Registro do contrato garantido por alienação fiduciária em caso de rescisão por iniciativa do comprador
8 de maio de 2025, 20h18
A origem etimológica da palavra “fiduciária” significa “confiança, segurança”. Essa é a base do contrato garantido por alienação fiduciária, onde o devedor utiliza o próprio bem que está adquirindo como garantia do pagamento da dívida.

O credor, no entanto, fica com o bem em seu nome até que a dívida seja quitada. A relação, como pode-se observar, busca dar segurança às partes. Possibilita a movimentação da economia e aquisição de bens de alto valor pelos cidadãos, enquanto reduz os riscos para aqueles que emprestam o capital, em caso de eventual inadimplência do comprador.
Juridicamente, esse tipo de garantia provoca os especialistas a estudarem muito, a fim de compreenderem todas as nuances envolvidas quando a teoria sai do papel e começa, efetivamente, a ser aplicada no dia-a-dia.
Vejamos uma hipótese que convida à reflexão:
Um empreendimento começa a vender seus imóveis, facilitando a venda através de empréstimo com garantia de alienação fiduciária. O comprador firma o contrato, ando a fazer o uso do imóvel e comprometendo-se ao pagamento das prestações. Em dado momento, desiste do negócio, sem, contudo, atrasar os pagamentos. O contrato, por uma eventualidade, ainda não fora registrado na matrícula do imóvel.
Decisão no STJ
Como fica a rescisão desse contrato? A resposta está no Tema 1.095 do STJ, porém, por trás da rápida leitura que costuma ser feita, observemos:
TEMA 1.095: Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na Lei nº 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.
Alguns poderiam depreender, a partir da leitura do citado Tema, que a falta de inadimplência do devedor e de registro em cartório do contrato atrairia a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, afastando-se a legislação especial que trata da alienação fiduciária.
Os que fizeram essa interpretação estão equivocados, e isso foi dito pelo próprio Superior Tribunal de Justiça em vários julgados. Faremos o estudo, pormenorizado, de um deles, do Recurso Especial nº 2176078-SP.

Trata-se de decisão proferida em 29 de outubro de 2024 pelo ministro relator Marco Buzzi, do STJ, nos autos do REsp nº 2.176.078 – SP. A ação de origem fora proposta pelo comprador de um lote em face da loteadora vendedora do mesmo. O contrato fora garantido fiduciariamente.
Alegando desinteresse na manutenção do negócio, o comprador ingressou judicialmente pedindo o distrato e restituição de 90% do total pago. Sustentou inaplicabilidade da Lei nº 9.514/97, uma vez que o instrumento não havia sido registrado na matrícula do imóvel e não havia inadimplência, constituição em mora, tampouco consolidação da propriedade.
Antes mesmo da citação, o feito fora sentenciado, liminarmente, julgando-se improcedentes os pedidos. O Juízo afirmou a impossibilidade do distrato em face da garantia por alienação fiduciária, que possui procedimento próprio impedindo a simples rescisão.
A parte autora interpôs apelação, pleiteando a nulidade da sentença por força das normas consumeristas e inaplicabilidade da Lei nº 9.514/97. Em acórdão proferido pela 1ª Câmara de Direito Privado (Processo nº 1001480-24.2023.8.26.0120) fora dado provimento ao recurso. Entenderam os desembargadores que a garantia não fora aperfeiçoada ou, melhor, a propriedade fiduciária não fora constituída pelo registro (extemporâneo [1]).
Lei de Alienação Fiduciária refutada
Dessa forma, afastaram a Lei de Alienação Fiduciária, privilegiando as normas consumeristas a favor da rescisão, com base (na equivocada interpretação) do Tema 1095 do STJ.
Em sede de embargos de declaração a Loteadora sustentou que o registro do contrato, garantido fiduciariamente, fora feito antes da citação e intimação da sentença. Fora esclarecido que, quando da publicação da sentença, a parte ré ainda sequer tinha sido citada, de forma que tal data não deveria servir de parâmetro para conferir ou não aplicabilidade à Lei nº 9.514/97. Os embargos foram rejeitados, e a discussão ou para análise do Superior Tribunal de Justiça.
O recurso especial fora palco para as seguintes questões:
- A falta de registro do contrato garantido por alienação fiduciária na matrícula do imóvel impede a aplicabilidade da Lei nº 9.514/97, no momento de uma rescisão?
- Sem inadimplência das prestações pelo devedor, há como ser rescindido o contrato através da Lei nº 9.514/97?
- Afinal o que quer dizer o Tema 1095 do STJ?
emos às conclusões do STJ ao dar provimento ao Recurso Especial nº 2176078 – SP (2024/0387313-1):
- A ausência de registro do contrato, garantido fiduciariamente, não confere ao devedor fiduciante o direito de promover a rescisão da avença por meio diverso daquele contratualmente previsto, tampouco impede o credor fiduciário de, após a efetivação do registro, promover a alienação do bem em leilão para só então entregar eventual saldo remanescente ao adquirente do imóvel, descontados os valores da dívida e das demais despesas efetivamente comprovadas.
- Fora destacado que já há precedente [2], do próprio STJ, no sentido de que no momento em que o devedor manifesta o seu interesse em desfazer o contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária (ainda que adimplente), fica caracterizada a quebra antecipada, porquanto revela que ele deixará de adimplir a sua obrigação de pagar. Esclarece, o Ministro Relator Marco Buzzi, que embora não se trate, ainda, de uma quebra da obrigação principal, o seu futuro incumprimento é certo, o que torna imperiosa a observância do procedimento específico estabelecido nos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514/97 para a satisfação da dívida garantida fiduciariamente e devolução do que sobejar ao adquirente;
- A falta de registro do contrato garantido fiduciariamente, ou mesmo aquele feito no curso do processo, não impede que a Lei nº 9.514/97 seja aplicada em caso de quebra contratual. Vale pontuar que o desejo de distrato, ainda que sem qualquer inadimplência, submete o fiduciante ao procedimento específico estabelecido nos arts. 26 e 27 da Lei nº 9.514/97. Ou seja, o bem será alienado mediante leilão, para que o fiduciante receba o que sobejar.
- O Tema 1095 ratifica que o procedimento da Lei nº 9.514/97 deve prevalecer, ainda que o contrato não esteja registrado e não haja inadimplência.
Defesa do consumidor
A aplicação do artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor fora afastada por completo, esclarecendo-se que uma vez pactuado e garantido pela alienação fiduciária, o contrato será sempre regulado pela Lei nº 9.514/97. Ainda, fora esclarecido que o registro apresenta validade em face de terceiros e faz-se essencial quando da alienação do bem mediante leilão.
A decisão conferiu maior clareza à Lei nº 9.514/97 e ao Tema 1095 ao afirmar que não há prazo estipulado para registro do contrato na matrícula do imóvel, não havendo empecilhos para reconhecer-se a aplicabilidade do procedimento especializado, mesmo quando o registro acontecer no curso do processo e não houver inadimplência.
O julgamento representa uma resposta aos inúmeros casos de fiduciantes, desejando a rescisão contratual de instrumento garantido por alienação fiduciária, mesmo antes de tornarem-se inadimplentes. Muitas decisões consideram impossível o término do contrato pela Lei nº 9.514/97 se os pagamentos estão em dia e não há constituição em mora. Tais posicionamentos precisarão ser revistos.
Conflito em tribunais
Ainda, há um conflito evidente entre os Tribunais e Juízos de primeiro grau, vendo-se decisões nas mais diferentes direções em relação à data de registro do contrato na matricula do imóvel, como se isso fosse decisivo para a escolha da legislação a ser seguida.
Com o julgado ora estudado, foram esclarecidas as seguintes questões: sem registro, ou com o mesmo feito de forma extemporânea e sem inadimplência, não há espaço para resolver-se o contrato por meio diverso daquele contratualmente previsto. Ainda assim, a Lei nº 9.514/97 se sobrepõe ao CDC e mantém-se fiel a sua natureza de negócio de “confiança, seguro”, como o próprio nome sugere.
Dessa forma, o Tema 1095 interpretado de forma criteriosa afasta qualquer possibilidade de enfraquecimento da Lei nº 9.514/97, ou até mesmo sua mitigação pelo CDC. Uma vez realizado o contrato com garantia fiduciária, será pelos seus próprios meios que será resolvido, uma vitória aos credores, com certeza.
[1] Registro do contrato realizado 8 anos após sua .
[2] REsp n. 2.042.232/RN, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/8/2023, DJe de 24/8/2023.
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