Fragilidade constitucional do artigo 83-B do Decreto 6.514: novas sanções ambientais e risco de excesso
12 de maio de 2025, 20h38
A promulgação do Decreto nº 12.189, de 2024, que alterou o Decreto nº 6.514/2008 para inserir, dentre outros dispositivos, o artigo 83-B, representa um marco na intensificação da responsabilização ambiental no Brasil.
Embora possa parecer uma medida de reforço à efetividade das sanções ambientais, o dispositivo acende um importante alerta quanto aos limites do poder regulamentar e aos riscos de se agravar um quadro de insegurança jurídica para produtores rurais e demais autuados.
O novo artigo estabelece:
“Art. 83-B. Deixar de reparar, compensar ou indenizar dano ambiental, na forma e no prazo exigidos pela autoridade competente, ou implementar prestação em desacordo com a definida: multa de R$ 10.000,00 a R$ 50.000.000,00.”
Trata-se de uma inovação normativa relevante, pois a a punir diretamente o descumprimento de obrigações fixadas após a autuação ambiental. Em outras palavras, além da sanção original aplicada pelo fato gerador, a-se a penalizar também a inexecução da obrigação imposta para reparação, compensação ou indenização ambiental.
A lógica sancionatória se amplia, descolando-se do dano em si para incidir sobre a fase posterior de cumprimento.
Entre eficácia regulatória e abuso de poder normativo
Embora o discurso de reforço à reparação ambiental encontre eco na sociedade, a técnica normativa adotada pelo novo decreto padece de vícios jurídicos relevantes.
O principal deles é a violação ao princípio da legalidade estrita, previsto no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
No campo do Direito istrativo Sancionador, tal princípio impõe que condutas proibidas e respectivas sanções estejam definidas em lei formal, editada pelo Poder Legislativo.

O Decreto nº 6.514/2008 é, por sua própria natureza, um regulamento infralegal, editado com base no artigo 84, incisos IV e VI, alínea “a”, da Constituição. Seu preâmbulo declara que se trata de norma destinada a regular o Capítulo VI da Lei nº 9.605/1998 — a Lei de Crimes Ambientais — e não de inovar autonomamente no ordenamento jurídico.
No entanto, o artigo 83-B não encontra previsão direta ou equivalente na legislação de regência, extrapolando os limites do poder regulamentar.
A doutrina istrativa é pacífica ao estabelecer que decretos regulamentares não podem criar tipos infracionais autônomos, sob pena de inconstitucionalidade formal por vício de origem.
Nesse caso, o Executivo atua como se legislador fosse, legislando em campo reservado ao Congresso Nacional. A prática é incompatível com o regime democrático e o sistema de freios e contrapesos constitucionais.
Risco de injustiças materiais e sobreposição punitiva
No plano prático, o novo dispositivo traz consequências preocupantes. Imagine-se, por exemplo, um proprietário rural autuado por supressão de vegetação sem licença, que receba como medida reparatória a obrigação de recompor a área degradada com espécies nativas no prazo de 12 meses, o que parece inadequado, mas é muito frequente em vias de termos de ajustamento de conduta pelas promotorias de justiça do país.
Caso semelhante ocorreu em um inquérito cível no estado de Mato Grosso do Sul, onde determinada promotoria de justiça, exigiu a recuperação de 2 hectares de uma propriedade rural em prazo máximo de 2 anos, rejeitando manifestação jurídica de que o cronograma de Prada é estabelecido pelo órgão ambiental em termo de compromisso nos termos do artigo 16 do Decreto nº 7.830/2012.
A promotoria entendeu que o prazo de 20 anos para recomposição/regeneração vegetal de uma área seria “estipulação máxima, não sendo definido de forma absoluta, sendo possível, portanto, estabelecimento de prazo menor”.
Como a discussão extrapolou a ciência jurídica, invadindo ciências florestais, foi apresentado parecer técnico fundamentado e referenciado, acompanhado da emissão de anotação de responsabilidade técnica, ressaltando que “não é plausível que uma área de vegetação secundária obtenha resultados suficientemente satisfatórios na recuperação em dois anos de cronograma de Prada” e que “considerando toda a complexidade climática, do solo, a biodiversidade e variação das formas de recuperação da vegetação no cerrado e a legislação ambiental em vigor, reforça-se a inviabilidade de recuperação de uma área degrada no cerrado em um cronograma de apenas dois anos”.
Foi sustentado também que que “mesmo em casos em que o imóvel possui uma boa capacidade de regeneração natural, ainda é esperado que ela demore no mínimo dez anos para que a área comece a ter características de uma vegetação secundária e aproximadamente 30 anos para atingir seu estágio clímax”.
Isto é apenas um de vários exemplos pelo país.
Se, por razões técnicas ou climáticas (como seca prolongada ou indisponibilidade de mudas), a recomposição for executada com atraso ou com adaptações técnicas não previstas no termo, o autuado poderá ser novamente sancionado — agora com base no artigo 83-B.

Rio Aquidauana, em MS
O mesmo se aplica a construções erguidas em Área de Preservação Permanente (APP), como currais ou barragens, cuja demolição seja determinada pela autoridade ambiental, situação que também já houve pressão por termos de ajustamento de conduta em cidades pesqueiras, novamente cito um caso sul-mato-grossense das margens do rio Aquidauana e os pesqueiros das cidades e distritos de Aquidauana, Dois Irmãos do Buriti, Camisão e Piraputanga, em que alguns proprietários provaram a consolidação das benfeitorias e outros, sem assistência jurídica e técnica foram compelidos à demolição.
Se a ordem não for cumprida nos moldes exigidos — mesmo quando não houver má-fé — incidirá a penalidade istrativa do novo dispositivo.
Sendo assim, muitos casos de descumprimento de Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) poderão ensejar autuações fundadas no art. 83-B, ainda que a obrigação inadimplida seja parcial ou tecnicamente discutível.
Verifica-se que a norma ignora o princípio da proporcionalidade e o devido processo legal tratando como “nova infração” condutas que deveriam, no máximo, ensejar a revisão do processo ou aplicação de medidas de advertência, especialmente diante de dificuldades operacionais legítimas enfrentadas por pequenos produtores.
Erros de boa-fé, inadimplementos parciais ou discordâncias técnicas acabam assimilados a ilícitos dolosos, gerando autuações com multas de até R$ 50 milhões — valor desproporcional à realidade da maioria dos atingidos.
Reforço da responsabilidade objetiva exige técnica normativa
É importante lembrar que o regime jurídico ambiental brasileiro já opera sob o princípio da responsabilidade objetiva — ou seja, a existência de culpa ou dolo não é exigida para fins de reparação cível.
Dentro desse contexto, criar infrações com base em obrigações órias impõe ainda mais rigor ao istrado, o que deveria exigir técnica legislativa aprimorada.
Além disso, a duplicidade sancionatória (punir o fato gerador e a sua inexecução posterior) pode ensejar discussões sobre o bis in idem, gerando acúmulo de sanções sobre o mesmo núcleo fático.
A proteção ao meio ambiente é dever de todos, mas o Estado também tem o dever de agir dentro da legalidade e da racionalidade.
Cautela jurídica, ação técnica e segurança normativa
Não se trata aqui de relativizar a importância da reparação ambiental. Tampouco de defender a impunidade. A crítica que se faz ao artigo 83-B é de outra ordem: jurídica, constitucional e técnica.
Em um Estado democrático de Direito, a criação de obrigações e sanções não pode se dar por meio de decretos. Exige reserva legal e respeito ao devido processo legislativo.
Em suma, o artigo 83-B do Decreto nº 6.514/2008 apresenta-se como uma tentativa de ampliar o poder sancionador do Estado sem o devido amparo legal. Tal medida, ainda que bem intencionada, compromete a segurança jurídica e pode produzir mais insegurança do que efetividade.
A solução a pelo aprimoramento da legislação, com diálogo entre sociedade civil, técnicos e Parlamento — e não pela hipertrofia do poder regulamentar.
Diante da vigência da norma, entretanto, o caminho é de prevenção e conformidade: cumprir rigorosamente todas as obrigações impostas por autuações ambientais, documentar cada etapa da recuperação ou compensação exigida, manter registros técnicos, laudos, fotografias e procurar apoio jurídico especializado para evitar riscos de dupla penalização.
Saudações pantaneiras!
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