Evolução do 'interesse comum' e desafios da responsabilização de grupos econômicos na execução fiscal
9 de junho de 2025, 15h16
A relação entre o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ) e o rito da execução fiscal tem gerado intensos debates jurídicos. A controvérsia, que ganhou destaque após a decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) no Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) nº 0017610-97.2016.4.03.0000, levou à intervenção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e à afetação do Tema Repetitivo 1.209.
O TRF-3, ao fixar a tese no referido IRDR, buscou harmonizar a celeridade da execução fiscal com as garantias do contraditório e da ampla defesa, definindo cenários de aplicabilidade do IDPJ. Contudo, essa decisão gerou interpretações divergentes, evidenciando a necessidade de uniformização jurisprudencial.
Diante desse cenário, o STJ, com o objetivo de garantir segurança jurídica e isonomia, afetou diversos recursos especiais (REsp) sob o rito dos repetitivos, dando origem ao Tema 1.209. A divergência entre as turmas do STJ sobre a necessidade ou dispensa do IDPJ para a responsabilização de grupos econômicos demonstra a complexidade da matéria. Este artigo analisa essa controvérsia, explorando a tensão entre celeridade e defesa na execução fiscal, a evolução do conceito de “interesse comum” e a busca por critérios objetivos na responsabilização tributária de grupos econômicos.
Da decisão do TRF-3 ao Tema 1.209
A aplicabilidade do IDPJ nas execuções fiscais se tornou um ponto nevrálgico na cobrança judicial da dívida inscrita em dívida ativa. A decisão do TRF-3 no IRDR nº 0017610-97.2016.4.03.0000 foi o estopim para a discussão, ao estabelecer que o IDPJ seria dispensável para responsabilidade tributária fundada nos artigos 132, 133, I e II, e 134 do Código Tributário Nacional (CTN), mas indispensável para casos de confusão patrimonial, dissolução irregular, formação de grupo econômico, abuso de direito, excesso de poderes, infração à lei ou estatuto social (artigo 135, I, II e III, CTN), e para a inclusão de pessoas com interesse comum no fato gerador não constantes na Certidão de Dívida Ativa (CDA).
A tese do IRDR, embora não tenha mencionado expressamente os artigos 50 do Código Civil (CC) e 124 do CTN, subentendeu a conjugação desses artigos para a responsabilização de grupos econômicos. No entanto, a complexidade da questão gerou decisões divergentes até mesmo dentro do TRF3, com alguns julgados dispensando o IDPJ quando assegurado o direito de defesa por meio de embargos à execução ou exceção de pré-executividade.
Essa instabilidade levou o STJ a afetar os REsps nº 2.039.132/SP, 2.035.296/SP, 2.013.920/RJ, 1.971.965/PE e 1.843.631/PE, dando origem ao Tema 1.209. O objetivo é uniformizar o entendimento sobre a (in)compatibilidade do IDPJ com o rito da execução fiscal e identificar as hipóteses de sua imprescindibilidade.
As turmas do STJ divergem. A 1ª Turma entende pela necessidade do IDPJ para a responsabilização de grupos econômicos, mesmo que não exclusivamente com base no artigo 50 do CC, fundamentando-se na ausência de capacidade do artigo 124, I, do CTN, de gerar responsabilidade tributária autônoma sem a comprovação de abuso da personalidade jurídica. Em contraste, a 2ª Turma sustenta que o redirecionamento da execução fiscal, nos termos do artigo 124, I, do CTN, dispensa o IDPJ, pois a responsabilidade solidária dos integrantes do grupo econômico decorre diretamente da lei.
É importante notar que, para os casos previstos nos artigos 134 e 135 do CTN, há um consenso entre as turmas do STJ sobre a desnecessidade do IDPJ, por serem dispositivos legais suficientes para a imputação de responsabilidade tributária.
A decisão do STF no Tema 1.232, que discute a inclusão de pessoa jurídica em execução trabalhista sem participação na fase de conhecimento, também pode influenciar a interpretação do Tema 1.209, dada a discussão sobre a garantia do processo legal, ampla defesa e contraditório.
Tensão entre celeridade e defesa: IDPJ na execução fiscal
A execução fiscal, regida pela Lei de Execução Fiscal (LEF), possui um rito especial focado na celeridade e efetividade da cobrança de créditos da Fazenda Pública. Em contrapartida, o Código de Processo Civil (C) introduziu o IDPJ como um instrumento para garantir o contraditório prévio e efetivo em ações de desconsideração da personalidade jurídica.

A aplicação do IDPJ na execução fiscal gera uma tensão evidente. Enquanto a LEF, em seu artigo 16, § 1º, exige garantia do juízo para embargos, o IDPJ, conforme artigos 134, § 3º e 135 do C, determina a suspensão automática do processo e a dispensa de garantia. Essa incompatibilidade é crucial, pois permitiria ao executado atingido pela desconsideração vantagens indevidas, como a defesa prévia sem a necessidade de garantia.
A Lei de Execução Fiscal é uma lei especial, e, portanto, suas normas devem prevalecer sobre as normas gerais do C, que só se aplicam subsidiariamente na ausência de lacuna na LEF e havendo compatibilidade. O artigo 4º, V, da LEF, ao dispor sobre a responsabilidade tributária, permite o redirecionamento sem defesa prévia, o que reforça a incompatibilidade com o IDPJ.
Distinguir redirecionamento da execução fiscal de desconsideração da personalidade jurídica é fundamental. O redirecionamento ocorre entre os sujeitos ivos da obrigação tributária (contribuinte e responsável), enquanto a desconsideração é uma medida excepcional que visa integrar terceiros ao processo quando há abuso da personalidade jurídica.
Embora haja um entendimento minoritário que tenta conciliar o contraditório prévio do IDPJ com a celeridade da LEF, tal abordagem, na prática, fragiliza a recuperação do crédito público, especialmente em face de grupos econômicos fraudulentos. Outros entendimentos propõem a utilização de Ações Cautelares Fiscais como meio para buscar a cobrança da dívida ativa contra grupos econômicos, o que também posterga a efetividade da execução fiscal.
A jurisprudência majoritária do TRF2 e a 2ª Turma do STJ reforçam a inviabilidade da defesa prévia e da suspensão automática do processo no rito da LEF, enfatizando a especialidade da lei.
Evolução do conceito de ‘interesse comum’
No cerne do Tema 1.209, o STJ debate o alcance do conceito de “interesse comum” previsto no artigo 124, I, do CTN. É necessário diferenciar devedor (formalmente indicado na CDA) de contribuinte e responsável tributário (definidos pelo direito material). A LEF confere à Fazenda Pública a prerrogativa de cobrar dívidas diretamente do responsável tributário, agilizando o processo.
A discussão sobre o redirecionamento e a desconsideração é central. O redirecionamento ocorre entre os sujeitos ivos da obrigação tributária (contribuinte e responsável), enquanto a desconsideração, prevista no artigo 50 do CC, configura uma intervenção de terceiros e é aplicável em casos de abuso da personalidade jurídica. Contudo, o artigo 50 do CC é inaplicável em matéria de responsabilidade tributária, que exige reserva de lei complementar, conforme artigo 146, III, da Constituição. No entanto, pela teoria do diálogo das fontes, os conceitos de desvio de finalidade e confusão patrimonial do artigo 50 do CC podem orientar na configuração de fraude fiscal.
O CTN não define “interesse comum”, o que gera a necessidade de um conceito jurídico preciso. Tradicionalmente, o interesse jurídico (e não meramente econômico) se manifesta quando há convergência de direitos e deveres entre indivíduos que ocupam o mesmo polo da relação jurídica privada que dá origem ao fato gerador. A jurisprudência do STJ tem reiterado a necessidade de participação conjunta no fato gerador para configurar a responsabilidade solidária.
No entanto, a complexidade dos grupos econômicos de fato demanda a expansão desse conceito tradicional. A mera participação direta no fato gerador é, muitas vezes, insuficiente para coibir fraudes fiscais. O artigo 124 do CTN, como norma complementar, é o único dispositivo para a responsabilização de grupos econômicos, em consonância com o artigo 146, III, da Constituição.
O STJ tem entendido que o interesse comum se aplica quando há comprovação de práticas comuns, prática conjunta do fato gerador ou confusão patrimonial. O Parecer Normativo Cosit/RFB nº 04/2018 alargou essa compreensão, englobando também terceiros que praticaram atos ilícitos para manipular ou ocultar o fato jurídico tributário, alinhando-se ao princípio da capacidade contributiva. A 2ª Turma do STJ reforça que, evidenciadas situações dos artigos 124, 133 e 135 do CTN, não é impositiva a instauração do IDPJ, pois se trata de responsabilidade tributária pessoal e direta pelo ilícito.
Assim, o “interesse comum” abrange tanto a realização conjunta do fato gerador quanto a participação conjunta na criação de um estado de impossibilidade de cobrança do crédito tributário já constituído, promovendo a isonomia fiscal. Contudo, esse interesse deve ser qualificado pelo interesse jurídico na configuração do fato imponível, excluindo o mero interesse econômico, conforme precedente do STJ.
Complexidade dos grupos econômicos e busca por critérios
É fundamental entender que a simples formação de grupos econômicos, de direito ou de fato, não constitui, por si só, um ato ilícito. Contudo, a complexidade dessas estruturas muitas vezes excede a capacidade da legislação de abarcar todas as suas nuances, exigindo uma análise aprofundada da legislação, jurisprudência e doutrina. A legislação tributária, em particular, carece de uma definição expressa para “grupo econômico”, o que intensifica a necessidade de buscar em outras normas a sua caracterização.
A caracterização de grupo econômico é influenciada por diversas normas, como:
- Artigo 2º, §§ 2º e 3º, da CLT (Reforma Trabalhista): exige demonstração de interesse integrado, efetiva comunhão de interesses e atuação conjunta das empresas.
- Lei das S/A: reconhece grupos econômicos de fato e de direito, demandando análise aprofundada para os grupos de fato.
- Artigo 494 da IN RFB nº 971/2009: define grupo econômico como a situação em que duas ou mais empresas estão sob direção, controle ou istração comum, funcionando como uma “empresa real, unificada”.
O artigo 126 do CTN reforça a necessidade de buscar a verdadeira essência do fato jurídico, dispondo que a capacidade tributária iva independe da regular constituição da pessoa jurídica, bastando que configure uma unidade econômica ou profissional. Isso significa que o intérprete deve investigar as circunstâncias fáticas em vez de se limitar a registros formais.
A análise converge para a natureza dos grupos econômicos de fato, que, apesar de formalmente independentes, operam sob unidade de direção e operação, com artificialidade da separação jurídica e compartilhamento de interesse econômico, frequentemente para evasão fiscal.
A participação em grupo econômico, por si só, não gera responsabilidade tributária solidária. Para preservar a segurança jurídica e evitar a responsabilização indiscriminada, é crucial definir critérios objetivos para a imputação de responsabilidade. A jurisprudência dos Juízos de Execução Fiscal tem desempenhado um papel fundamental nessa definição, elencando requisitos como:
- Identidade de sede, atividades econômicas idênticas ou complementares.
- Coincidência de es (inclusive com laços familiares).
- Confusão patrimonial (ex: uso compartilhado de contas bancárias).
- Compartilhamento de funcionários.
- Criação de empresas de fachada ou “frias”, especialmente em períodos de endividamento.
- Gestão centralizada e uso de holdings patrimoniais para blindagem.
- Dissolução irregular de empresas e esvaziamento patrimonial.
- Realização de negócios jurídicos simulados.
- Autorização para movimentar contas bancárias por pessoas estranhas ao quadro social.
Atribui-se ao Fisco o ônus da prova, exigindo a demonstração inequívoca do nexo causal entre a conduta e a obrigação tributária, bem como do interesse comum e dos atos ilícitos praticados. A intencionalidade da prática é crucial, e a ausência de sua prova invalida a responsabilização tributária.
Os efeitos deletérios da fraude fiscal são contínuos, e o esvaziamento patrimonial orquestrado pelo grupo econômico configura uma conduta permanente, perpetuando o risco de ineficácia da execução. Nesse contexto, o artigo 126 do CTN oferece subsídio interpretativo, pois a criação de personalidades jurídicas meramente formais para fraude fiscal configura periculum in mora, justificando medidas cautelares.
Assim, independentemente da compatibilidade do IDPJ com o rito da LEF, defende-se a aplicação de medidas cautelares fundamentadas no poder geral de cautela do juiz (artigo 297 do C) para assegurar a efetividade da execução fiscal diante da complexa dinâmica de ocultação patrimonial dos grupos econômicos fraudulentos.
A análise de grupos econômicos no direito tributário revela um cenário complexo que exige interpretação rigorosa. A ausência de uma definição legal unívoca para o termo demanda uma abordagem que combine legislação, jurisprudência e doutrina. Embora a mera existência de um grupo não seja ilícita, seu uso para fraude fiscal exige uma atuação rigorosa do Fisco e do Judiciário. Estes têm buscado definir critérios objetivos para a responsabilização tributária e a proteção do erário.
Dada a inegável relevância dos grupos econômicos na dinâmica empresarial moderna, é premente a inclusão de uma norma geral específica no CTN. Essa norma deve disciplinar os requisitos para a imputação da responsabilidade tributária a participantes de grupos econômicos fraudulentos, conferindo maior clareza e previsibilidade ao sistema.
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Referências
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