Por que teses e temas editados pelos tribunais superiores não são precedentes
12 de junho de 2025, 8h00
1. Quantas pessoas já foram vitimadas por precedentes que não são precedentes?
Outro dia discuti com alunos a questão da lenda jurídica chamada precedentes, na parte em que se fala da exigência de similitude fática. O ponto alto da discussão foi quando abordamos a origem da famosa Súmula 182, um autêntico exterminador de agravos interpostos contra inissão de recursos especiais. O dramático é que é uma súmula surgida do cível, originária de uma questão atinente à cédula rural. E anualmente ajuda a colocar na cadeia milhares de pessoas. E, de lambuja, serve para retirar ou conceder bens materiais a milhares de pessoas. Quantos já empobreceram por causa dessa súmula?
Como falar em similitude fática? E o que dizer da Súmula 7? Invocada como precedente, é tudo, menos a condensação daquilo que a formou: um conjunto de precedentes. Parece estranha essa formulação, mas não esqueçamos que uma súmula é o resultado de um conjunto de precedentes. E o que dizer do Tema 339, do STF? Quantas vítimas habitam os presídios por causa desse tema? Quantos bens mudaram de mãos por causa da discussão da fundamentação que, segundo o tema, não exige o exame de todos as teses esgrimidas pela parte? A agravante: tema não é precedente.
É sobre isso que quero tratar. Na linha do que venho escrevendo de há muito.
2. Por que insisti em incluir no C-2015 o artigo 926 (exigência de coerência, integridade e estabilidade)
É desejável que o sistema jurídico seja previsível. Por isso fiz força para incluir o artigo 926 no C. Era e é necessário um sistema com previsibilidade e segurança. Mas, não qualquer segurança.
Explico: aprovado o C, começou a batalha dos precedentalistas brasileiros para emplacar (e emplacaram, mesmo) a tese de que o direito, as leis, os textos, são indeterminados. Trata-se do realismo jurídico [1], pelo qual o direito posto pelo legislador é desprovido de sentido, cabendo às Cortes de Vértice (leia-se, Tribunais Superiores) estabelecer o sentido final. O ponto é esse. É o que se chama, cientificamente, de ceticismo. Sem tirar, nem por.
3. Os juízes devem seguir precedentes? Claro que sim. Mas seguir precedentes e não ‘póscendentes’ (regras gerais e abstratas)
Que os juízes devem seguir precedentes, concordamos (de novo registro “minha emenda ao C” que introduziu o artigo 926). Os próprios tribunais devem seguir (seus) precedentes. O problema é os Tribunais de Vértice estabelecerem, estipulativamente, direito como regras gerais e abstratas. Essa tarefa é do legislador. Isso mostra que os precedentes à brasileira desbordam do sistema constitucional.

Claro que isso é um projeto de poder e que agrada os tribunais. Se há o poder de estabelecer o direito por autorictas (ato de vontade), o Poder Judiciário se transforma em legislador. Está aí a razão pela qual “se perdem no meio do caminho” os casos concretos que deveriam ensejar o precedente.
A cada julgamento, faz-se (emite-se) uma nova “lei”. Portanto, no Brasil o “precedente” é algo que já nasce precedente, para vincular — quando, ao contrário, o precedente original do common law (somente) se torna um precedente a partir da atividade reconstrutivo-interpretativa da ratio por parte dos tribunais subsequentes [2].
Aqui no Brasil, no afã de construir regras gerais, chegou-se a criar a figura do “precedente persuasivo”. Ora, esse conceito sofre de uma contradição performativa: se é persuasivo, não é vinculante. Para que serviria um precedente persuasivo? Permito-me dizer: o persuasivo não pode ser chamado de precedente. Pode ser qualquer coisa, menos precedente.
4. Um problema de institucionalidade: os tribunais têm a função de estocar normas para o futuro? Isso não seria tarefa do Legislativo?
Erro fundamental daquilo que venho denominando de “precedentes à brasileira” se materializa no desejo exa(ge)rado dos tribunais superiores em produzir um estoque de normas jurídicas para o futuro sob a forma de precedentes (teses, temas etc.). Trata-se de uma contradição hermenêutica: não há respostas antes que as perguntas sejam formuladas. Não é papel dos tribunais resolver, abstratamente, causas jurídicas de maneira prospectiva. Precedentes são decisões pretéritas de casos concretos, cujas rationes são identificadas como norma pelos demais tribunais e sempre aplicadas contingencialmente.
Vinculante, num país de civil law, é a lei à qual o precedente se refere. Uma tese geral e abstrata para o futuro não é um precedente. É uma lei. Uma regra geral. Isso seria até uma contradição semântica. Vale ressaltar que em uma democracia constitucional o Poder Judiciário cuida do ado; pensar no futuro é tarefa do legislador. Conforme muito bem analisa José Luis Marti, o realismo jurídico é uma ameaça ao liberalismo e à democracia, ao permitir uma convergência dos poderes nas mãos do Judiciário enquanto único intérprete legítimo do direito.
5. Como se lida com precedentes? O overruling como direito fundamental! ‘Se você não trabalhar na faculdade o overrulling e temas que eram específicos do Direito da common law, o profissional está incompleto’, disse o ministro
Se falamos em precedentes, temos de entender que estes têm uma dinâmica de funcionamento. Observe-se que o ministro Luis Salomão, diz, por exemplo, que “se você não trabalhar na faculdade o overrulling e temas que eram específicos do Direito da common law, o profissional está incompleto”. E em uma publicação sob os auspícios da Enfam, STJ e CNJ, há um artigo que alça o distinguishing ao patamar de direito fundamental [3].
Portanto, tudo indica que, no imaginário jurídico, o que “pegou” foi a relação precedentes brasileiros e common law. No dia 11.06.2024, noticiou-se nos sites jurídicos: “Precedentes no STF e nas duas Turmas do STJ: aplicado tráfico privilegiado, autos devem ser remetidos ao MP…”. Veja-se como usam o termo “precedentes”. Na verdade, está correto. Qualquer decisão de Tribunal pode ser precedente (ler aqui detalhes sobre isso). D’onde fica sem sentido a distinção “persuasivos-qualificados”. Bom sabemos como isso funciona. É precedente, mas pode não ser. Não esqueçamos que o STJ diz que precedentes persuasivos não dão azo ao uso do 489 do C (Pablo Malheiros escreve sobre isso).
Ademais, mesmo no civil law, quando se aplica um precedente, sempre se tem como base essa funcionalidade. Caso contrário, o precedente não é um precedente, é apenas uma tese ou um conceito geral e abstrato que funciona no modo como funcionavam os assentos portugueses – declarados inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional de lá. E isso tem de ser estudado. E levado em conta. Façamos uma epistemologia sobre isso.
Dizendo de outro modo: como fazer distinguishing de tese geral e abstrata construída pro futuro? Esse é o ponto. Como professor, tenho a obrigação republicana de alertar (mais uma vez) as autoridades sobre esses equívocos de ordem epistemológica. Tenho reclamado – e ouvido muitas queixas – da falta de diálogo e de debate sobre o tema. De que maneira se identifica uma ratio decidendi? O que vincula em uma decisão? No meu livro Precedentes Judiciais e Hermenêutica chamo a atenção sobre isso de há muito.
Mais: até no common law já se trabalha – há bons textos sobre isso – com a ideia de que, pela supremacia do Parlamento, entre um precedente errado e a interpretação correta da lei, fica-se com a lei. No país do stare decisis. De common law. Aqui, no civil law, em vez de entendermos que o que “vincula” não é “o precedente” enquanto tese geral, mas, sim, a lei a que o precedente se refere, preferimos apostar na antiga autorictas.
O Brasil é, mesmo, um país sem precedentes.
Por fim, deixo uma advertência aos que estudam o processo civil e penal (que vale para os demais ramos): durante muito tempo, não fizemos doutrina no Brasil (e isso não é minha opinião, é história), perpetuando culturalmente o projeto de colonização portuguesa para nós. Como adverte José Reinaldo Lima Lopes, nossos primeiros manuais surgiram com os acanhados títulos de “primeiras linhas”, “esboços” e “anotações sobre o direito português”. Levamos tempo para tomarmos coragem e surgir entre nós um Pontes de Miranda ou um Ovídio Batista. Eles ficariam desolados ao perceber o estado de recolonização gnosiológica ao qual muitos de nossos processualistas se permitiram, agora em relação àquilo que chamam de Cortes de Vértice. Afinal, se o direito é o que os tribunais dizem que é, para que serve a doutrina? Quando respondermos a isso, estaremos iniciando a discussão.
Minha tese: não renunciemos a nosso direito de pensar.
[1] Aqui não me refiro ao realismo escandinavo, de caráter mais epistemológico. Importa aqui são as diversas matizes do realismo norte-americano (e do genovês), que têm em comum o ceticismo em relação às leis e às próprias decisões dos tribunais.
[2] Nunca é demais ver como funcionam os precedentes no civil law. Nem de longe há similaridade com o Brasil. Por exemplo, Portugal e Alemanha (ver aqui)
[3] Cf. Acácia Regina Soares de Sá. A Racionalização na Aplicação da Técnica de Distinção de Precedentes pelo STJ como Direito Fundamental à Segurança Jurídica: uma análise empírica. In: SISTEMA DE PRECEDENTES BRASILEIRO Demandas de massa, inteligência artificial, gestão e eficiência. Publicação da ENFAM.
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