Processo Tributário Analítico

Processo tributário sem fatos e o déficit de efetividade jurisdicional

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  • é advogado mestre e doutorando em Direito Tributário pela PUC-SP especialista em Direito Tributário e em Processo Civil pela PUC-SP/Cogeae professor dos cursos de especialização em Direito Tributário e extensão em "Processo Tributário Analítico” do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e Pesquisador do grupo de estudos de "Processo Tributário Analítico" do Ibet.

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11 de maio de 2025, 13h00

Em seu recente livro “Fatos Constitucionais – A (des)coberta de uma outra realidade do processo” (2024), buscando enfrentar desafios da modernidade, Luiz Guilherme Marinoni propõe uma metodologia para a (necessária) internalização dos chamados “fatos gerais” na jurisdição constitucional e na formação dos precedentes.

Trata-se de preocupação voltada à crise de efetividade e segurança jurídica pela qual atravessa o sistema processual e que atinge sobremaneira o contencioso tributário, em virtude da confluência de dois fatores historicamente bem definidos.

De um lado, o alto grau de abstração do contencioso tributário formado desde a CF/1988, num ambiente de massificação das teses de prateleira, gerando uma espécie de abandono dos fatos que, como consequência, levou à produção de uma igualmente massificada prestação jurisdicional.

Por outro lado, e de certa forma como decorrência dessa problemática, o Direito legislado ou a conviver com o chamado Direito jurisprudencial, de modo que os conceitos legais aram a se descolar dos enunciados prescritivos abstratos para, então, se aproximar de uma prática jurídica na qual as normas tributárias são construídas em especial a partir dos atos de concreção, qualificados como precedentes (art. 927, Código de Processo Civil/2015).

Daí a peculiaridade: os precedentes, apesar de gerais enquanto tese jurídica fixada, são individuais em relação ao caso julgado, de modo que seu potencial prescritivo é condicionado pela resolução de um dado conflito em concreto.[1]

Apesar desse paradoxo, qual seja, a interdefinibilidade do geral pelo individual, ainda assim convivemos com um acentuado déficit fático (ou de conteúdo) nas lides tributárias e, por consequência, na formação dos precedentes tributários, por isso da crise de efetividade que tem levado, reiteradamente, à necessidade de se afetar um novo tema repetitivo ou de repercussão geral para explicar a extensão e alcance de outro,[2] ou seja, a criação do que podemos chamar de meta-precedentes, como solução para os tão conhecidos quanto indesejados meta-contenciosos em matéria tributária.[3]

De outra ponta, o próprio Supremo Tribunal Federal tem procurado se municiar de mecanismos para ampliar sua cognição sobre os fatos, como se vê, por exemplo, pela recente contratação de um economista-chefe para o auxílio do Tribunal na análise das consequências prováveis das decisões constitucionais tomadas pelo órgão.[4]

O problema é que tal ampliação cognitiva deve(ria) ser internalizada no debate processual, dentro do modelo de adversão do processo, cujas razões de decidir devem constar da fundamentação da decisão (art. 371, C/2015).

As dificuldades que essa nova realidade impõe são particularmente sentidas no contencioso tributário, ramo que acaba incorporando modelo fortemente marcado por uma concepção de segurança jurídica dedutiva pautada na estrita legalidade, ou tipicidade fechada.

De algum modo, a solução virou problema, já que, em alguma medida confundindo os desafios da efetividade jurisdicional com os da eficiência e celeridade, notamos a evolução das reformas processuais desde a década de 1990, já no C/1973[5], até a Emenda Constitucional nº 45/2004 (a chamada Reforma do Judiciário[6]), em busca de mecanismos para resolver problemas específicos de litigiosidade excessiva, com impacto na sobrecarga judicial: a efetividade, portanto, ou a ser tratada como sinônimo de eficiência (quantitativa) de julgamentos.

Surge então o movimento de qualificação das decisões judiciais (agora imerso na complexidade social, própria da contemporaneidade), juntamente com o emprego cada vez maior de uma (distorcida) lógica jurisprudencial consequencialista.[7] [8]

Desaguamos assim no microssistema de precedentes e nas ferramentas de racionalização da justiça adotadas no C/2015, e aqui surge a figura central do artigo 489, § 1º, na busca por maior efetividade da jurisdição, o qual acaba por veicular as técnicas de aproximação, distinção e superação, essenciais para o desenvolvimento do sistema de precedentes e que, por assim ser, impõe o desafio de conciliar o paradigma teórico de um modelo lógico-dedutivo, com o modelo jurídico-discursivo.

Nesse empenho, mostra-se imprescindível o resgate da valorização fática na jurisdição tributária, sobretudo porque a formação e aplicação do precedente (tributário, mas não só), a por uma intensa atividade interpretativa que não se resume aos silogismos lógicos em cadeia, numa espécie de semioses cegas que se descolam dos fatos e se limitam a reproduzir mecanicamente teses jurídicas, sem muito espaço para crescimento, adaptação e evolução.

Tratar os precedentes como se fossem lei, procurando conferir unidade e completude a partir tão somente da sua autoridade vinculativa formal, certamente empobrece a atividade interpretativa (jurisdicional) e, o que é mais importante, seu adequado controle. Seria o mesmo que trocar uma miragem por outra: ao invés da pirâmide codificadora, a pirâmide jurisdicional.

E com isso, segue-se negligenciando (ou falseando) a normatividade dos fatos,[9] de modo que qualquer desvio de efetividade (jurisdicional), ou problema de construção de sentido das normas dirigidas à solução de um dado conflito, é justificado e atribuído à limitação cognitiva do julgador, e não à desconexão com a realidade do caso.

Assim, um problema ontológico acaba sendo tomado por outro, agora metodológico, no qual a atividade jurisdicional, nessa perspectiva, ficaria preservada das dificuldades impostas pela complexidade social que os casos impõem, impedindo, por assim ser, qualquer controle racional do processo decisório dirigido “do” e “para” os problemas do caso.[10]

Volta à cena o artigo 489, § 1º, do C[11], dispositivo vocacionado para o controle material da racionalidade decisória, sempre em conexão com o caso.

Qualquer sistema de linguagem é concebido como um sistema vivo, em constante mutação, e como a ordem jurídica é um sistema de linguagem[12] (que inclui não apenas a língua — atos predicativos de fala —, mas também outros signos de comunicação), ela também se transforma com base no contexto e na experiência. Mas, observando o devido processo legal.

Os textos legais, ao enunciar, por exemplo, valores como justiça, igualdade, isonomia, capacidade contributiva, ou conceitos como renda, mercadoria, serviço, dentre outros, veiculam abstrações que levam o intérprete a juízos de semelhanças, qualidades e possibilidades.

Em sendo assim, abre-se o campo cognitivo da atividade jurisdicional, inclusive para internalização de textos contábeis, comerciais, financeiros, econômicos e, ao mesmo tempo, oferece-se maior participação democrática dos atores processuais, gerando, por consequência, maior controle no processo decisório responsável pela construção dos sentidos normativos.

Em outras palavras, evita-se arbitrariedades próprias de um indesejado decisionismo ou utilitarismo jurídico, tão combatido tanto por analíticos quanto por hermeneutas.

Esse seria, a nosso ver, o grande mérito do artigo 489 do C/2015, que mais do que amarrar analiticamente a estrutura da sentença (relatório, fundamentos e dispositivo), prescreve autêntico compromisso da tutela jurisdicional com a efetividade e segurança, ao veicular não apenas as ferramentas de stare decisis (aproximação e distinção), como também e sobretudo, ao exigir a articulação dos conceitos jurídicos utilizados na fundamentação com o motivo concreto que justificou a sua incidência no caso em julgamento.

Lembremos, por fim, das sempre presentes lições de Geraldo Ataliba, para quem o reducionismo da norma ao fato (sociologismo), da norma positiva à norma ideal (jusnaturalismo), dos valores e normas às estruturas lógicas (logicismo), é sempre um desconhecimento da experiência integral do Direito.

[1] Em complementação sugere-se a leitura de outro artigo desta Coluna de autoria de Vanessa Damasceno Spina:

/2024-set-22/ementa-pode-dizer-algo-sobre-o-precedente/

[2] Vide, por exemplo, a repercussão geral no Tema 1279/STF, afetado exatamente para explicar o sentido e alcance da modulação de efeitos decidida na repercussão geral do Tema 69/STF (“tese do século”). “Tema: 1.279 Processo(s): RE 1.452.421 Relatora: Min. Rosa Weber (Presidente) Título: Correta interpretação da modulação de efeitos definida por esta Suprema Corte ao julgamento dos Embargos de Declaração no RE 574.706/PR, Tema 69 da repercussão geral.”

[3] A respeito da ideia de metacontencioso, remetemos à leitura de outro artigo de minha autoria publicado nesta coluna:

/2023-out-08/processo-tributario-analitico-precedentes-metaconteciosos-tributarios/

[4] “Barroso inova e contrata economista para equipe no STF”, disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2023/08/28/barroso-inova-e-contrata-economista-para-equipe-no-stf.ghtml, consultado em 09/04/2025.

[5] Nesse sentido, toda uma onda de reformas começou a ocorrer, a iniciar pelas Leis nº 8.952/1994 e 9.494/1997 (tutela específica e tutela antecipada), com o propósito de desburocratizar a atuação jurisdicional, tornando-a mais célere; ando pela ampliação dos poderes instrutórios tanto do julgador singular como do relator em âmbito recursal; a possibilidade de julgamento antecipado de improcedência da lide antes mesmo da citação da parte contrária quando se tratar de matéria unicamente de direito e repetitiva no Juízo etc.

[6] A qual, ao lado da garantia fundamental à “razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (CF, art. 5º, LXXVIII), introduziu também o instituto da Súmula Vinculante e o regime da Repercussão Geral.

[7] Consequencialismo, aqui, na linha econômica de Richard Posner e voltada apenas às contas públicas, e não enquanto lógica de investigação científica das consequências prováveis da decisão.

[8] Acerca do consequencialismo, remetemos a outro artigo em que escrevi sobre o assunto, também publicado nesta coluna: /2024-out-27/modulacao-de-efeitos-raciocinio-fingido-e-metodo/

[9] JELLINEK, Georg. Teoria General del Estado. Buenos Aires: Albatros, 1970.

[10] “Para tanto, os casos práticos seriam colocados marginalmente entre parêntesis, sob reserva, num lugar indeterminado. Tudo como se os esquemas da realidade fática pudessem ser reproduzidos apenas nos polos supraempíricos da depurada consciência dos julgadores, gerando uma universalidade sem existência concreta. Enfim, o caso seria um dado não tematizado (embora dele tudo parta e embora ele tudo tematize!); seria as bordas de uma realidade que não ingressa no processo de enunciação.

Radicalizada essa subjetividade transcendental às últimas consequências, os tribunais superiores julgariam de um jeito solipsista, sem uma maneira de proceder disciplinada do pensamento, à margem de qualquer transparência metódica. Noutras palavras, trabalhariam imunes a um controle objetivo-racional da marcha que os leva do texto normativo à norma jurídica.” COSTA, Eduardo José da Fonseca. Os tribunais superiores são órgãos transcendentais? Disponível em: /2016-dez-03/eduardo-costa-tribunais-superiores-sao-orgaos-transcendentais/, consultado em 01/05/2024.

[11] Art. 489 (…).

  • 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

[12] Nesse sentido são as lições de Paulo de Barros Carvalho:

“O Direito, no seu particularíssimo modo de existir, manifesta-se, necessariamente, na forma de linguagem”. – In: Direito Tributário, Linguagem e Método. 8ª edição. São Paulo: Noeses, 2021, p. 169.

Autores

  • é advogado, mestre e doutorando em Direito Tributário pela PUC-SP, especialista em Direito Tributário e em Processo Civil pela PUC/SP-Cogeae, professor dos Cursos de Especialização em Direito Tributário e Extensão Processo tributário analítico do IBET e pesquisador do grupo de estudos Processo Tributário Analítico do IBET.

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