Sucumbência no IDPJ: risco processual ou retrocesso à efetividade da execução?
7 de maio de 2025, 11h24
No último dia 17 de fevereiro, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por maioria de votos, firmou importante precedente no julgamento do Recurso Especial nº 2.072.206/SP, ao decidir que é cabível a fixação de honorários advocatícios de sucumbência na hipótese de improcedência do pedido formulado no incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ).

Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva
A decisão, de relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, representa uma inflexão relevante na jurisprudência da corte quanto à natureza do IDPJ e seus efeitos órios. O entendimento majoritário da corte reconheceu que, apesar de sua nomenclatura processual, o incidente possui estrutura própria de demanda, com partes, causa de pedir e pedido específico, ensejando, portanto, a aplicação do princípio da sucumbência mesmo na hipótese de sua rejeição.
Trata-se, sem dúvida, de precedente relevante e tecnicamente construído. Mas também se impõe, com igual responsabilidade institucional e respeito ao papel constitucional do STJ, uma análise crítica dos efeitos que tal orientação pode irradiar no sistema processual civil como um todo, especialmente no campo da execução, onde o IDPJ mais frequentemente é manejado.
O presente artigo se propõe a demonstrar, com fundamento técnico e postura dialógica, que a fixação automática de honorários sucumbenciais na improcedência do IDPJ pode representar um retrocesso à efetividade da jurisdição executiva, agravando as dificuldades do credor e desestimulando o uso de uma ferramenta processual legítima para alcançar a satisfação do crédito em contextos de ocultação patrimonial e estruturas empresariais fraudulentas.
Mais do que negar a validade formal da decisão, o que se busca aqui é propor uma reflexão crítica: seria adequado equiparar o IDPJ a uma demanda autônoma, submetendo-o integralmente ao regime da sucumbência, ainda que proposto de forma fundamentada e com base em indícios razoáveis? Ou estaríamos criando uma nova barreira — agora econômica — para o exercício legítimo de um mecanismo técnico, muitas vezes a única via possível para alcançar bens do devedor
Com essas premissas, seguem as reflexões.
Natureza do IDPJ: incidente, e não ação
O incidente de desconsideração da personalidade jurídica, previsto nos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil, foi concebido como um instrumento processual incidental, voltado à superação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica sempre que caracterizado abuso de direito, desvio de finalidade ou confusão patrimonial.

Ainda que o legislador tenha disciplinado o IDPJ de forma detalhada, inclusive com previsão de contraditório, produção de prova e decisão específica, isso não descaracteriza sua natureza jurídica de incidente processual. Trata-se, por essência, de uma ferramenta ória e dependente do processo principal, não instaurando uma nova relação jurídica processual autônoma.
A doutrina majoritária e a jurisprudência consolidada até recentemente sempre compreenderam o IDPJ como um mecanismo excepcional, limitado ao escopo de permitir a responsabilização de terceiros vinculados à pessoa jurídica devedora, sem abrir margem para o surgimento de uma “nova causa”. Como afirmou Araken de Assis, o incidente não cria nova demanda, mas reorienta a eficácia subjetiva do provimento já existente.
Ademais, o procedimento não prevê citação, mas apenas ciência e posterior manifestação, o que reforça sua não equiparação à ação judicial, na forma dos artigos 134, §2º, e 135 do C. O próprio Supremo Tribunal Federal, ao tratar da compatibilidade do IDPJ com garantias fundamentais, reconheceu que se trata de instrumento processual técnico, destinado a compatibilizar o devido processo legal com a efetividade da jurisdição.
Nesse contexto, reconhecer o IDPJ como uma “demanda” autônoma — como faz o recente precedente do STJ — implica reformular sua própria natureza jurídica, com sérias repercussões práticas e teóricas. Se o incidente a a produzir efeitos sucumbenciais plenos, equiparando-se a uma ação ordinária, então também deveria, por coerência, ser precedido de citação formal, custas processuais autônomas e até distribuição por sorteio, o que evidentemente não se verifica nem é desejável.
Tal interpretação parece desviar-se da lógica do sistema, aproximando perigosamente o incidente de uma “ação paralela”, o que pode resultar não apenas em distorções práticas, mas em desequilíbrios entre as partes, sobretudo no âmbito das execuções — ambiente em que o IDPJ é mais frequentemente manejado e no qual a efetividade e a celeridade deveriam prevalecer sobre formalismos excessivos.
Momento e técnica: por que o IDPJ não pode ser tratado como demanda comum
Para além da sua natureza jurídica, a forma como o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é utilizado na prática forense revela que tratá-lo como verdadeira ação, sujeita a honorários sucumbenciais em caso de improcedência, ignora as peculiaridades do seu contexto de aplicação e o seu grau técnico-jurídico elevado.
É notório que o IDPJ, embora previsto também para a fase de conhecimento, tem sua utilização majoritária na fase de cumprimento de sentença ou execução. Ou seja, quando o crédito já foi reconhecido judicialmente e o exequente se depara com a ineficácia prática da decisão por ausência de bens em nome da devedora originária, inicia-se uma busca por estruturas jurídicas paralelas ou subjacentes, muitas vezes ocultas ou artificialmente desenhadas para frustrar a execução.
Nesse cenário, o credor, de boa-fé, se vê compelido a formular um pedido técnico, baseado em documentos, movimentações patrimoniais, histórico societário e dados públicos ou obtidos por meios incidentais de pesquisa. Não raramente, mesmo diante de indícios eloquentes de abuso de personalidade jurídica, os tribunais mantêm uma postura restritiva à desconsideração, exigindo provas que o credor sequer tem condições plenas de produzir sem o a informações internas da empresa.
A rigidez dos critérios aplicados e a dificuldade prática de produção probatória transformam o IDPJ em um verdadeiro campo de prova negativa, no qual o exequente deve presumir e demonstrar a ilicitude de arranjos empresariais, sem o aparato probatório típico de uma instrução completa. E agora, com a possibilidade de ser condenado em honorários sucumbenciais, mesmo atuando com diligência e fundamento, corre o risco de ser penalizado por não atingir um ônus probatório quase intransponível.
Tal lógica subverte princípios basilares do processo civil contemporâneo, como a boa-fé processual, a cooperação e o o efetivo à justiça. Pior: pune-se o credor pelo uso de um mecanismo criado exatamente para frustrar manobras abusivas do devedor, comprometendo a efetividade das decisões judiciais e incentivando condutas de blindagem patrimonial.
Em suma, o IDPJ não pode ser equiparado a uma demanda comum exatamente porque:
– não há contraditório prévio à instauração (mas apenas ciência e posterior manifestação);
– seu ajuizamento decorre de necessidade de efetivar um título já formado, e não de novo litígio;
– a complexidade técnica da prova e a assimetria informacional entre as partes impõem cautela ao se atribuir risco econômico desproporcional ao exequente;
– e o risco de honorários em caso de improcedência, ainda que o incidente tenha sido manejado com boa-fé, pode converter o IDPJ em instrumento de intimidação jurídica, contrário ao espírito do legislador.
Decisão do STJ: análise crítica da virada jurisprudencial
No julgamento do Recurso Especial nº 2.072.206/SP, a Corte Especial do STJ, em importante composição ampliada e sob relatoria do eminente ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, firmou entendimento pela possibilidade de fixação de honorários advocatícios em favor da parte indevidamente chamada ao polo ivo, quando rejeitado o pedido formulado no Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica.
A argumentação adotada na decisão é sólida sob o ponto de vista jurídico-formal. Reconhece-se, com clareza, que o incidente envolve partes definidas, causa de pedir específica e um pedido com aptidão para alterar subjetivamente os efeitos do título judicial. A partir dessa lógica, a corte assentou que a improcedência do pedido representa hipótese legítima de sucumbência, devendo ser aplicada a regra geral do artigo 85 do Código de Processo Civil.
Não há dúvida de que se trata de uma construção jurídica coerente com a dogmática processual, especialmente sob o prisma da paridade de armas e da proteção ao contraditório efetivo. Trata-se de uma leitura que, ao reconhecer a litigiosidade do incidente, busca conferir equilíbrio e segurança jurídica aos indivíduos chamados a responder por débitos de terceiros.
Todavia, com a máxima reverência ao precedente e à qualidade dos votos que o compõem, é preciso ponderar se a solução adotada conduz aos resultados mais compatíveis com os valores estruturantes do processo executivo contemporâneo. Em particular, se a tese firmada observa, na prática, os postulados da razoabilidade, da proporcionalidade e da instrumentalidade do processo, especialmente no âmbito da efetivação das decisões judiciais.
É importante notar que, ao afirmar que o IDPJ gera risco de sucumbência como qualquer outra demanda, desloca-se sua natureza prática de incidente processual para uma quase ação autônoma. Essa mutação interpretativa, embora tecnicamente defensável, pode, na concretude da vida forense, onerar excessivamente o exequente, sobretudo aquele que atua com boa-fé, embasado em indícios objetivos e no legítimo exercício de seu direito de obter a satisfação de um crédito judicialmente reconhecido.
Mais do que um desacordo quanto à aplicação de normas processuais, o que se pretende expor aqui é uma preocupação de ordem sistêmica: a eventual naturalização de honorários na improcedência do IDPJ pode criar um efeito inibitório sobre sua utilização legítima, distanciando o processo civil brasileiro de sua vocação constitucional de assegurar a tutela jurisdicional plena e efetiva.
Reconhece-se, portanto, a relevância teórica da construção firmada pelo STJ, mas entende-se que ela merece ser aplicada com prudência e sensibilidade prática, especialmente nos casos em que não se verifica má-fé, temeridade ou uso abusivo do incidente.
Impacto prático: entre o medo e a omissão
Ao reconhecer a possibilidade de fixação de honorários sucumbenciais em caso de improcedência do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o Superior Tribunal de Justiça contribui para o aperfeiçoamento do debate sobre os limites do contraditório e da responsabilidade processual. Contudo, é igualmente necessário considerar os efeitos práticos e psicológicos dessa orientação sobre os atores processuais, em especial sobre os credores que buscam, de modo legítimo, alcançar a efetividade de um título judicial.
É inegável que o IDPJ, sobretudo quando manejado em fase executiva, constitui uma das poucas ferramentas disponíveis ao credor diante de estruturas empresariais que, embora formalmente regulares, muitas vezes atuam com blindagem patrimonial artificial ou abuso da personalidade jurídica. Nesses contextos, o uso do incidente não decorre de impulso temerário, mas sim de uma tentativa legítima de impedir que a jurisdição se torne simbólica diante da inadimplência organizada.
A possibilidade de imposição de sucumbência ao credor, mesmo quando este atue com diligência, técnica e boa-fé, pode introduzir um elemento inibidor desproporcional. Em vez de encorajar o uso responsável do IDPJ, tal interpretação pode gerar receio, paralisia e, em última análise, omissão. Advogados e credores arão a considerar não apenas a viabilidade jurídica do pedido, mas também o risco econômico de verem-se condenados ao pagamento de honorários por uma tese que, embora plausível, não logrou convencimento judicial.
Essa hesitação pode ser particularmente danosa em execuções contra empresas de médio porte, ou em causas de menor valor, onde o impacto financeiro de uma eventual sucumbência pode inviabilizar a continuidade da execução. O receio de honorários pode impedir que o IDPJ cumpra seu papel saneador e protetivo do crédito, sobretudo diante de grupos empresariais que se utilizam da personalidade jurídica como escudo indevido.
Além disso, abre-se perigoso espaço para uma desigualdade processual velada: credores economicamente mais frágeis se tornarão reticentes em utilizar um instrumento técnico que, paradoxalmente, foi instituído pelo legislador para protegê-los da evasão patrimonial. Instaura-se, assim, uma espécie de “barreira econômica à jurisdição executiva”, incompatível com os princípios da ampla defesa e da efetividade da tutela jurisdicional.
O impacto desse novo paradigma não se restringe ao plano individual. Há risco de que, em médio prazo, a jurisprudência venha a observar uma redução estatística no uso do IDPJ, não por desnecessidade do mecanismo, mas por medo de sanções econômicas derivadas da improcedência. E esse silêncio forçado do credor representa uma perda sistêmica: para o processo, para a jurisdição e para a crença social na efetividade da justiça.
Para uma aplicação ponderada e proporcional
O precedente firmado pela Corte Especial no REsp 2.072.206/SP é, sem dúvida, relevante. Representa uma evolução interpretativa que busca equilibrar o contraditório no âmbito do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, valorizando a posição daqueles que são chamados a juízo para responder por obrigações alheias. A boa-fé de quem se vê indevidamente incluído no polo ivo deve, sim, ser preservada.
Entretanto, ao reconhecer a possibilidade de condenação em honorários advocatícios na improcedência do incidente, é fundamental que esse entendimento seja aplicado com sensibilidade e prudência, sem perder de vista o contexto sistêmico em que o IDPJ opera: um mecanismo técnico, ório, frequentemente utilizado como último recurso para evitar a frustração da jurisdição executiva.
Não se ignora a relevância da tese, tampouco se propõe sua rejeição pura e simples. O que aqui se sustenta é que a mera improcedência do pedido não deveria, por si só, implicar a automática condenação em honorários, sobretudo quando o incidente foi manejado com fundamentação jurídica, diligência probatória e ausência de abuso processual.
A equiparação do IDPJ a uma ação autônoma pode afastar o sistema processual da efetividade e da razoabilidade que o C/2015 se propôs a implementar. A imposição de sucumbência ao credor de boa-fé, que busca o cumprimento de uma decisão judicial, pode desencorajar o uso legítimo de um instrumento essencial à desarticulação de estruturas patrimoniais fraudulentas – o que não serve nem à Justiça, nem à sociedade.
O desafio que se impõe, portanto, não é o de negar o direito de defesa daquele que se vê incluído em um IDPJ. Mas sim o de preservar o equilíbrio, permitindo que o incidente continue sendo um caminho viável para a realização do crédito, sem se converter em uma armadilha financeira para o credor diligente.
Espera-se, por fim, que a aplicação prática do precedente respeite tais ponderações, e que os tribunais saibam distinguir o uso abusivo do incidente — que, evidentemente, pode ensejar sanções processuais — daquele que decorre de uma atuação responsável, técnica e compatível com os princípios que regem o processo civil contemporâneo.
Referência bibliográfica
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 2.072.206/SP. Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgado em 17 fev. 2025. Corte Especial. Publicado no DJe em 12 mar. 2025.
BRASIL. Código de Processo Civil (2015). Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 152, n. 52, p. 1-12, 17 mar. 2015. Disponível aqui
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!