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'Laranjal flex' e gattopardismo: como esvaziar a cota de gênero afirmando proteger mulheres

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7 de maio de 2025, 8h00

Um balão de ensaio tem pairado em Brasília. É a tese do “laranjal flex”.

Ela sustenta que, verificado o uso de candidaturas femininas fictícias, os efeitos da declaração da fraude não poderiam ir tão longe a ponto de atingir os mandatos de mulheres eleitas. Tal seria contraditório com a política pública de cota de gênero (artigo 10, § 3º, Lei 9.504/97), cujo objetivo é aumentar a representatividade feminina. Um “impacto desproporcional”.

É dizer: a corda rói para o lado mais fraco. Inelegibilidade para mulheres socialmente vulneráveis, blindagem para as eleitas.

Eterno retorno?

Pelo menos desde o precedente de Valença (PI), de 2019, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) assenta que a constatação de fraude à cota de gênero torna imperativa a cassação do Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (Drap) da legenda, independentemente da descrição individualizada da conduta dos candidatos e candidatas lá referidas [1].

Há uma lógica nisso. O registro de candidatura compreende uma fase partidária, formalizada pelo preenchimento do Drap, e outra individual, firmada pelo candidato ou candidata (Requerimento de Registro de Candidatura – RRC). “O primeiro procedimento é o processo principal em relação aos individuais, existindo, pois, uma relação de dependência de um para com o outro” [2].

Assim graficamente explicou a ministra Rosa Weber, relatora da histórica ADI 6.338. Na oportunidade, registrou, também, que era muito claro que tal ADI tinha “como panorama de fundo o entendimento firmado pelo Tribunal Superior Eleitoral no julgamento do REspEl 19.392/PI, rel. min. Jorge Mussi, j. 17.9.2019” [3]. Isso porque a questão posta em discussão era a de saber se “seria contraditório instituir uma política de promoção da participação feminina na política e, ao mesmo tempo, cassar o registro das candidatas eleitas que compam a coligação, mas sobre as quais não recai efetiva demonstração de participação ou anuência na fraude” [4].

Por unanimidade, a ADI foi julgada improcedente. Era março de 2023.

Em maio de 2024, o TSE amparou-se nesse precedente para editar a Súmula 73, que, entre outras coisas, prevê a cassação do Drap da legenda que fraudou a cota de gênero e, em decorrência, dos diplomas de candidatos e candidatas a ele vinculados.

Com a matéria sumulada pelo TSE e apreciada pelo STF em precedente vinculante, parecia ser o fim da estória [5]. Não foi. Até agosto de 2024, arrastou-se no Plenário do TSE o exame de fraude à cota de gênero na eleição para a Câmara de Vereadores de Granjeiro (CE) [6]. Com atuação decisiva da presidente Cármen Lúcia, a jurisprudência se manteve por um apertado 4 a 3; a minoria se valeu exatamente do argumento da desproporcionalidade.

Carolina Cyrillo, advogada

Agora em 2025, o TSE terá novo encontro marcado com o assunto, e a solução “flex” voltou a circular em Brasília.

O perigo tem nome: gattopardismo eleitoral

Os dados de 2025 revelam que o Brasil ocupa o 133º lugar no ranking global de presença de mulheres em parlamentos nacionais, com parcos 18,1% de representação feminina na Câmara dos Deputados [7].

Quem olha para Espanha (17º lugar, com 44,3%) ou Portugal (51º lugar, com 34,8%) pode se sentir encorajado a empunhar a pueril desculpa do “subdesenvolvimento”. No entanto, nem uma “comparação regional” suaviza nosso atraso. O Brasil está longe da média da América do Sul (31,8%) e dos números dos países vizinhos. O golpe de misericórdia vem da Bolívia, que com 46,2% de mulheres no parlamento, está no 8º lugar no ranking global.

É de se indagar: como o Brasil, um dos pioneiros na implementação do voto feminino, em 1932, pode ter números tão piores que os de países que instituíram a igualdade de gênero no sufrágio anos depois?  O México reconheceu o sufrágio feminino em 1953. Hoje, tem 50,2% de mulheres no parlamento (4º lugar global). A Argentina o fez em 1947 e, atualmente, está no 20º lugar, com as mulheres ocupando 42,4% dos assentos de sua câmara baixa.

De 1932 a 1988, o Brasil evoluiu quase nada. Na primeira eleição proporcional sob a atual ordem democrática (1990), apenas 29 mulheres foram eleitas para a Câmara dos Deputados – 5,77% das vagas.

Tampouco portentosa é a trajetória nacional depois de 1988. Temos revezado com o Paraguai o título de “lanterninha” de representatividade feminina na América do Sul.

O problema é profundo. Trata-se de especialidade nacional: enunciar formalmente um direito e dar de costas para as condições materiais de sua realização. Como se fosse suficiente “afirmar que a lei, na sua majestática igualdade, proíbe igualmente ao rico, como ao pobre, furtar um pão, dormir sob as pontes e mendigar pelas ruas” – na inspirada ironia do orador da Turma “Aliomar Baleeiro” da UnB, de 1978, um certo Gilmar Ferreira Mendes [8].

Paulo Sávio Maia, advogado

A tragédia da baixa representatividade feminina no Brasil encontra nisso a sua explicação: quando algo muda, é para continuar como dantes.

Um exemplo em três atos:

(1) o STF determinou que o percentual de recursos do Fundo Partidário destinado às mulheres precisa respeitar a mesma proporção das candidaturas femininas trazidas no Drap da legenda (que é, no mínimo, de 30%) [9];

(2) e o TSE estendeu essa compreensão para a distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha [10];

(3) todavia, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 117/2022, que constitucionaliza a jurisprudência, mas não sem veicular anistia aos partidos que atuaram em desacordo com as balizas demarcadas pelo Supremo e pela Justiça Eleitoral.

É tão constrangedor quanto necessário convir: a fraude compensou. Tudo mudou para que tudo continuasse como estava. Eis o nosso gattopardismo eleitoral.

O ‘laranjal flex’ é um gattopardismo que esconde uma anistia

Em uma das sessões dedicadas ao julgamento do caso de Granjeiro (CE), a de maio de 2024, o ministro Alexandre de Moraes produziu aparte que ilustrou qual perigo se esconde por trás da simpática tese de conservar mandatos de mulheres supostamente inocentes quanto à fraude.

Comparando os 42% de participação feminina da “nossa vizinha Argentina” com a realidade brasileira, o ministro disparou:

“Não há porque se falar em cota de gênero, se nós vamos permitir qualquer tipo de relativização ou fraudes que acabem deturpando e prejudicando o global da cota de gênero. Se nós verificarmos a possibilidade de, na lista aberta, nos 30% dos lugares destinados a mulheres, o que ocorria antes da decisão do Tribunal Superior Eleitoral – depois, mantida e referendada pelo Supremo Tribunal Federal –, o que ocorria antes de o Tribunal Superior Eleitoral determinar que 30% de vagas equivalia a 30% do horário eleitoral e do Fundo Partidário? Colocava-se 30% de mulheres e dava 5% do valor do Fundo Partidário. Isso não é respeito à cota de gênero, isso não é permitir que as mulheres disputem em igualdade de condições. Vem a decisão e coloca 30%, no mínimo, com 30% do Fundo Partidário, se tiverem mais mulheres, sempre proporcional. Se nós (…) formos permitir que os fins justifiquem os meios, nós vamos retornar ao que era antes, em que 30% de mulheres, só 5% no Fundo Partidário e 5% ia para uma única mulher. Geralmente, parente do dirigente partidário ou mulher de um deputado ou filha de um senador, ou seja, para eleger essa mulher(grifo das colunistas).

O aparte ilustra as razões pelas quais a tese do “laranjal flex” se inscreve no marco do gattopardismo eleitoral brasileiro.

Basta ler depoimentos produzidos em ações eleitorais que investigam tais fraudes para ver que diretórios partidários não plantam um laranjal num Drap sem desgraçar a vida de mulheres economicamente vulneráveis (violência de gênero qualificada) ou sem beneficiar mulheres socialmente privilegiadas (inclusive por nepotismo). De quebra, esses dirigentes ainda desrespeitam a jurisprudência do Supremo concentrando recursos nas privilegiadas – tal como antes.

A tese do “laranjal flex”, ao exigir prova de que as privilegiadas concorreram para a fraude, quer que se acredite que recursos de campanha possam ser drenados em favor de poucas privilegiadas sem que estas percebam a benesse.

Uma premissa simplesmente irreal, e que conduz a um resultado surreal. Concede-se verdadeira anistia àquelas que se beneficiaram de uma estrutura montada para burlar o comando do legislador de aumentar o número de candidaturas femininas. A cota de gênero é esvaziada.

A prevalecer a tese do “laranjal flex”, ficaremos com o pior dos mundos.

O direito comparado cataloga vários desenhos institucionais para aumentar a participação da mulher na política. Há países que adotam reserva de vagas [11]: a legislação já antecipa o percentual de assentos de um parlamento que serão ocupados por mulheres.

Mais comum, entretanto, é o modelo que busca a inclusão pelo procedimento, mediante reserva de candidaturas. Na Argentina, sua adoção no contexto de listas fechadas foi decisiva para o sucesso da cota de gênero [12].

No Brasil, o Congresso Nacional escolheu o sistema de reserva de candidaturas, porém em lista aberta. É o modelo que mais respeita a autonomia dos partidos políticos. E, claro, isso é um valor constitucionalmente protegido. Somos uma democracia de partidos. Todavia, esse modelo é também o menos garantista para as mulheres. Sendo puramente procedimental (repita-se o óbvio: não há reserva de vagas no Congresso Nacional), a eficácia da política dependerá de um processo eleitoral escorreito, em que a fraude não compense.

A propósito, de todos os bem lançados votos da ADI 6.338, foi o do ministro Nunes Marques o que se mostrou mais consciente dessa peculiaridade do modelo adotado pelo Brasil, quando asseverou que as sanções capituladas para o descumprimento da cota de gênero são estritamente constitucionais exatamente por garantirem a realização de maior participação feminina na vida pública [13].

Irrepreensível o raciocínio, porque percebe que um escrutínio mais rigoroso da dinâmica partidária no processo eleitoral é a contrapartida necessária a um modelo apenas procedimental de inclusão feminina que se insere em contexto de lista aberta.

Conclusão

De um ponto de vista estritamente jurídico, não é apropriado afirmar que a ausência de “modulação” dos efeitos da cassação do Drap, em relação às mulheres eleitas, seria de alguma maneira contraditória com a política pública de cota de gênero, naquilo que diminui o número de mulheres parlamentares.

Ao contrário, a cassação integral do Drap é contrapartida adequada ao sistema escolhido pelo legislador brasileiro, que é procedimental (reserva de candidatura), e medida necessária para que, no âmbito de um sistema proporcional de lista aberta, a cota de gênero não se transforme em simulacro.

De um ponto de vista humano, que é aquele que mais importa, a tese do “laranjal flex” revela-se ainda mais frágil, porque elimina aquilo que diz preservar. Ela perpetua a exclusão das mulheres. O que em verdade precisamos é combater a instrumentalização de mulheres vulneráveis e repelir, veementemente, essa violência de gênero. Isso interessa a todos nós, mulheres e homens. Afinal, “as violências que são praticadas contra as mulheres são uma forma de violência contra toda a humanidade, representam a desumanização da mulher” (ministra Cármen Lúcia) [14].

 


[1] TSE, REspEl n. 19.392/PI, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe de 04/10/2019.

[2] ADI 6.338, Rel. Min. Rosa Weber, Pleno, DJe de 07/06/2023.

[3] ADI 6.338, Rel. Min. Rosa Weber, Pleno, DJe de 07/06/2023, p. 37 do voto.

[4] ADI 6.338, Rel. Min. Rosa Weber, Pleno, DJe de 07/06/2023, p. 15 do voto.

[5] S.f. Conto popular tradicional, narrativa de ficção. Esta palavra foi proposta por estudiosos do folclore, em 1942, com o intuito de diferenciar história/folclore de história/ciência. Não nos parece necessário o neologismo. Por isso recomendamos que, em qualquer acepção, se use apenas história. CEGALLA, Dicionário de dificuldades da Língua Portuguesa, 2018.

[6] TSE, REspEl 0600003-05.2021.6.06.0062 – Granjeiro/CE, Rel. Min. André Ramos Tavares, j. 15.08.2024. Afirme-se que, no caso, havia outras complexidades: a cassação do DRAP do Republicanos importaria na cassação do diploma da única mulher eleita para a Câmara de Vereadores (o recálculo dos quocientes projetava que um homem assumisse a vaga), e tal casa aria a contar com representação unipartidária, segundo vocalizado nos debates.

[7] Para facilitar o argumento, optamos pelos números das “câmaras baixas” (em vários países do levantamento da IPU não há bicameralismo) e, onde a organização atende pelo modelo federal, colhemos os dados dos órgãos legislativos do ente nacional.

[8] Trecho citado em: MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional da liberdade para a liberdade. Avaré: Contracorrente, 2025, p. 20. A obra reúne a lectio doctoralis proferida quando de sua investidura no título de doutor honoris causa da Universidade de Buenos Aires, bem como a laudatio prolatada pelo Catedrático Raúl Gustavo Ferreyra, e as palavras iniciais do Decano Leandro Vergara. Sua publicação deve-se ao entusiasmo de Rafael Valim e Gustavo Marinho, da Contracorrente.

[9] ADI 5.617, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 03/10/2018.

[10] TSE, Consulta n. 0600252-18, Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 15/08/2018.

[11] “La participación de las mujeres y la adopción de decisiones por ellas de forma plena y efectiva en la vida pública, así como la eliminación de la violencia, para lograr la igualdad entre los géneros y el empoderamiento de todas las mujeres y las niñas – Informe del Secretario General ONU”, do Conselho Econômico e Social, Comissão da Condição Jurídica e Social da Mulher, 65º período de sessões, 15-26 de março de 2021, § 19 ( https://docs.un.org/es/E/CN.6/2021/3 ).

[12] Na Argentina, exige-se nas listas partidárias a paridade entre homens e mulheres. Sem isso, a lista não é registrada. PERÍCOLA, María Alejandra; NOGUEIRA, Agostina Giaroli. “De la cuota de género a la paridad electoral”. In: PERÍCOLA, María Alejandra (Org.). Hacia una representación política inclusiva. Buenos Aires: Eudeba, 2021, p. 53-92.

[13] ADI 6.338, Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 07/06/2023, p. 76-79 do inteiro teor do acórdão.

[14] Fala no “III Encontro Nacional de Magistradas Integrantes de Cortes Eleitorais”, em 28/03/2023.

Autores

  • é advogada, professora de Direito Processual Constitucional da UFRJ, docente de Elementos de Direito Constitucional (UBA), doutora (UFRJ) e mestre (UFSC) em Direito.

  • é advogado em Brasília, coordenador-executivo do Centro Hans Kelsen de Estudos sobre a Jurisdição Constitucional (IDP), doutorando (USP) e mestre (UnB) em Direito.

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