conveniadas por meio de acordo de cooperação revelou uma absurda realidade que ocorre com os servidores públicos no exercício de sua atividade pública: retaliação no cumprimento das suas atividades, no caso de fiscalização, com ameaça à sua própria pessoa e a familiares para que se paralisassem o processo apuratório de descredenciamento de entidades beneficiadas pelo esquema.

Segundo noticiou o Jornal Nacional, em 17 de maio de 2025 [1]:

Em setembro de 2020, a mãe de um servidor do INSS recebeu uma mensagem no celular. O texto pedia o endereço do filho para “fazer uma surpresa”.

Três dias depois, outro servidor do INSS recebeu uma ameaça no celular. “Estamos de olho”, dizia a mensagem, que também citava o nome da mãe dele, o modelo do carro dela e dois endereços do servidor.

O servidor ameaçado, no depoimento à Polícia Federal, mencionou que houvera dez entidades que foram descredenciadas em 2019 e 2020 por conta de irregularidades.

Na apuração da PF, um outro servidor disse que haviam feito um reforço no “trabalho de controle e que acredita que as mensagens, que entendeu como ameaças, seriam decorrentes do trabalho de suspensão e/ou cancelamento de referidos acordos”.

Um mês depois das ameaças relatadas pelos servidores, segundo o referido Jornal, o presidente do INSS à época, Leonardo Rolim, editou uma portaria que modificou competências organizacionais, transferindo referida atribuição de fiscalização para outro setor.

Portanto, temos dois tipos de situações relativas aos servidores: uma ameaça externa (retaliação externa) e um retaliação interna pelos trabalhos executados que levaram os servidores a procurar um canal externo de whistleblowing (denúncia), no caso, a Polícia Federal, porque àquela altura o canal interno estaria comprometido. Afinal “whistleblowing é a divulgação por membros da organização (antigos ou atuais) de práticas ilegais, imorais ou ilegítimas para o controle delas pelos empregadores, pessoas ou organizações que podem ser capazes de realizar tais ações”, como definido, classicamente, por Near e Niceli [2].

Quais as proteções legais deveriam gozar estes servidores de plano?

No caso das ameaças externas relatadas, os servidores gozariam das medidas previstas pelo artigo 4º-C da Lei nº 13.608/2018, primeira parte, que concede proteções do programa de proteção à testemunha (Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999).

No caso das ameaças internas, a norma preceitua que será assegurada ao informante proteção contra ações ou omissões praticadas em retaliação ao exercício do direito de relatar, tais como demissão arbitrária, alteração injustificada de funções ou atribuições, imposição de sanções, de prejuízos remuneratórios ou materiais de qualquer espécie, retirada de benefícios, diretos ou indiretos, ou negativa de fornecimento de referências profissionais positivas (artigo 4º-C da Lei nº 13.608/2018, segunda parte).

E quais as medidas de integridade pública advindas da própria istração Pública devem ser tomadas em relação às retaliações internas?

a – abertura de processo istrativo disciplinar para apurar a retaliação pela “alteração injustificada de funções ou atribuições” que sofreram os servidores ou a unidade em que estavam lotados, tendo lastro a apuração em dois comandos legais:

a.1  – Lei nº 8112/1990 – Valimento do cargo, improbidade istrativa e corrupção; e
a.2  – o próprio § 1º do artigo 4º-C da Lei nº  13.608/2018: § 1º A prática de ações ou omissões de retaliação ao informante configurará falta disciplinar grave e sujeitará o agente à demissão a bem do serviço público.

b – retorno dos servidores às suas atividades de forma imediata com regularização de suas funções e competências, ou seja, recuperação do status quo ante e promoção de estabilidade provisória de suas funções até o término das apurações, com base nos arts. 45 (medida cautelar) combinado com artigo 11 (irrenunciabilidade da competência) da Lei nº 9784/1999, atos de lavra da Corregedoria- Geral da União, unidade da Controladoria Geral da União (CGU), como assinalam as competências definidas no Anexo I ao Decreto de Estrutura Regimental da instituição (Decreto nº 11.330, de 1º de janeiro de 2023):

Art. 18.  À Corregedoria-Geral da União compete:
(…)
XV – apurar as denúncias relativas às práticas de retaliação contra denunciantes por agentes públicos dos órgãos e das entidades do Poder Executivo federal e instaurar e julgar os processos para responsabilização istrativa resultantes de tais apurações;
XVI – adotar ou determinar, de ofício, as medidas de proteção previstas no caput do art. 4º-C da Lei nº 13.608, de 10 de janeiro de 2018;
XVII – suspender atos istrativos praticados em retaliação ao direito de relatar informações sobre crimes contra a istração pública, ilícitos istrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público; (grifos nosso)

c – um profundo monitoramento e supervisão técnica do programa de integridade pública do Instituto Nacional do Seguro Social pela CGU, que é o órgão central do Sistema de Integridade, Transparência e o à Informação da istração Pública Federal – Sitai (artigo 6º e artigo 7º, inciso V, do Decreto nº 11.529, de 16 de maio de 2023). Afinal o INSS é uma unidade setorial do sistema.

Com relação as retaliações externas, seria recomendável a abertura de processo istrativo de responsabilização, com base na Lei Anticorrupção — LAC (Lei nº 12.846/2013) para apurar as ameaças de podem ser oriundas das entidades beneficiadas pelo esquema (ou pessoas físicas interessadas, no caso lobistas, que atuavam no interesse das entidades) que tenham tentadodificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional” (artigo 5º, inciso V, da LAC).

A CGU, no âmbito do PAR (Processo istrativo de Responsabilização) [3], instaurado pela Corregedoria Geral da União, por meio da Portaria 1.517, de 09 de julho de 2020, indiciou a empresa Vale S/A por violação ao artigo 5º, incisos V e III, da Lei nº 12.846/2013, por supostamente dificultar a atividade de fiscalização da ANM (Agência Nacional de Mineração) e utilizar-se de pessoas jurídicas diversas para ocultar ou dissimular seus reais interesses, acabando, ao final, por punir a empresa pelas violações da LAC.

Em decisão unânime, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve, em abril deste ano, a decisão da CGU que determinou a punição da Vale S.A, no âmbito do Mandado de Segurança nº 29.690 [4].

Por fim, além das medidas acima elencadas e já previstas normativamente, seria salutar ao ordenamento jurídico pátrio adotar a concepção de “atividade protegida” no caso de representações realizadas por parte dos servidores, assim como nas denúncias, sejam realizadas por parte dos servidores ou cidadãos, quando da busca pelo canal interno ou externo de whistleblowing.

Para além disso,  considerar como  presunção absoluta qualquer ato praticado contra os denunciantes a partir do seu relato, tratando-as como retaliações presumidas,  atribuindo tal caráter a não somente em relação aos servidores diretamente envolvidos, indo para além deles e aplicando-se até mesmos ao entorno familiar cercano, que sean susceptibles de sufrir una represália, como fez a Lei nº 458, de 2013, da Bolívia, a primeira lei sul-americana a tratar do tema com profundidade, muito antes de nosso legislador de 2018 e da reforma legislativa de 2019.

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[1] Jornal Nacional. Exclusivo: servidores do INSS sofreram ameaças após barrarem descontos ilegais de associações: aqui.

[2] Near, J.P., Miceli, M.P. Organizational dissidence: The case of whistle-blowing. J Bus Ethics 4, 1–16 (1985). aqui. o em dezembro de 2021.

[3] Disponível aqui

[4] STJ. MS nº 29.690/DF (2023/0323695-6) Rel. Ministra Regina Helena Costa. Pub: DJEN em 08/04/2025.

Autores

  • é auditor federal de Finanças e Controle da Controladoria Geral da União (CGU) desde 2006, graduado em istração Pública pela Escola de Governo de Minas Gerais e Direito pela UFMG, doutorando e mestre em Direito de Estado pela Universidade de São Paulo, palestrante no 21º Congreso Internacional do Centro Latinoamericano de istración para el Desarrollo (Clad) em 2016 (Chile), na International Anti-Corruption Conference (Iacc) de 2020 (Coréia do Sul) e no Seminário da Rede Nacional de Ouvidorias, em novembro de 2023 (em São Paulo).

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