O mercado é soberano: do resíduo tributário no contexto da reforma tributária
9 de junho de 2025, 18h21
O inciso I do parágrafo 1º do artigo 156-A da Constituição, combinado com o parágrafo 16º do artigo 195 da CF/88, incluídos pela Emenda Constitucional nº 132/23 e recentemente regulamentados pela Lei Complementar nº 214/25, estabelecem que o IBS e a CBS serão não cumulativos, compensando-se o tributo devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas na Constituição.
Esse movimento que privilegia uma “não cumulatividade ampla”, um dos grandes motes da reforma tributária do consumo no Brasil, ocorre porque, no atual sistema tributário, existem uma série de situações e entraves legislativos que impedem o afastamento do resíduo tributário na tributação sobre o consumo, como por exemplo o acúmulo de saldos credores e a restrição ao aproveitamento de créditos.
Nesse contexto, a partir de uma visão pragmática, o presente artigo pretende explorar, brevemente, o conceito de resíduo tributário ou hidden tax, e conjecturar sobre o potencial impacto que a reforma terá sobre essa frente.
O termo resíduo tributário ou hidden tax surge a partir de uma análise econômica do Direito Tributário, especialmente em um contexto de tributos sobre o consumo calculados por dentro, em que o seu valor é embutido no preço de bens e serviços, não aparecendo de forma explícita no momento da compra.
Em sua obra Princípios de Economia Política e Tributação [1], David Ricardo, economista e político britânico contemporâneo de James Mill (pai de John Stuart Mill), já mencionava a forma como os tributos indiretos se espalham na economia e são reados ao consumidor. Na doutrina nacional, autores como Aliomar Baleeiro [2] e Ricardo Lobo Torres [3] discutem o fenômeno do repercutibilidade tributária ou do ree do ônus econômico ao consumidor final.
Em linhas gerais, o resíduo tributário decorre da incidência de tributos sobre aquisições de produtos e serviços que, devido à cumulatividade, acabam aumentando o custo final e, por consequência, impactando a carga tributária real ou efetiva.
Preço líquido
Feita essa breve digressão, é oportuno mencionar que diversas reportagens [4] estão sendo publicadas no sentido de que, no contexto da reforma tributária, as empresas deverão levar em conta não apenas os tributos incidentes em suas operações próprias (resíduos de primeira ordem), mas também os resíduos de seus fornecedores, mesmo que não visíveis à primeira vista (chamados de resíduos de segunda ordem).

A recomendação atual de especialistas é que as cláusulas contratuais em a prever qual é o preço trabalhado nas operações ou negociações: preço bruto ou preço líquido — dada a sistemática do novo modelo, nos parece fazer sentido a adoção do preço líquido.
Contudo, a formação desse “preço líquido” carrega um elevado grau de subjetividade. Evidentemente, é sabido que os tributos atuais sobre o consumo, notadamente o ICMS, PIS, Cofins, ISS e IPI são calculados por dentro, o que permite realizar previamente um cálculo inverso (ou “desgross up”) para obtenção de uma primeira base de cálculo líquida para aplicação do IVA dual (impacto dos resíduos de primeira ordem), ou, minimamente, para discussão pelos times de suprimentos.
Em relação aos resíduos de segunda ordem, correspondentes as aquisições realizadas pelos fornecedores e prestadores que não possibilitam a tomada de créditos pelos mesmos (custo potencialmente reado nos preços), a partir de pesquisas e levantamentos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) [5], combinados com uma complexa análise econômica, seria possível estimar quais seriam os seus resíduos tributários e, por efeito, o resíduo tributário de segunda ordem do adquirente.
Em tese, essa seria a melhor estimativa para apuração de uma base de cálculo ou “preço líquido” adequado para aplicação do IVA dual no contexto da RT. De maneira complementar, para aqueles que tiverem interesse sobre o tema, o Professor Eduardo Fleury [6] vem trabalhando nessas questões, de forma a mensurar e evidenciar essa nova base de cálculo ou “preço líquido”.
A despeito das análises técnicas econômicas e do potencial impacto na inflação [7] que a ausência da adoção de uma base de cálculo ou “preço líquido” adequado possam causar, nas lições de Ludwig von Mises [8]: “não há como escapar das inexoráveis leis do mercado”. O mercado tem a capacidade de “tomar decisões” e gerenciar questões externas, sendo, fundamentalmente, um ente autônomo na economia.
Dessa forma, nos parece que mesmo diante da existência de boas práticas para a mensuração de uma adequada base de cálculo ou “preço líquido” para aplicação do IVA dual no contexto da RT, considerando a complexidade envolvida para tanto, especialmente para pequenas e médias empresas, o mercado deverá se regular de forma a manter uma precificação muito próxima do que se tem hoje, e, potencialmente, com um incremento em suas margens, considerando a ausência do ree dos impactos ocasionados pelas mudanças no ordenamento jurídico tributário nacional.
Sendo assim, necessário que, principalmente, as equipes tributárias, jurídicas e comerciais sigam atentas às práticas de mercado e, dentro dos limites que “este agente autônomo” permite, atuem como mitigadoras de velhas práticas negociais.
[1] RICARDO, David. Princípios de Economia Política e Tributação. São Paulo: Abril Cultural. 1982.
[2] BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças e a política fiscal. Rio de Janeiro: Forense. 1964.
[3] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. São Paulo: Renovar. 2008.
[4] Entre outros, vide: (i) Reforma tributária leva empresas a renegociar contratos. Conteúdo disponível aqui; (ii) Impacto da reforma tributária sobre o consumo no processo de precificação. Conteúdo disponível aqui; (iii) A reforma tributária chegou na sala do Conselho de istração. Conteúdo disponível aqui; e (iv) LARA IBARRA, Gabriel; RUBIAO, Rafael Macedo; FLEURY, Eduardo. 2021. Indirect Tax Incidence in Brazil: Assessing the distributional effects of potential tax reforms. Policy Research Working Paper; n. 9891. World Bank, Washington, DC. World Bank. Conteúdo disponível aqui.
[5] PIA – Empresa – Pesquisa Industrial Anual – Empresa. Conteúdo disponível aqui.
[6] Entre outros, vide: (i) LARA IBARRA, Gabriel; RUBIAO, Rafael Macedo; FLEURY, Eduardo. 2021. Indirect Tax Incidence in Brazil: Assessing the distributional effects of potential tax reforms. Policy Research Working Paper; n. 9891. World Bank, Washington, DC. World Bank. Conteúdo disponível aqui; e (ii) Reforma tributária: vídeo mostra como preços podem cair, mesmo com imposto maior. Conteúdo disponível aqui.
[7] Entre outros, vide: (i) ALMEIDA, José Laurindo de. É possível a inflação brasileira ser afetada pela tributação? Conteúdo disponível aqui. 2025; e (ii) Impacto da CBS na inflação. Conteúdo disponível aqui.
[8] MISES, Ludwig Von. O cálculo econômico sob o socialismo. 1ª Edição. São Paulo: LVM Editora. 2012.
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