Opinião

Lei 11.340/06 e relações homoafetivas na decisão do STF

Autor

12 de maio de 2025, 17h25

Recentemente, no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Mandado de Injunção Coletivo 7.452, proposto pela ONG Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas (Abrafh), constaram na ementa que se decidiu os seguintes termos:

“O Tribunal, por unanimidade, concedeu a ordem para reconhecer a mora legislativa e determinar a incidência da norma protetiva da Lei Maria da Penha aos casais homoafetivos do sexo masculino e às mulheres travestis ou transexuais nas relações intrafamiliares, nos termos do voto do Relator. Os Ministros Cristiano Zanin, André Mendonça e Edson Fachin acompanharam o Relator com ressalvas. Falou, pelas impetrantes, o Dr. Paulo Iotti. Plenário, Sessão Virtual de 14.2.2025 a 21.2.2025′ sendo relator o ministro Alexandre Moraes”.

Contudo, a ementa aborda o tema em amplitude menor do que foi decidido, inclusive analisando os votos dos demais ministros, os quais integram a votação em sua parte dispositiva, mas não foram incluídos no teor da ementa.

Um ponto relevante é o que consta no voto vogal do ministro Fachin em relação à esfera penal:

“… de modo que acompanho na íntegra o eminente Relator, não sem aderir à ressalva do Ministro Cristiano Zanin. A disciplina penal não pode ser aplicada analogicamente para repressão das condutas oriundas das violências perpetradas na ambiência das relações familiares homoafetivas masculinas… Além do ressalvado pelo Ministro Zanin, registro ainda que a técnica da sentença manipulativa aditiva ora utilizada para o deslinde da presente demanda é um arranjo que se faz necessário na ausência de legislação específica para prevenir e reprimir a violência doméstica praticada contra cônjuge ou convivente masculino em união homoafetiva, mas é preciso explicitar duas importantes questões. A primeira, não há nenhuma pretensão de ressignificar o Supremo Tribunal Federal Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001. O microssistema de proteção da violência doméstica contra a mulher criado para fazer cessar a cultura de desprezo, inferiorização e coisificação da mulher no contexto das relações sociais e familiares patriarcais a sexistas. O combate à violência contra a mulher deve seguir tendo a compreensão de que as assimetrias estruturais e institucionais de gênero estão na raiz de um processo histórico que ainda determina uma desigual proteção da dignidade em desfavor da mulher, o qual exige vocação de todo o sistema de justiça para a transformação dos cenários de morte… Todavia, a condição homoafetiva não é fator para que se compreenda que o ofensor não possa assumir posição hierárquica dominadora capaz de produzir a subalternidade do outro na relação.”

Ou seja, não se pode estender para a esfera penal a aplicação do acórdão, pois dependeria de lei, logo restringe a decisão à questão de medida protetiva. Outro aspecto é que é necessário o sexismo, ou seja, uma situação de vulnerabilidade comprovada entre o casal. Inclusive a pesquisa do CNJ citada pelo relator no voto, “Quando o Lar Também Agride”, refere-se à violência de familiares contra os que têm orientação sexual diversa, e não entre o próprio casal, pois salvo melhor juízo, não seriam objeto de sexismo, preconceito sexual.

E nem afirma o voto que os processos tenham que tramitar na Vara de Violência Doméstica Contra a Mulher.

No bojo do voto do relator consta referência expressa à pesquisa realizada por ONG (e não pelo CNJ), como está no voto. A pesquisa foi adotada pelo CNJ e está disponível aqui, a qual foi utilizada para delimitar o objeto do acórdão da atuação protetiva, mas a redação da ementa do acórdão, pode induzir a erro em relação à amplitude:

“… Da mesma forma, esse problema social foi constatado por pesquisa conduzida pelo CNJ — Conselho Nacional de Justiça atestou a existência de violência familiar contra homens GBTI+, ao atestar que: 4.2.1. Quando o Lar Também Agride: Vítimas de LGBTFobia em situação de violência doméstica. Os processos analisados envolveram número significativo de casos em que a pessoa agressora morava com a vítima: 14,7% dos casos e 14,2% das vítimas se tratava de violência doméstica. Das vítimas, 43,8% tiveram a atribuição de identidade como mulheres lésbicas, 37,5% como mulheres trans e 12,5% como homens gays. Esse tipo de violência, inclusive, aparece de formas variadas: i) agressões que ocorriam por conta de intolerância de algum familiar (pai, mãe, irmão ou irmã intolerante à identidade de gênero ou orientação sexual da vítima) em meio às discussões familiares; ii) torturas praticadas por familiares que não aceitavam a orientação sexual da vítima (filho(a) ou enteado(a)); iii) violência doméstica contra mulheres/homens transexuais que, inclusive, sofrem transfobia; iv) casos de ex-companheiro(a) que não aceita a sexualidade revelada por ex-companheira(o) – em que foram identificados, inclusive, casos de feminicídios v) violência praticada contra a mãe de pessoa LGBTQIA+ por companheiro que não aceita a orientação sexual ou identidade de gênero de enteado(a).”

Embora a pesquisa acima registre que usou  número significativo de casos, ela não informa na metodologia a quantidade efetiva de processos analisados em sua completude, mas sim que foram 33 entrevistas em 2022, após 261 pessoas que preencheram formulários, todas vítimas de homofobia. Observa-se analisando pelo inteiro teor dos votos que integram o acórdão que se referem à violência doméstica por familiares em relação à orientação sexual, e não em relação ao casal em si, pois entre esses (casal de mulheres ou casal de homens) não há desigualdade de forças físicas que justifiquem uma intervenção estatal mais exacerbada e protetiva.

Reprodução

Outrossim, não estabeleceu o STF que nestes casos a tramitação deva ser nas Varas de Violência Doméstica Contra a Mulher, mas apenas que se aplique os institutos da Lei 11.340/06, o que leva a crer que pode ser decidido por qualquer Vara Criminal, e até mesmo cível, em alguns casos. Ademais, não estabeleceu o acórdão que estes casos sejam julgados em Varas de Violência Doméstica Contra a Mulher, pois já assoberbadas em razão de decisões legislativas e judiciais que ampliam a sua competência sem ampliar a sua estrutura istrativa.

Por outro lado, embora o texto da Lei 11.340/06 fale apenas em vítima mulher, sem definir o agressor, os Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil (bem como a condenação pela OEA) e a própria justificativa de projeto do lei trazem definição de que o agressor teria que ser homem para ter a desigualdade.

Relação de subordinação

Aprofundando a análise do voto, verifica-se a seguinte fundamentação do relator, notadamente, no caso de relação homoafetiva masculina:

“Considerando que a Lei Maria da Penha foi editada para proteger a mulher contra violência doméstica, a partir da compreensão de subordinação cultural da mulher na sociedade, é possível estender a incidência da norma aos casais homoafetivos do sexo masculino, se estiverem presentes fatores contextuais que insiram o homem vítima da violência na posição de subalternidade dentro da relação.”

Em continuidade também consta no voto referência a pesquisa realizada nos Estados Unidos em 1997:

“Da mesma forma, conforme extraído de artigo publicado na Folha de S.Paulo, a NCAVP — National Coalition of AntiViolence Programs, um programa dos Estados Unidos que documenta ‘violência doméstica entre casais gays registrou 3.327 casos em 1997.

A área coberta representa 20% do território americano, o que significa que o total de casos naquele país aria dos 16 mil. Esses seriam só os casos registrados em delegacias e pelas ONGs, um número infinitamente menor que o real. Segundo dados do NCAVP, os estudos de prevalência nos EUA mostram que entre 25% e 33% dos membros da comunidade gay relatam ter sofrido algum abuso por parte de seus parceiros.

O número, segundo a instituição, seria comparável ao da violência doméstica ocorrida entre casais heterossexuais naquele país” (Biancarelli, Aureliano. Violência entre casal gay é tema de manual. In: Folha Online, 03.11.2002. Disponível em: o: 19/7/2024).”

No tocante ao público de casais homoafetivos femininos ou masculinos, é importante ressaltar que há necessidade de que haja prova de que a vítima tenha relação de subordinação em relação à agressora, não bastando apenas a condição de mulher ou homem, pois deve haver a vulnerabilidade, a qual não se presume entre casal com mesmo sexo biológico, pois a vítima no momento da agressão pode ser, de fato, a opressora na relação, e apenas fazem o que se diz “chamar a polícia primeiro”.  Sem dúvidas, é algo mais difícil de provar, mas não impossível, analisando elementos como posição de provedor financeiro, força física, atitudes no relacionamento e outros dados.

Apesar de o foco do ter sido nos casais homoafetivos do sexo masculino, o voto também abrangeu as mulheres com orientação sexual não hétero.

Apenas a título de reflexão, na prática também é comum agressões entre filhos e mães, netos e avós, irmãos de sexos diferentes, e por questões patrimoniais ou outros temas como dinheiro para uso de drogas, e neste caso não está havendo necessariamente sexismo, e há casos até de filhas que agridem mães ou netas que agridem avós, e neste caso não seria sexismo ou aplicável a lei Maria da Penha, salvo se provado sexismo.

Notadamente na situação em que o agressor agride familiares de ambos os sexos em momentos de surto, por exemplo, não seria aplicável a Lei Maria da Penha (artigo 129, 13, do ), mas sim o artigo 129, 9º, do , nem seria também hipótese do artigo 21 da L qualificado e neste caso caberia medidas processuais como representação por parte das vítimas e a suspensão processual do processo, e se, ameaça seria competência do Juizado Especial.

Afinal, mesmo sentido é a linha do Decreto 4.316/2002, que ratificou no Brasil a Convenção da ONU para proteção das mulheres, o qual restringe a violência entre homens e mulheres, em razão da subordinação histórica, o que se transcreve parcialmente, Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher Os Estados Partes do presente Protocolo, Observando que na Carta das Nações Unidas se reafirma a fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos entre homens e mulheres.

Nesse teor a Lei 11.340/2006 teve na sua Justificativa de Motivos no Projeto de Lei que a violência era de homem contra mulher por questão de gênero no âmbito doméstico, conforme transcrição de trechos da Exposição de Motivos abaixo, cuja íntegra segue anexo.

[…] 16. As desigualdades de gênero entre homens e mulheres advêm de uma construção sociocultural que não encontra respaldo nas diferenças biológicas dadas pela natureza. Um sistema de dominação a a considerar natural uma desigualdade socialmente construída, campo fértil para atos de discriminação e violência que se “naturalizam” e se incorporam ao cotidiano de milhares de mulheres. As relações e o espaço intrafamiliares foram historicamente interpretados como s e privados, proporcionando a complacência e a impunidade. 17. O artigo 6°, afirma que a violência doméstica contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos, independente da penalidade aplicada. Conforme dispõe a Convenção de Belém do Pará, a violência contra a mulher é uma ofensa à dignidade humana e uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens.

Além disso, a Convenção Interamericana para Prevenir Violência Doméstica contra a Mulher ressalta a alegada desigualdade histórica entre homem e mulher (Decreto 1973/96), sendo os trechos a seguir: […] Preocupados por que a violência contra a mulher constitui ofensa contra a dignidade humana e é manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens;
Não havendo prova de que uma das partes, possa assumir posição hierárquica dominadora capaz de produzir a subalternidade do outro na relação, o que deve ser provado, não se insere o caso nos preceitos da Lei 11340/06, e ainda na hipótese de homossexuais observa-se que pelo teor do voto no STF a agressão seria por parte de familiares que não aceitam a orientação sexual, e não por parte do companheiro (a) que se relaciona com a vítima e aceita a sua orientação sexual.

Outro ponto muito pouco debatido, é que embora a Súmula 536 do STJ fale que a legislação veda suspensão condicional do processo para delitos de violência doméstica, na verdade tanto a lei 9099/95, como a Lei 11.340/06, e o artigo 28-A do P (para ANPP) veda estes institutos apenas para crimes, usam expressamente este termo técnico, o qual é diferente de contravenção penal, e o artigo 21 da L é contravenção penal e não crime, ambos são diferentes, embora espécies do gênero infração penal. Logo, o STJ incorreu em ativismo judicial ao trocar o termo legal “crime” por “delito” na Súmula 536.

Ante o exposto, analisando todo o teor dos votos no STF (e não apenas a ementa do acórdão), bem como a pesquisa elaborada por ONG e adotada pelo CNJ, e que subsidiou o acórdão, pode-se concluir o seguinte:

1) Trata-se, em regra, de violência doméstica contra LGBT por questões de preconceito.
2) Em caso de casal homoafetivo, há necessidade de se provar que há relação de subordinação e vulnerabilidade da vítima em relação ao agressor do mesmo sexo biológico.
3) Não se aplica à questão penal, por ser vedado analogia in malam partem, mas apenas para medidas protetivas, logo no caso de infração penal segue as regras do Direito Penal comum.
4) Não afirmou que os feitos devem tramitar na Vara de Violência Doméstica Contra Mulher no caso de vítimas do sexo masculino, mas apenas que têm direito à medida protetiva e demais proteções, logo podem ser aplicadas em juízos cíveis, juizados especiais e varas criminais comuns.
5) Notadamente na situação em que o agressor agride familiares de ambos os sexos, ou orientação sexual, em momentos de surto, por exemplo, não seria aplicável a Lei Maria da Penha (artigo 129, 13, do ), mas sim o artigo 129, 9º, do , nem seria também hipótese do artigo 21 da L qualificado. E neste caso caberiam medidas processuais como representação por parte das vítimas e a suspensão processual do processo, e se houver ameaça, seria competência do Juizado Especial, mas também não cabe a medida protetiva prevista, que pode gerar crime se descumprida (artigo 24-A da Lei 11.340-06).

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!