Garantias fiduciárias: insumo estratégico nas operações de antecipação de recebíveis
7 de maio de 2025, 15h19
A alienação e a cessão fiduciária se consolidam como as modalidades de garantia mais sólidas, eficazes e prestigiadas no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente no contexto das operações estruturadas de crédito e no mercado de capitais.
O presente estudo tem por objetivo analisar as recentes mudanças legislativas que impactaram o regime das garantias fiduciárias, conferindo-lhe uma nova configuração, particularmente relevante nas operações de antecipação de recebíveis e no financiamento secundário no mercado de capitais. Essas inovações reforçam a proteção do credor, aumentam a eficiência na estruturação das operações e desempenham papel decisivo na concessão de crédito, ao reduzir riscos, ampliar o o a capital e fortalecer os mecanismos de recuperação em caso de inadimplemento.
Reconfiguração das garantias fiduciárias no Marco Legal das Garantias
Até a promulgação da Lei nº 14.711/2023 (Marco Legal das Garantias), o regime jurídico das garantias mostrava-se insuficiente para conferir proteção econômica adequada às operações de crédito secundário no mercado de capitais — especialmente naquelas voltadas à negociação de fluxos de caixa e antecipação de recebíveis — por não acompanhar a agilidade e a complexidade exigidas por essas estruturas.
Os bens dados em garantia eram frequentemente subaproveitados, utilizados quase exclusivamente por instituições bancárias em operações de mútuo, o que resultava no desperdício de ativos valiosos, imobilizados em estruturas pouco eficientes e, por isso, indisponíveis para respaldar novas transações, em especial no contexto da antecipação de recebíveis no mercado de capitais.
Essa realidade alterou-se com o advento do Marco Legal das Garantias.
Dentre as inovações trazidas pela Lei nº 14.711/2023, com o objetivo de conferir maior amplitude, agilidade e utilidade às garantias reais, destacam-se três instrumentos de particular relevância: (1) a figura do agente de garantias, que permite a centralização e gestão profissionalizada das garantias por terceiro designado pelos credores; (2) a possibilidade de constituição de alienações fiduciárias supervenientes; e (3) o recarregamento de garantias, que autoriza a reutilização de garantias previamente constituídas para assegurar novas obrigações, desde que com o mesmo credor e respeitados os limites legais.
Essas alterações normativas guardam especial pertinência no âmbito do mercado de capitais, notadamente por dialogarem com duas das modalidades mais relevantes de garantias utilizadas nas operações estruturadas: a alienação fiduciária e a cessão fiduciária.
A alienação fiduciária, consiste na transferência da propriedade resolúvel de determinado bem — móvel ou imóvel — do devedor (fiduciante) ao credor (fiduciário), com finalidade exclusiva de garantia. Trata-se de instituto amplamente adotado em contratos de cessão e aquisição de direitos creditórios, sobretudo nas operações de antecipação de recebíveis estruturadas por Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) e companhias securitizadoras.
Nessa estrutura, a propriedade fiduciária permanece com o credor até o adimplemento integral da obrigação garantida, momento em que se opera, automaticamente, a reversão da titularidade ao fiduciante. Em caso de inadimplemento, contudo, a propriedade consolida-se em favor do credor, autorizando a excussão do bem por meio dos mecanismos legalmente previstos, inclusive por via extrajudicial.
Já a cessão fiduciária consiste na transferência resolúvel da titularidade de direitos creditórios — presentes ou futuros — do cedente ao cessionário, como forma de garantia do cumprimento de uma obrigação, geralmente decorrente de contratos de mútuo ou de aquisição de recebíveis. O cessionário fiduciário a a deter a titularidade resolúvel dos créditos, com função de garantia, até a quitação da obrigação principal, podendo utilizá-los como meio de satisfação do débito em caso de inadimplemento. Com o adimplemento da obrigação, a titularidade se reverte automaticamente ao cedente. Não obstante, em determinadas hipóteses, pode ser exigido ato formal de baixa ou quitação, especialmente quando os créditos estejam vinculados a registros públicos, como o de Títulos e Documentos.

Ambas as modalidades — alienação fiduciária e cessão fiduciária — são instrumentos jurídicos centrais para a estruturação das operações de antecipação de recebíveis no mercado de capitais. Contudo, para sua eficácia plena, é indispensável o registro da garantia fiduciária no respectivo cartório competente. O registro constitui requisito essencial tanto para a constituição válida da propriedade fiduciária quanto para sua oponibilidade erga omnes, viabilizando o exercício do direito de sequela e assegurando a prioridade do credor fiduciário frente a eventuais outros credores do devedor. Sem o registro, a garantia poderá ser considerada ineficaz, e a própria propriedade fiduciária, juridicamente inexistente.
Embora existam precedentes que reconheçam a validade da constituição da garantia fiduciária sem o respectivo registro — inclusive itindo, em determinados casos, a natureza extraconcursal do crédito fiduciário em processos de recuperação judicial e falência — o entendimento majoritário, alicerçado na Lei nº 9.514/1997 e nos artigos 1.245 e 1.361 do Código Civil, é no sentido de que o registro constitui requisito indispensável à própria validade da garantia. Trata-se do modo legal de aquisição da propriedade fiduciária, dotado de natureza constitutiva — e não meramente declaratória —, cuja ausência poderá comprometer não apenas a oponibilidade perante terceiros, mas também a própria validade e segurança jurídica da estrutura garantidora.
Impactos das inovações do Marco Legal nas garantias fiduciárias
O reconhecimento da necessidade de garantias fiduciárias mais amplas, céleres e adaptadas à dinâmica do mercado de capitais motivou a introdução de importantes inovações legislativas pelo Marco Legal das Garantias. As alterações visam conferir maior eficiência econômica, segurança jurídica e racionalidade às operações estruturadas de crédito, especialmente no que se refere à utilização estratégica de ativos como instrumento de mitigação de riscos. Dentre as principais inovações que compõem esse novo regime jurídico, destacam-se mecanismos que ampliam a funcionalidade e a liquidez das garantias fiduciárias, viabilizando seu aproveitamento mais eficaz no ambiente financeiro. A seguir, analisam-se as inovações mais relevantes:
a) Agente de garantias
Com o propósito de estimular a concorrência entre instituições financeiras e reduzir o custo do crédito, a Lei nº 14.711/2023 introduziu a figura do agente de garantias — entidade privada responsável por centralizar, istrar e exercer, em nome dos credores, os direitos decorrentes das garantias constituídas. Essa estrutura inovadora viabiliza a formalização da propriedade fiduciária sobre determinado bem e permite o compartilhamento de seu lastro entre múltiplos credores, mediante o aproveitamento do valor residual entre o valor de mercado do bem e as obrigações já garantidas. Trata-se, assim, de mecanismo que potencializa a eficiência econômica das garantias, conferindo maior racionalidade, flexibilidade e segurança jurídica às operações de crédito estruturado.
Nos termos do artigo 853-A do Código Civil [1], introduzido pela Lei nº 14.711/2023, compete ao agente de garantias proceder ao registro dos bens dados em garantia, informar às instituições financeiras o valor de mercado desses bens e controlar os empréstimos vinculados à chamada garantia “guarda-chuva”. Na prática, o agente de garantias atua em nome próprio, porém em benefício dos credores, exercendo atribuições como o monitoramento do cumprimento das obrigações garantidas e a adoção de medidas de cobrança, tanto judicial quanto extrajudicial. A inovação viabiliza a terceirização eficiente da gestão e da execução das garantias pelas instituições financeiras, com maior segurança jurídica e agilidade operacional.
b) Alienação fiduciária da propriedade superveniente
A Lei nº 14.711/2023, ao alterar o artigo 22 da Lei nº 9.514/1997, ou a disciplinar expressamente as alienações fiduciárias supervenientes — viabilizando a constituição de diversas garantias fiduciárias sobre o mesmo imóvel, com o mesmo ou diferentes credores. A medida visa permitir o aproveitamento do “capital morto” de bens subutilizados, maximizando seu potencial como lastro em operações de crédito.
Nessas hipóteses, o credor fiduciário de primeiro grau detém a propriedade resolúvel do bem. Já os credores de grau subsequente também possuem a propriedade resolúvel, porém subordinados a duas condições: (1) o adimplemento da dívida respectiva; e (2) a extinção da propriedade fiduciária de grau anterior. As garantias se ordenam conforme a antiguidade dos registros, prevalecendo a prioridade do credor que primeiro constituiu a alienação fiduciária (prior in tempore potior in iure).
A execução extrajudicial da garantia pelo credor fiduciário de grau anterior não sofre entraves pela existência de alienações posteriores. O único dever desse credor é distribuir eventual saldo remanescente da venda, respeitando a ordem de prioridade estabelecida em certidão lavrada pelo oficial do Registro de Imóveis, conforme o artigo 10 da Lei nº 14.711/2023 [2].
ite-se, ainda, a sub-rogação pelo credor fiduciário posterior, que poderá quitar a dívida do credor anterior e assumir sua posição preferencial (artigo 22, §5º, da Lei nº 9.514/1997 [3]).
c) Extensão ou recarregamento da alienação fiduciária
A Lei nº 14.711/2023 regulamentou também o recarregamento — ou extensão — de garantias reais. Trata-se da possibilidade de aproveitamento da garantia já constituída para assegurar novas operações de crédito com o mesmo credor. Essa modalidade permite a utilização do valor excedente da garantia registrada para respaldar novas operações de créditos. A regra exige a unicidade de credor e não se confunde com renegociação ou novação.
Nos termos dos artigos 9º-A a 9º-D da Lei nº 13.476/2017, com a redação conferida pela Lei nº 14.711/2023 (Marco Legal Garantias), o inadimplemento de qualquer das obrigações vinculadas à mesma garantia autoriza o credor, desde que haja cláusula expressa de cross default, a antecipar o vencimento das demais obrigações, mediante notificação prévia ao devedor para purgação da mora.
Conclusão
As garantias fiduciárias assumem papel central nas operações de antecipação de recebíveis realizadas por Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) e por securitizadoras, não apenas pela robustez jurídica decorrente da transferência da propriedade, mas também por sua eficiência operacional e blindagem frente aos efeitos da recuperação judicial. As recentes inovações legislativas ampliaram as possibilidades de utilização desse instrumento, reafirmando seu caráter estratégico no fortalecimento do crédito no mercado brasileiro.
[1] Art. 853-A. Qualquer garantia poderá ser constituída, levada a registro, gerida e ter a sua execução pleiteada por agente de garantia, que será designado pelos credores da obrigação garantida para esse fim e atuará em nome próprio e em benefício dos credores, inclusive em ações judiciais que envolvam discussões sobre a existência, a validade ou a eficácia do ato jurídico do crédito garantido, vedada qualquer cláusula que afaste essa regra em desfavor do devedor ou, se for o caso, do terceiro prestador da garantia.
[2] Art. 10. Quando houver mais de um crédito garantido pelo mesmo imóvel, realizadas averbações de início da excussão extrajudicial da garantia hipotecária ou, se for o caso, de consolidação da propriedade em decorrência da execução extrajudicial da propriedade fiduciária, o oficial do registro de imóveis competente intimará simultaneamente todos os credores concorrentes para habilitarem os seus créditos, no prazo de 15 (quinze) dias, contado da data de intimação, por meio de requerimento que contenha:
[3]Art. 22. (…) § 5º O credor fiduciário que pagar a dívida do devedor fiduciante comum ficará sub-rogado no crédito e na propriedade fiduciária em garantia, nos termos do inciso I do caput do art. 346 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
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