Opinião

Carrión González e outros vs. Nicarágua: Corte IDH se debruça sobre feminicídio

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  • é advogada do escritório Naves Fleury mestra em Famílias Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano e Social pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).

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9 de maio de 2025, 17h25

No dia 4 de março, a Corte Interamericana de Direitos Humanos realizou o Ato de Notificação de Sentença [1] referente ao Caso Carrión González e outros vs. Nicarágua, julgado em 25 de novembro de 2024. O Estado da Nicarágua foi considerado responsável por violações a direitos previstos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), principal instrumento regional de proteção aos direitos humanos das mulheres, em relação à vítima Dina Alexandra Carrión González e seus familiares [2].

Divulgação/CIDH

Dina Carrión era casada com o sr. JCSS, com quem teve um filho. Segundo depoimentos colhidos durante a investigação judicial, a relação era “tormentosa”, marcada por “violência psicológica, física e econômica”[3]. A vítima trabalhava na empresa do marido e não recebia salário fixo, de modo que dependia dele financeiramente — e isso era usado como um meio de controlá-la. Em novembro de 2009, JCSS apresentou um pedido de divórcio, e em sede de conciliação a guarda do filho foi definida em favor da mãe. Mas JCSS exigiu o filho continuasse morando na mesma residência que ele, de modo que Dina Carrión permaneceu dividindo o domicílio conjugal.

Entenda o caso

Na noite de 3 de abril de 2010, Dina Carrión foi encontrada morta no pátio da casa, com um ferimento de bala no peito. JCSS declarou à polícia que havia ado a tarde em seu quarto, ouvindo música. Em 4 de abril, a irmã da vítima, Vilma Valeria Carrión González, apresentou uma denúncia à Polícia Nacional da Nicarágua, acusando JCSS pela morte de Dina Carrión. Mas a morte foi classificada como suicídio pelas autoridades nicaraguenses, mesmo diante das incongruências e denúncias apresentadas por sua família ao longo das investigações — inclusive denúncias de ameaças feitas por JCSS à Vilma, que foi obrigada a se mudar de país [4].

Somente em 13 de janeiro de 2013 um promotor apresentou acusação contra JCSS, como suposto autor do crime de “parricídio”, contra a qual o acusado interpôs recurso. Enquanto ainda estava pendente o julgamento, foram publicadas declarações da então presidenta da Corte Suprema de Justicia, do diretor do Instituto de Medicina Legal e do porta-voz do Poder Judiciário, afirmando que Dina Alexandra Carrión González havia cometido suicídio; a magistrada presidenta chegou a declarar que a família Carrión González “desinformava” as pessoas [5]. Na sequência, em 22 de maio de 2019, a Corte Suprema de Justicia decidiu pelo provimento do recurso interposto por JCSS.

Durante todo o período, JCSS impediu que o filho tivesse qualquer contato com os avós maternos, que buscaram judicialmente a aproximação. O juiz de família que julgou o processo na Nicarágua, no entanto, concluiu que “não poderia forçar tal relacionamento” [6].

Irregularidade na coleta de provas

Ao analisar o caso, a Corte IDH pontuou que a investigação foi “caracterizada por irregularidades na coleta de provas e lacunas na teoria do caso que não foram explicadas pelas autoridades”, com “falhas na coleta e avaliação de provas, na determinação das linhas de investigação e na condução imparcial do processo judicial” [7].

Dentre os diversas erros investigativos, o corpo de Dina Carrión foi encontrado com ferimentos e escoriações que não foram analisados pelas autoridades locais, e os laudos periciais apresentados pela família, contradizendo a teoria de suicídio, não foram devidamente avaliados. Além disso, quanto às supostas causas do suicídio, segundo entendeu a Corte Interamericana, “a avaliação dos motivos da alegada instabilidade emocional da vítima, sem considerar outros elementos de verificação e contexto, foi baseada em estereótipos negativos de gênero” [8].

Em vista dos fatos narrados, a Corte IDH declarou que:

“[…] O Estado da Nicarágua (doravante “Nicarágua” ou “o Estado”) é responsável pela falta de devida diligência e perspectiva de gênero na investigação criminal da morte potencialmente ilícita com indícios de feminicídio da Sra. Dina Alexandra Carrión González; pela falta de devida diligência nos processos relativos ao contato do filho de Dina Alexandra Carrión González com os seus avós maternos; pela não investigação das ameaças recebidas por uma das irmãs de Dina Alexandra, alegadamente relacionadas com a sua insistência em investigar o sucedido; e pelos impactos da impunidade sobre os familiares da Sra. Carrión González. Consequentemente, a Corte declarou a violação dos direitos às garantias judiciais, à verdade, à igualdade perante a lei e à proteção judicial, em relação aos artigos 1.1, 2 e 4 da Convenção Americana e ao artigo 7 da Convenção de Belém do Pará; do direito à proteção da família, em relação aos artigos 1.1, 8.1 e 25.1 da Convenção Americana; e os direitos à integridade pessoal, e à circulação e residência, em relação ao Artigo 1.1 do mesmo instrumento.” [9]

É relevante destacar, dentre as medidas de não repetição impostas pela Corte na sentença, a criação de programas ou cursos obrigatórios e permanentes, destinados aos operadores judiciais e às pessoas encarregadas de receber as denúncias por violência de gênero, contemplando, dentre outros aspectos, “os padrões internacionais de direitos humanos em matéria de devida diligência reforçada com perspectiva de gênero na investigação de mortes potencialmente ilícitas de mulheres” [10].

Investigação com perspectiva de gênero

A sentença também determina que o Estado da Nicarágua realize as “adequações normativas necessárias para garantir uma investigação com perspectiva de gênero sobre mortes potencialmente ilícitas de mulheres que possam envolver feminicídios” [11].

Spacca

A respeito, o juiz brasileiro, vice-presidente da Corte, Rodrigo Mudrovitsch, esclarece em seu voto que, à época da morte de Dina Carrión, não havia na Nicarágua um tipo penal adequado para sancionar casos de feminicídio, sendo aplicado o crime de “parricídio” [12]. Em 2012, ou seja, cerca de dois anos após os fatos que vitimaram a sra. Dina Carrión, foi aprovada a “Ley Integral Contra la Violencia hacia las Mujeres” (Ley 779), introduzindo no ordenamento jurídico local o crime de feminicídio.

Não obstante, prossegue Mudrovitsch, em 2013 a referida lei foi alterada por meio da Ley 846, a qual implicou em retrocesso significativo ao limitar a aplicação do tipo penal à violência ocorrida no âmbito de relações afetivas. O brasileiro reforça a argumentação desenvolvida na sentença da Corte a respeito da inconvencionalidade da legislação nicaraguense, incompatível com os standards protetivos dos direitos humanos a nível internacional. Aduz em seu voto:

“101. Assim, conforme assentado na Sentença, o cerne da violência contra a mulher e de sua expressão máxima, o feminicídio, é a sua própria condição de gênero (pár. 174), que corresponde ao fator mínimo que deve ser levado em consideração nas legislações nacionais sobre o tema. Elementos normativos que visem diluir o papel da condição de gênero ou restringi-lo demasiadamente nos crimes relativos à violência contra a mulher devem ser evitados, na medida em que concretamente limitam o o das vítimas a uma justiça eficaz e se afastam dos parâmetros convencionais analisados até aqui.

102. As reformas promovidas sobre o tipo penal que prevê o delito de feminicídio no ordenamento do Estado da Nicarágua, ao restringirem a qualificação da conduta ao elemento “relações interpessoais de casal” (“relaciones interpersonales de pareja”), excluem do escopo de aplicação da norma todas aquelas condutas perpetradas por razões de gênero em situações em que a vítima não possui vínculo prévio com o agressor. Elimina, para os casos de inexistência de tais relações interpessoais de casal, portanto, o elemento mais importante e capaz de diferenciar o homicídio simples do feminicídio, que é a condição de gênero da vítima.” [13]

Mudrovitsch também ressalta que a sentença proferida no Caso Carrión González é paradigmática à medida em que pacifica o entendimento da Corte Interamericana sobre o alcance da sua competência revisional, uma vez que, por unanimidade, os magistrados decidiram pela necessidade de adequação do ordenamento interno da Nicarágua aos padrões internacionais de proteção dos direitos humanos das mulheres.

Controle abstrato de convencionalidade

A Corte, portanto, se debruçou sobre a legislação local criada após a ocorrência da morte de Dina Carrión, concluindo pela sua inconvencionalidade. Para Mudrovitsch, a decisão é congruente com o posicionamento adotado em casos anteriores pelo tribunal, e afasta definitivamente “as inadequadas teses sobre ‘controle abstrato de convencionalidade [14]‘”. Nesse sentido, explica:

“15. A garantia do efeito útil da Convenção seria ilusória se o Tribunal, ao se deparar com norma posterior que perpetua os mesmos vícios e violações constatados na sentença, fechasse os olhos aos impactos deletérios aos direitos humanos em nome de um preceito de temporalidade que sequer está gravado no tratado. […]

17. No caso sub examine, por exemplo, a Corte IDH não poderia se furtar ao controle de convencionalidade da reforma promovida sobre a legislação de violência contra mulher, o que inclui a tipificação do feminicídio e a possibilidade de medidas de conciliação para crimes dessa natureza, ao argumento de que a lei hoje em vigor não incidiu sobre os procedimentos investigativos e judiciais conduzidos naquela conjuntura. Isso porque esse posicionamento implicaria abster-se de implementar plenamente as garantias de não repetição, abrindo margem para que o Estado seguisse aplicando um tipo que contém elementos inconvencionais.” [15]

Ainda em relação às alterações promovidas na legislação da Nicarágua, o voto de Mudrovitsch ressalta que a Ley 846 introduziu a possibilidade de realização de conciliação e mediação em algumas situações envolvendo violência contra a mulher. Segundo seu voto: 

115. As reformas introduzidas pela Lei 846 autorizaram o recurso a procedimentos dessa espécie [conciliação e mediação] em casos qualificados como ‘delitos menos graves’, como lesões leves provocadas por violência física e intimidação ou ameaça. Métodos de composição de interesses podem ser muito bem-vindos na resolução de conflitos entre pessoas, inclusive na seara penal. Situações de violência contra a mulher, contudo, não constituem um simples conflito de interesses entre dois sujeitos, mas traduzem a reprodução de padrões de discriminação profundamente arraigados nas sociedades. [16]

Mudrovitsch afirma que diversos instrumentos internacionais de proteção às mulheres vedam, ou ao menos limitam significativamente, a aplicação de métodos autocompositivos em situações de violência contra as mulheres. Cita como exemplos a Convenção de Istambul, artigo 48; a Recomendação nº 35 do Comitê para a Eliminação da Discriminação contra Mulheres (Comitê Cedaw); e o Comitê de experts do Mecanismo de Seguimento da Convenção de Belém do Pará (“Mesecvi”). E conclui:

“125. A proibição ou restrição rigorosa da conciliação e da mediação, no entanto, baseia-se na concepção de que esses métodos alternativos causam efeitos adversos às mulheres, porquanto não existem condições de igualdade que permitam negociação justa entre vítimas e agressores, seja em razão de fundado temor de retaliações, de coação e intimidação por parte do agressor e até mesmo de pressão por parte da família ou da comunidade para que a mulher aceite um processo de conciliação, aumentando os riscos físicos e emocionais das vítimas.” [17]

Reforço da proteção aos direitos humanos das mulheres

A sentença proferida pela Corte Interamericana no Caso Carrión González e outros vs. Nicarágua reforça os padrões de proteção aos direitos humanos das mulheres em nosso continente, marcado pelo patriarcalismo e pela discriminação de gênero. O feminicídio é a “expressão mais grave da violência contra a mulher” [18], como lembrou Mudrovitsch, e por isso se faz necessária e adequada a resposta penal frente à violação não apenas do direito das mulheres à vida, mas também da “sua dignidade, sua autonomia e igualdade frente ao homem” [19] — o que justifica, inclusive, o incremento da pena em relação ao homicídio que não tem motivação de gênero.

Não obstante, tampouco se pode itir a atuação do Estado somente através do direito penal, após a consumação do feminicídio. O Estado e os seus agentes precisam estar capacitados para reconhecer e combater as formas mais sutis de violência, como a patrimonial e a psicológica, que muitas vezes são menosprezadas quando as vítimas denunciam, ou sequer chegam a ser denunciadas, por faltar a essas mulheres a compreensão de que esses atos, tão arraigados na cultura, trata-se de violência.

A proteção à vítima e seus familiares deve ser garantida desde os sinais iniciais de abuso, evitando o agravamento do ciclo da violência até seu estágio final, que é o feminicídio. Nesse sentido, a determinação da Corte para criação de programas e cursos de capacitação obrigatórios e permanentes, com perspectiva de gênero, para os profissionais que atendem mulheres em situação de violência, é uma medida muito positiva, capaz de evitar a violência institucional que revitimiza e a impunidade dos agressores, bem como de prevenir casos graves de violência, salvando a vida de muitas mulheres.

 


[1] Acto de Notificación de Sentencia en el Caso Carrión y otros Vs. Nicaragua. Disponível em:  https://www.youtube.com/watch?v=JW0mr7c3zF0 . o em: 21/04/2025.

[2] CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. CASO CARRIÓN GONZÁLEZ Y OTROS VS. NICARAGUA. SENTENCIA DE 25 DE NOVIEMBRE DE 2024 (Fondo, Reparaciones y Costas). Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_550_esp.pdf. o em: 21/04/2025. Tradução livre.

[3] SENTENCIA, p. 12.

[4] CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. CASO CARRIÓN GONZÁLEZ Y OTROS VS. NICARAGUA. SENTENCIA DE 25 DE NOVIEMBRE DE 2024 (Fondo, Reparaciones y Costas). RESUMEN OFICIAL EMITIDO POR LA CORTE INTERAMERICANA. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_550_esp.pdf . o em: 21/04/2025. P. 04.

[5] SENTENCIA, p. 38.

[6] RESUMEN, p. 02.

[7] RESUMEN, p. 02-03.

[8] RESUMEN, p. 03.

[9] RESUMEN, p. 01.

[10] SENTENCIA, p. 52.

[11] SENTENCIA, p. 53.

[12]  VOTO CONCORRENTE DO JUIZ VICE-PRESIDENTE RODRIGO MUDROVITSCH. CASO CARRIÓN GONZÁLEZ E OUTROS VS. NICARÁGUA. SENTENÇA DE 25 DE NOVEMBRO DE 2024 (Mérito, Reparações e Custas). Disponível em: https://corteidh.or.cr/docs/casos/votos/vsc_mudrovitsch_550_esp_por.docx . o em: 21/04/2025. P. 02.

[13] VOTO, p. 22.

[14] VOTO, p. 06.

[15] VOTO, P. 03.

[16] VOTO, p. 25.

[17] VOTO, p. 27.

[18] VOTO, p. 14.

[19] VOTO, p. 16.

Autores

  • é advogada do escritório Naves Fleury, mestra em Famílias, Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano e Social pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).

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