Diário de Classe

Crônicas da Lei e do Mito: Atena e a Tragédia da Razão

Autor

  • é mestrando em Direito Público pela Unisinos editor-adjunto da Revista Constituição Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional (Qualis A3 ISSN 2177-8256) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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3 de maio de 2025, 8h00

“todo ideal nega a vida” [1]

René-Antoine Houasse/Reprodução

Genealogia da justeza

Nos últimos textos desta série em que transitamos do julgamento de Orestes (cf. aqui) ao olhar paralisante de Medusa (cf. aqui), Palas Atena sempre apareceu como fio condutor da narrativa. Desta vez, porém, convém explicar o nascimento da deusa da justiça, pois ele também é a parábola deste escrito.

Segundo Hesíodo [2], Zeus temia uma profecia de que de sua união com Métis — deusa da astúcia — faria nascer descendente que pudesse destroná-lo. Para frustrar o destino, Zeus devorou a companheira ainda grávida, incorporando, junto dela, seu poder e sua gravidez. Mais tarde, acometido por uma forte dor de cabeça, ordenou que Hefesto abrisse seu crânio com um golpe de machado. Contudo, a fenda aberta não verteu sangue, dado que dela nasceu Atena.

Já adulta e entoando um grito tão intenso que fez a Terra e o Olimpo estremecerem, a sabedoria se fez carne enquanto filha de uma violência que tentava controlar o destino. Em uma gênese assombrosa que carrega a ambiguidade inerente a toda pretensão de luz: a deusa que representa a sabedoria nos mostra um lado obscuro no sentido de guardar íntima relação com a violência (do seu nascimento) e com o medo (do seu pai).

Entre outros mitos que representam sua ambiguidade, cumpre relembrar que Atena é a um só tempo fundadora do Tribunal do Areópago, onde a ira das Erínias cede à deliberação cívica, e simultaneamente algoz, no mito de Medusa, de uma punição que recai sobre a mulher violada e não sobre o estuprador. Contemplar a história de Atena é, portanto, compreender que a razão — berço da ordem e da civilização — traz em si o germe da violência que pretende domesticar.

Nesse sentido, enquanto Jean-Pierre Vernant lembra que o logos grego nasceu sempre às voltas com o pathos dionisíaco [3], Adorno e Horkheimer advertem que, ao tornar-se instrumento de dominação, o esclarecimento pode resvalar em barbárie [4]. Assim também a deusa, ícone da ordem e gerada em meio a violência; Atena veio ao mundo tanto para cuidar e zelar quanto para punir e ferir de morte.

Sempre mais profunda que suas representações, a mitologia revela que a contradição é o destino de todo ideal que busca negar a vida e, como se verá, também o risco que assombra o Direito em caso de esquecimento de que todo ideal, quando descolado da vida concreta, é apenas o primeiro capítulo da tirania disfarçada de justiça. Diante disso, este texto se contradiz para ao final responder: existe justiça sem violência ou será que a justiça só existe em face dela?

Atena e o paradoxo da justiça

A primeira camada de complexidade quanto à figura de Atena emerge ao confrontarmos dois momentos narrativos. Pari u com aquilo que discorremos nas últimas crônicas, cumpre frisar que Atena se eternizou na cultura ocidental como padroeira da ordem, presidindo o Areópago, equilibrando a ira das Erínias e a defesa de Apolo. Sendo seu voto o gesto fundador da presunção de não culpabilidade.

Entretanto, em outra narrativa, quando Medusa sofre violência dentro do templo consagrado à deusa, é a vítima quem resta castigada. O estupro cometido por Poseidon não gera punição contra o agressor, mas, sim, transformação da ofendida em monstro. Atena, nessa narrativa, não é árbitra da equidade, mas, isto sim, “razão” punitiva. Ela é a patrona de uma injustiça que busca preservar a sacralidade de seu templo às custas da dignidade da mulher profanada.

Medusa é, assim, triplamente vitimizada: primeiro, é violentada por Poseidon, em um ato de estupro dentro de um espaço sagrado; segundo, é punida por Atena, que a transforma em um monstro como resposta à profanação do templo, invertendo a lógica da culpa; e, por fim, é novamente instrumentalizada quando a própria deusa auxilia Perseu em sua decapitação e depois ostenta sua cabeça no escudo — o aegis — como símbolo de poder. Em cada uma das três etapas, Medusa foi submetida ao abuso, a punição e a morte, respectivamente.

Ainda mais revelador, contudo, talvez seja o embate entre Atena e Poseidon pela primazia de Atenas, em um dos episódios mais emblemáticos da mitologia grega. Conforme narra Agostinho de Hipona [5], a disputa não era meramente territorial: tratava-se da imposição de dois princípios de mundo e da disputa entre duas deidades que pretendiam se tornar patronos da próspera cidade que a civilização ocidental hoje tanto conhece como berço da filosofia e da democracia. De um lado, Poseidon, símbolo da força das águas, do cavalo indomado e da violência dos elementos. De outro, Atena, deusa da inteligência, da razão e da justiça.

Para decidir a disputa, os deuses propam que cada divindade ofertasse um presente aos habitantes, que votariam por aquele que melhor simbolizasse o destino da cidade. Poseidon, com seu tridente, ofertou uma fonte d’água; enquanto Atena ofertou a oliveira. O povo votou e as mulheres, demonstrando perspicácia, perceberam que a fonte de Poseidon — sendo ele deus do mar — não seria de água doce e, portanto, imprópria para a subsistência; enquanto a oliveira de Atena representaria recursos aptos para vida. As mulheres apoiaram Atena e os homens preferiram Poseidon. Ao final, a vitória da deusa foi selada por um único voto.

A cidade Atenas, assim, tornou-se símbolo da razão e da civilização. Mas o preço foi alto: como reparação à fúria masculina — de Poseidon e dos homens que foram maus perdedores —, Zeus decretou que as mulheres fossem punidas com três penas. Perdiam o direito de voto, nenhum filho teria o nome materno e ninguém mais poderia ter o nome de Ateneias. Narrativa essa que, no fundo, é muito mais um véu simbólico que encobre a lógica machista daquela cultura do que um relato de esclarecimento. O mito surge, então, como um artifício de sentido que pretende justificar a exclusão das mulheres da vida pública. Atena, embora triunfante, torna-se cúmplice involuntária de uma injustiça que não poderia reverter, pois a decisão final foi de Zeus, o senhor dos deuses, que privilegiou Poseidon — um deus da primeira geração —, sobre sua filha Atena — uma deusa da segunda geração — que, além de tudo, era sobrinha do deus do mar, bem como alguém que deveria respeitar o “fato” de que antiguidade é posto.

Neste contexto, a dor de Atena foi de dupla natureza: venceu pela inteligência e pela razão reconhecida pela maioria, ao mesmo tempo em que testemunhou essa decisão ser substituída por uma injustiça mediada pela autoridade de Zeus. A cidade que deveria celebrar a razão instituiu, assim, o completo apagamento político das mulheres. Com efeito, a mesma Atena que pacifica os homens em Oresteia também protagoniza, involuntariamente, a brutalidade dos pactos sociais que silenciaram metade da humanidade.

As faces de Atena são, portanto, inseparáveis: a justa que cria o Areópago, a algoz de Medusa que pune a vítima e a humilhada que vê a racionalidade ser usada como máscara para a opressão. Contudo, importa assentar que nenhuma delas anula as outras. A deusa da justiça é, como o próprio conceito de justiça, atravessada por tensões, ambiguidades e paradoxos.

A razão tem razões que a própria razão desconhece

Se a mitologia organiza o caos simbólico, o Direito tenta organizar o caos social. Mas ambos compartilham a mesma fragilidade: sua origem está na tentativa de instituir sentido sobre realidades sempre mais complexas do que qualquer interpretação pode ar.

No caso do Direito, o ato de julgar — como ensina Lenio Streck [6] — não é manifestação de vontade divina, mas atividade humana atravessada por limites históricos e culturais. Isso, porque quando os juízes imaginam possuir a razão pura, livre convencimento etc., o Direito deixa de ser uma construção dialógica e se converte em um exercício de poder pessoal — e daí a necessidade de reconhecer que a justiça é um valor complexo, tecido de contradições, e não uma panaceia capaz de resolver todos os conflitos. Como acrescenta José Reinaldo de Lima Lopes [7], a justiça não é um estado de pureza. Na realidade, é uma prática permanente de equilíbrio, em uma luta entre interesses divergentes, aspirações conflitantes e valores que se entrechocam. A própria ideia de “fazer justiça” implica reconhecer a insuficiência da racionalidade em antever todas as complexidades da vida.

A título de um contexto mais amplo, pense-se na Revolução sa. Como aponta Gertrude Himmelfarb [8], a Revolução ilustra de maneira trágica esse perigo: a tentativa de instaurar uma sociedade absolutamente racional acabou por aniquilar a própria liberdade que pretendia consagrar. Durante o Terror Jacobino, instauraram-se tribunais revolucionários sumários que dispensavam garantias mínimas de defesa, enquanto a guilhotina se convertia no símbolo rotineiro da “virtude” em ação. Divergir tornava-se crime; e suspeitar, suficiente para condenar.

Robespierre, advogado e orador influente, foi uma das figuras mais emblemáticas da Revolução sa. Líder do Comitê de Salvação Pública durante o chamado Período do Terror, acreditava encarnar a vontade geral do povo e via a virtude como condição inegociável da república. Proclamava agir em nome da liberdade, da fraternidade e da justiça, mas comandou um regime que eliminava adversários políticos sem julgamento digno desse nome. Seu ideal de virtude, elevado ao status de dogma incontestável, produziu uma das mais brutais eliminações sistemáticas da alteridade que a Europa moderna testemunhou. Ao final, o próprio Robespierre sucumbiu à guilhotina que ajudou a glorificar, tragado pelo terror que ele mesmo alimentou. Não obstante, seria injusto negar alguns avanços institucionais conquistados pela Revolução sa, pois com ela foram consolidados princípios como igualdade, secularização do Estado e a noção moderna de soberania popular — avanços que, porém, exigiram décadas para amadurecer e se realizar plenamente.

No Direito, seus riscos são análogos: transformar a justiça em um ícone absoluto é esquecer que ela precisa ser constantemente reinterpretada, em diálogo com os fatos, as normas e a história viva da sociedade. Não existe modelo de sentença perfeita, como também não existe uma sociedade puramente justa. Há, sim, esforços incessantes para aproximar o ideal do real, sabendo que a fratura entre eles jamais será totalmente suprimida.

A justiça, como a própria Atena nos revela, não é um dom divino nem um título de nobreza. A razão deve desconfiar de suas pretensões de pureza e a justiça não é um manto conferido por autodeclaração e, como Atena demonstrou, às vezes até a deusa da sabedoria pode se transformar em algoz. Sendo, por isso, que o ato de julgar deve ser reconhecido como tarefa hercúlea e não como privilégio dos iluminados.

Como um cínico talvez argumentasse, é sempre arriscado quando os guardiões da Constituição começam a agir como iluministas tardios, certos de que podem — como propôs o Ministro Barroso — “empurrar a história” com as próprias mãos (cf. aqui). Afinal, todo projeto iluminista sem prudência termina não em claridade, mas em sombra projetada sobre aqueles que deveriam ser ouvidos.

Justiça colocada em xeque

Retomando os fios que compõem a tessitura deste texto, vimos que: (1) Atena, embora personificasse a razão, encarnou ora a justiça, ora a injustiça e ora humilhação; (2) a mitologia, assim como o Direito, oculta em seus meandros preconceitos e assimetrias; (3) a razão absoluta é um perigo real, como mostrou a Revolução sa e como adverte Gertrude Himmelfarb; e (4) ninguém é proprietário da justiça, pois, na realidade, a função judicante é uma atividade de autocontrole e não de supremacia moral.

Sendo assim, a justiça, como toda virtude, não vive no plano das intenções e só adquire existência quando atravessa o mundo das ações concretas, sendo reconhecida por quem experiencia, manifestando-se no gesto, na escuta e na capacidade de sustentar o dissenso sem anular o outro. Ela não se prova na teoria, mas no enfrentamento dos dilemas reais: ao proteger a vítima sem recair em vingança, ao punir sem eliminar o outro e ao decidir sem se proclamar bastião da verdade absoluta. Por isso, a justiça é sempre precária e, exatamente por isso, preciosa. Seu valor não está em resolver todos os conflitos, mas, sim, em se manter fiel ao ceticismo da alma e o que o mito de Atena nos convida a refletir, em sua tragicidade, é exatamente sobre isto: de que é melhor nunca confiarmos inteiramente na pureza das nossas convicções no sentido de sempre suspeitarmos que, entre a razão e a justiça, corre o rio tumultuoso das paixões e da hybris.

Talvez, então, seja verdadeiro argumentar que a justiça só existe na medida em que se realiza como relação. Ela não é um espelho que se contempla, mas um gesto que se dirige ao outro. Como os olhos que veem, mas não podem ver a si mesmos, assim também é a justiça: ela só se revela quando prova sua existência aos olhos do outro.

Retomando a contradição formulada em pergunta no início deste escrito, conclui-se que a justiça é inseparável do caos que pretende conter. Não nasce da ordem, mas da tensão entre o desejo de paz e da disputa. Como também é a própria deusa Palas Atena, a justiça é filha do conflito e, por isso mesmo, nunca poderá romper completamente com ele. É tentativa de mediação, e nunca de neutralidade plena; é forma de autocontenção, e nunca de purificação social. Contudo, conclui-se também que aplicar justiça é tentar transformar o conflito em ordem e o que o mito de Atena também nos indica é um lembrete quiçá duradouro: não basta afirmar a razão; é preciso exercê-la com humildade, céticos da nossa própria convicção. E talvez, no fim, a verdadeira tragédia da razão não esteja em seus erros ocasionais, mas na ilusão ingênua de que ela poderia alguma vez se bastar.

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[1] Luc Ferry, explicando a filosofia de Friedrich Nietzsche. In: FERRY, Luc. A mais bela história da filosofia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2017. p. 50

[2] HESÍODO. Teogonia. São Paulo: Editora Hedra, 2013

[3] VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990

[4] ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985

[5] AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2018. v. 3. p. 1717-1718

[6] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017

[7] LOPES, José Reinaldo de Lima. Curso de Filosofia do Direito: o Direito como prática. 2. ed. Barueri: Atlas, 2022. p. 285-388

[8] HIMMELFARB, Gertrude. Os caminhos para a modernidade: o iluminismo britânico, francês e americano. São Paulo: É Realizações, 2011

Autores

  • é bolsista Capes/Proex, doutorando e mestre em Direito Público pela Unisinos, especialista em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela ABDConst, bem como em Direito Constitucional pela mesma instituição, pesquisador, membro do Dasein e editor da Revista da ABDConst.

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