A liberdade de crença para além da esfera privada
8 de maio de 2025, 15h15
Conforme consta no artigo 5º, caput, da Constituição de 1988, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, além da inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença (inciso VI).
Nesse particular, conforme leciona o professor Lenza (2022, p. 192),
“Os direitos humanos da 1ª dimensão marcam a agem de um Estado autoritário para um Estado de Direito e, nesse contexto, o respeito às liberdades individuais, em uma verdadeira perspectiva de absenteísmo estatal. Seu reconhecimento surge com maior evidência nas primeiras Constituições escritas, e podem ser caracterizados como frutos do pensamento liberal-burguês do século XVIII. Tais direitos dizem respeito às liberdades públicas e aos direitos políticos, ou seja, direitos civis e políticos a traduzir o valor liberdade. Conforme anota Bonavides, ‘os direitos de primeira geração ou direitos de liberdades têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado’.” (g. n.)
Por conseguinte, a autodeterminação de crença se enquadra nos direitos humanos fundamentais de primeira dimensão, isto é, caracteriza um quadro de subjetividade no qual o Estado não pode interferir por configurar o valor individual da liberdade, ou direito civil.
Dessa forma, estando o autogoverno de crença previsto no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos da Constituição da República, configura-se como cláusula pétrea, isto é, não será objeto de deliberação em proposta de emenda constitucional tendente a aboli-la (artigo 60, § 4º, CB).
Com efeito, segundo o professor Silva (2005, p. 67),
“É claro que o texto não proíbe apenas emendas que expressamente declarem: ‘fica abolida a Federação ou a forma federativa de Estado’, ‘fica abolido o voto direto…’, ‘a a vigorar a concentração de Poderes’, ou ainda ‘fica extinta a liberdade religiosa, ou de comunicação…, ou o habeas corpus, o mandado de segurança…’. A vedação atinge a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual da Federação, ou do voto direto, ou indiretamente restringir a liberdade religiosa, ou de comunicação ou outro direito e garantia individual; basta que a proposta de emenda se encaminhe ainda que remotamente, ‘tenda’ (emendas tendentes, diz o texto) para a sua abolição.” (g. n.)
Portanto, apenas com uma nova Constituição poderíamos instituir um Estado Unitário, o voto por procuração, um Estado ateu ou até mesmo um império sob o comando de um monarca [1].
Nessa senda, conforme ensina o professor Ferreira Filho sobre esse direito individual (2012, p. 465),
“A liberdade de consciência e de crença, porém, se extroverte, se manifesta na medida em que os indivíduos, segundo suas crenças, agem deste ou daquele modo, na medida em que, por uma inclinação natural, tendem a expor seu pensamento aos outros e, mais, a ganhá-los para suas ideias. As manifestações, estas sim, pelo seu caráter social valioso, é que devem ser protegidas, ao mesmo tempo que impedidas de destruir ou prejudicar a sociedade. A manifestação do pensamento ou crença transparece de vários modos que todos a Constituição considera. A crença pode manifestar-se pela conduta individual, notada pelos que com o indivíduo convivem, sem que a pessoa pretenda com isso proselitismo. Essa liberdade de agir segundo sua consciência e crença também é reconhecida pela Constituição. Esta, porém, se crença ou convicção for alegada para exonerar o indivíduo de obrigação, encargo, ou serviço imposto pela lei aos brasileiros em geral, o priva dos direitos apenas se houver recusa de cumprimento de obrigação alternativa determinada em lei (art. 5º, VIII).” (g. n.)
Destarte, para esse brilhante jurista, as crenças individuais de alguém podem ser notadas pelas demais pessoas de seu círculo de convivência, sem que isso configure proselitismo, ou seja, uma tentativa contínua de persuadir ou convencer outros a aceitá-las, e referido direito está protegido pela Constituição como uma manifestação da personalidade.
Liberdade de crença, Estado laico e Estado Laicista
De forma semelhante, o professor Martins ressalta sobre esse direito que (2022, p. 1.293),
“A liberdade de consciência consiste na liberdade de pensamento. Ninguém poderá ser cerceado por ter uma ideologia diversa da maioria (comunista numa sociedade que majoritariamente defende o capitalismo, defensor dos direitos sociais numa sociedade que majoritariamente defende o liberalismo etc.). O Estado terá principalmente um dever de abstenção, de não agir, impossibilitado de cercear essa liberdade individual. Não obstante, como vimos no capítulo anterior, esse direito (como os outros) tem uma dimensão objetiva, que exige que o poder público impeça violações a essa liberdade, seja por parte de seus agentes, seja por parte de particulares. A liberdade de crença é o mesmo que a liberdade de consciência, só que voltada para o aspecto religioso, transcendental. Possui dois aspectos diversos: a) positivo: o direito de escolher a própria religião; b) negativo: o direito de não seguir, de não professar qualquer religião.” (g. n.)
Dessa forma, além de não poder cercear os indivíduos da liberdade de consciência e de crença, o Estado ainda deve garantir que seus agentes ou particulares não surrupiem esse direito de primeira geração, nascido na Revolução sa.
De outro vértice, o Conselho Nacional de Justiça, instado a se manifestar sobre a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no sentido de retirada dos crucifixos de todos os prédios do Poder Judiciário do estado, assim se manifestou:
“Há aqueles que confundem Estado Laico com Estado Laicista, deturpação do primeiro, no qual se procura isolar o fator religioso à esfera puramente pessoal, proibindo ou cerceando as manifestações externas da religiosidade. […] Da mesma maneira, há inegável prevalência do cristianismo, como fé predominante na nação o que não pode ser ignorado, mas que também não pode ofender a laicidade do Estado, nem apresentar caráter excludente. […] Símbolos religiosos são também símbolos culturais, que corporificam as tradições e valores de uma cultura ou civilização, sintetizando-os. Nesse sentido, o Crucifixo é um símbolo simultaneamente religioso e cultural, consubstanciando um dos pilares – o mais transcendente – de nossa civilização ocidental. […] Para acolher a pretensão de retirada de símbolos religiosos sob o argumento de ser o Estado laico, seria necessário também, extinguir feriados nacionais religiosos, abolir símbolos nacionais, modificar nomes de cidades e até alterar o preâmbulo da Constituição Federal. […] Por isso, merece reparo a decisão do Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul que determinou, de forma discriminatória, a retirada dos crucifixos’.” (Pedido de providências nº 0001058-48.2012.2.00.0000)
Nesse ponto, o CNJ, órgão de controle interno do Poder Judiciário (artigo 103-B, CF), deixou muito clara a diferença entre o Estado laico, aquele distanciado das religiões, com Estado laicista, aquele que nega qualquer manifestação dessa religiosidade no âmbito público, a qual vai ao encontro da tese fixada no ARE nº 1.249.095 de São Paulo [2].
No mesmo caminho escreveu Miranda (2005, p. 448), para quem
“(…) laicidade e separação não equivalem, contudo, a laicismo ou a irrelevância, menosprezo ou desconhecimento da religião (…) Uma coisa é o Estado, enquanto tal, não assumir fins religiosos, não professar nenhuma religião, nem submeter qualquer Igreja a um regime istrativo; outra coisa seria o Estado ignorar vivências religiosas que se encontram na sociedade ou a função social que, para além delas, as confissões exercem nos campos do ensino, da solidariedade social ou da inclusão comunitária.” (g. n.)
Além de tudo, igualmente salientando o caráter cultural de algumas manifestações religiosas, no ARE nº 1.468.779 de São Paulo, nosso Tribunal Constitucional ementou o seguinte:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTRUÇÃO DE MONUMENTO RELIGIOSO. COTEJO COM A LAICIDADE DO ESTADO. ART. 19, INC. I, DA CRFB. EXPRESSÃO HISTÓRICO-CULTURAL NA HIPÓTESE. FOMENTO AO TURISMO, COMO SETOR PREPONDERANTE DA ECONOMIA MUNICIPAL. PROVIMENTO.”
De seu turno, provocado a se manifestar sobre a prerrogativa do presidente de uma Câmara de Vereadores iniciar a sessão invocando a palavra “Deus”, o Supremo Tribunal Federal assentou, no ARE nº 1.517.945 de São Paulo que,
“Diante do exposto, com base no art. 21, §§ 1º e 2º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, CONHEÇO DO AGRAVO para, desde logo, DAR PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO EXTRAORDINÁRIO e CONCEDER INTERPRETAÇÃO CONFORME ao artigo 78, caput, da Resolução 1.015/1991 da Câmara Municipal de São Bernardo do Campo/SP, DECLARANDO-O CONSTITUCIONAL, DESDE QUE, INTERPRETADO NO SENTIDO DE SER PERMITIDO, PORÉM NÃO OBRIGATÓRIO, AO PRESIDENTE DA CÃMARA MUNICIPAL INICIAR OS TRABALHOS PROFERINDO AS PALAVRAS “SOB A INSPIRAÇÃO E PROTEÇÃO DE DEUS, DAMOS POR INICIADOS (ENCERRADOS) OS TRABALHOS DA PRESENTE SESSÃO”. A PRESENTE DECISÃO AFASTA A OBRIGATORIEDADE OU RESPONSABILIDADE POSTERIOR DO PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL QUE, POR QUESTÕES RELIGIOSAS OU FILOSÓFICAS, PREFIRA NÃO PROFERIR AS REFERIDAS PALAVRAS.” (g. n.)
Ora, dessa forma, fica a critério do presidente do Legislativo local, de acordo com sua crença, iniciar os trabalhos legislativos invocando ou não as palavras “sob a inspiração e proteção de Deus”, preservando-se a liberdade de convicção.
No mesmo diapasão, a Corte Constitucional, na ADI nº 4.439 do Distrito Federal, entendeu pela constitucionalidade do ensino religioso nas escolas públicas, desde que mantida a possibilidade de escolha pelo discente. Eis a ementa do julgado:
“ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS PÚBLICAS. CONTEÚDO CONFESSIONAL E MATRÍCULA FACULTATIVA. RESPEITO AO BINÔMIO LAICIDADE DO ESTADO/LIBERDADE RELIGIOSA. IGUALDADE DE O E TRATAMENTO A TODAS AS CONFISSÕES RELIGIOSAS. CONFORMIDADE COM ART. 210, §1°, DO TEXTO CONSTITUCIONAL. CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 33, CAPUT E §§ 1º E 2º, DA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL E DO ESTATUTO JURÍDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL PROMULGADO PELO DECRETO 7.107/2010. AÇÃO DIRETA JULGADA IMPROCEDENTE.” (g. n.)
Sacrifício de animais

Curiosamente, num outro julgado, o Supremo foi na contramão do movimento ambientalista que visa atribuir personalidade jurídica aos animais domésticos, atribuindo maior valor ao direito fundamental à liberdade de culto. Eis a tese fixada no RE nº 494.601 do Rio Grande do Sul: é constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana.
O que causa espécie nesse último julgado é o fato de que a afirmação genérica da permissão de sacrifício de animais para fins religiosos significa a coisificação da vida dos pets, o que vai de encontro ao artigo 225, inciso VII, da Carta Magna, a despeito de acolher guarida no artigo 82 do Código Civil de 2002.
Malgrado, o STF, na ADI nº 5.995 do Rio de Janeiro, assentou a possibilidade de leis estaduais vedarem a utilização de animais para testes de produtos cosméticos, higiene pessoal, perfumes, limpeza e seus componentes, com base no artigo 24, inciso VI, da Lex Legum.
Ora, grande contradição: podemos sacrificar os animais para fins ritualísticos, porém não podemos manuseá-los para fins de saúde, direito igualmente previsto na Constituição da República [3]?
Nada obstante, quando o Congresso Nacional quis interferir na questão, aprovou a Emenda Constitucional nº 96 de 2017, a qual permitiu práticas desportivas com animais, desde que sejam manifestações culturais (por que não nas manifestações de saúde?).
Desse modo, ao que tudo indica, falta maior clareza na sistematização do peso que esses direitos fundamentais possuem no ordenamento jurídico brasileiro, não sendo de todo aconselhável deixar a escolha ao alvedrio do Supremo Tribunal Federal, a despeito da boa intenção que detectamos em seus julgados.
Referências bibliográficas
Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 38ª ed., rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2012.
Lenza, Pedro. Direito Constitucional. 26. ed. – São Paulo : SaraivaJur, 2022.
(Coleção Esquematizado®)
Martins, Flávio. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. – São Paulo: SaraivaJur,
2022.
Miranda, Jorge. Medeiros, Rui. Constituição Portuguesa Anotada. Coimbra: Ed. t. IV. 2005.
Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2005.
Tavares, André Ramos. Curso de direito constitucional. 18ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
[1] Segundo o professor Tavares (2020, p. 808), “a proteção à segurança jurídica, implícita ao Estado de Direito, exige, igualmente, uma ‘proteção contra medidas retrocessivas, mas que não podem ser tidas como propriamente retroativas, já que não alcançam as figuras dos direitos adquiridos, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada’. Seria justamente o caso de se pretender a eliminação de leis regulamentadoras de direitos sociais, ainda que com pretensão meramente prospectiva (não retroativa)”, o que talvez, pelo menos no plano doutrinário, implicaria a impossibilidade de eliminação de direitos fundamentais já conquistados.
[2] Tese de Repercussão geral: “A presença de símbolos religiosos em prédios públicos, pertencentes a qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, desde que tenha o objetivo de manifestar a tradição cultural da sociedade brasileira, não viola os princípios da não discriminação, da laicidade estatal e da impessoalidade”. Nesse julgado a Suprema Corte tratou a laicidade estatal como um princípio constitucional.
[3] Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao o universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
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