Opinião

Radar/Siscomex como instrumento de coerção: importar é direito, não privilégio

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8 de maio de 2025, 21h23

A estrutura normativa do sistema Radar/Siscomex visa a habilitar operadores privados a realizarem operações de comércio exterior. Criado como ferramenta de controle fiscal, o sistema tem se transformado, na prática, em barreira à livre iniciativa, diante da forma como a Receita Federal vem aplicando critérios restritivos, automáticos e desprovidos de previsão legal para limitar o volume de importações realizadas por empresas habilitadas.

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TJ de São Paulo entendeu que importador não pode ser responsabilizado por taxa de demurrage provocada por atos da Receita

A Instrução Normativa RFB nº 2.160/2023 e a Portaria Coana nº 72/2020 são os principais instrumentos utilizados pela Receita para regulamentar o credenciamento. Contudo, ambas extrapolam os limites legais ao imporem restrições econômicas substanciais, inclusive com critérios de fluxo de caixa e tributos recolhidos — que, além de ilegais, ofendem princípios constitucionais e jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores.

Fundamentos legais do credenciamento e limites da atuação istrativa

O credenciamento no Radar/Siscomex é exigido com base no artigo 16, §1º, da Lei nº 9.779/1999, que autoriza a Receita Federal a definir requisitos operacionais para habilitação ao sistema. Porém, não há qualquer menção à possibilidade de imposição de limites financeiros ou condicionamentos à capacidade de importação. Trata-se de função instrumental e ória da fiscalização, jamais de planejamento ou controle econômico.

Como destaca Celso Antônio Bandeira de Mello, “o público não dispõe de liberdade para agir conforme sua vontade, mas tão somente nos estritos limites da lei” (Curso de Direito istrativo, 34ª ed., Malheiros). A legalidade, aqui, é vinculante, e não autorizativa. Portanto, a criação de submodalidades como “expressa”, “limitada” e “ilimitada”, baseadas em parâmetros financeiros subjetivos, não encontra respaldo em qualquer lei em sentido formal.

A jurisprudência é firme:

“A istração Pública não pode, por ato infralegal, restringir o exercício de atividade lícita ou impor ônus não previsto em lei.” (TRF-4, AC 5000702-67.2019.4.04.7008, Rel. Des. Francisco Donizete Gomes)

A Portaria Coana nº 72/2020 e estimativa com base em tributos recolhidos

A Portaria Coana nº 72/2020, ainda em vigor, estabelece que a Receita Federal poderá estimar a capacidade financeira da empresa a partir dos valores de tributos recolhidos ou com base nas disponibilidades (caixa, bancos e aplicações) constantes na escrituração contábil. Essa sistemática representa, na prática, uma forma indireta de coerção tributária, na medida em que subordina o direito de importar à demonstração de pujança financeira momentânea — algo que nem sempre reflete a viabilidade real da operação econômica.

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Ao utilizar o critério de recolhimento de tributos, a Receita Federal transforma o RADAR em um mecanismo coercitivo para forçar o pagamento de tributos, em flagrante desvio de finalidade. A mensagem implícita é clara: “atrase seus tributos, e eu restrinjo seu RADAR”. Trata-se de uma forma oblíqua de constrição patrimonial e limitação à liberdade econômica, repudiada pela jurisprudência consolidada do STF e do STJ.

Não bastasse, a adoção do critério de disponibilidades extraídas da contabilidade revela um critério automático, rígido e insensível às dinâmicas empresariais. No caso de empresas em recuperação judicial, por exemplo, que muitas vezes enfrentam dificuldades momentâneas no adimplemento tributário, essa sistemática funciona como um verdadeiro empurrão ao colapso financeiro. Ao restringir ainda mais sua capacidade de operar, a Receita agrava acentuadamente os problemas já existentes, comprometendo a própria função social da empresa e frustrando os objetivos da recuperação previstos na Lei nº 11.101/2005.

A doutrina é crítica a esse tipo de instrumentalização fiscal. Segundo Misabel Derzi, “a istração tributária não pode usar seu poder como ferramenta de imposição extrafiscal à margem da legalidade formal” (Obrigações Tributárias e Sanções istrativas, Ed. Fórum).

Do ponto de vista jurisprudencial, é paradigmática a Súmula Vinculante nº 70 do STF:

“É inissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.”

E, em linha semelhante, a Súmula 323 do STJ:

“É inissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.”

A vedação à importação com base na insuficiência de tributos pagos, como vem ocorrendo na prática istrativa, traduz nova forma de coerção fiscal, incompatível com o sistema de garantias do Estado de direito.

Violação à liberdade econômica e à isonomia

O artigo 170 da Constituição consagra a livre iniciativa como base da ordem econômica, impondo ao Estado o dever de não intervir de forma arbitrária ou seletiva. O inciso IV do mesmo artigo reafirma a livre concorrência. Por outro lado, o artigo 5º, inciso II, exige que qualquer limitação de direitos tenha fundamento em lei formal.

Esse núcleo duro de proteção econômica foi reforçado pela Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), que dispõe em seu artigo 4º:

“É dever da istração Pública evitar o abuso do poder regulatório.”

E, em seu §1º:

“É vedado à istração Pública editar norma que restrinja o exercício de direitos, crie obrigações ou imponha condições que não estejam previstas em lei.”

A Receita Federal, ao condicionar a importação à demonstração de tributos pagos ou fluxo de caixa positivo, afronta diretamente essa vedação legal. A violação ao princípio da isonomia também é patente, pois empresas de setores diferentes, com ciclos operacionais distintos, são niveladas por um critério único e equivocado.

Jurisprudência: impossibilidade de ato istrativo restringir direitos sem previsão legal

A jurisprudência atual é sólida em repudiar a imposição de restrições não previstas em lei. Destacam-se:

“A atuação da istração Pública está vinculada ao princípio da legalidade, sendo vedada a imposição de exigência não prevista em lei.” (STJ, RMS 35.260/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 24/03/2014)

“A istração não pode, por ato infralegal, restringir o exercício de atividade lícita ou impor ônus não previsto em lei.” (TRF4, AC 5000702-67.2019.4.04.7008)

Conclusão

A atuação da Receita Federal no âmbito do Radar/Siscomex ultraa os limites da legalidade e afronta garantias constitucionais elementares. Os critérios utilizados para habilitação — como o fluxo de caixa ou os tributos recolhidos — representam formas indiretas e abusivas de interferência na atividade econômica, vedadas pela Constituição, pela jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores e pela Lei da Liberdade Econômica.

Mais do que uma questão de legalidade formal, está em jogo o respeito à iniciativa privada e à estabilidade das relações jurídicas. Cabe ao Poder Judiciário o controle desses excessos, restaurando a racionalidade normativa e assegurando o livre exercício da atividade empresarial.

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