Conclave, cardeais e as regras de origem
13 de maio de 2025, 8h00
O mundo viveu, na semana ada, a eleição de um novo papa. O conclave [1] reuniu, na Capela Sistina, no Vaticano, 133 cardeais para as votações secretas de escolha do papa. O eleito, o americano Robert Francis Prevost, será o de número 267, desde o apóstolo Pedro, primeiro papa da Igreja Católica. A origem dos 133 participantes foi amplamente comentada pela mídia, sendo eles representantes de 70 nações, um número bem mais expressivo do que os 48 países representados na votação anterior, em 2013, na escolha do papa Francisco. Dentre as regiões de origem dos 133 membros do conclave, 51 provinham da Europa, 14 dos EUA e Canadá, 23 da América Latina, 23 da Ásia, 18 da África e 4 da Oceania. A origem dos religiosos foi uma informação importante para se analisar qual teria mais chances de ser eleito, as tendências dos elegíveis, considerando os desafios que teria, como líder da Igreja. Após dois dias e três rodadas de votações e de fumaça negra, na quarta, atingida a maioria de dois terços dos votos, a fumaça branca na chaminé acima da Capela Sistina, no dia 07 de maio, anunciou a definição do papa, Leão 14 [2].
O momento histórico e de destaque global, quanto às diversas origens dos cardeais foi importante para reflexões sobre as tendências de cada um, não havendo outros efeitos como de limitação, ou restrição, de que sendo originário deste ou daquele país, pudesse ou não ser eleito.
Regras de origem
A questão da origem nos territórios aduaneiros tem efeitos bem mais concretos. A depender do país de origem, uma importação pode ser proibida, ou restrita, como é o caso, das medidas adotadas pela União Europeia e outros países, em face da Rússia, vedando importações de produtos siderúrgicos acabados e semiacabados, de diamantes não industriais e a exportação de bens de luxo, entre outras restrições, para aquele país [3].
De outro lado, a definição da origem das mercadorias é fundamental nas negociações de acordos comerciais, permitindo a eliminação, ou redução, de tarifas. De outras vezes, a origem pode definir a aplicação de medidas de defesa comercial, como direitos antidumping aplicados em face de determinados países de origem. Em conjunto com as regras de valoração aduaneira (base de cálculo) e classificação tarifária (alíquota), as regras de origem (redução de alíquotas, quotas, direitos antidumping, subsídios, salvaguardas) completam o tripé essencial para identificar as normas aplicáveis para o controle aduaneiro, especialmente, para apuração dos direitos devidos em exportações e importações.
Sobre o tema, merece referência e recomendação o artigo publicado na coluna pelo colega Rosaldo Trevisan, em conjunto com Ricardo Xavier Basaldúa, por ocasião da Copa do Mundo de 2022 [4]. Como dito pelos autores, as regras de origem se dividem em duas categorias: preferências e não preferenciais. As preferencias disciplinam tratamentos favoráveis. Esses se subdividem em regimes comerciais autônomos e regimes contratuais. Os primeiros são tratamentos mais favoráveis concedidos sem reciprocidade, como o Sistema Geral de Preferências (SGP). Os regimes comerciais contratuais são os que regem os acordos comerciais entre países e nos blocos econômicos de integração regional, como o Mercosul, v.g. Os não preferenciais regem as operações em geral, sem benefícios, e aquelas com aplicações onerosas como os direitos antidumping, as medidas compensatórias, de salvaguarda, ou restrições ao comércio.
As regras de origem são muito relevantes também sob o ponto de vista estatístico, técnico-produtivo, econômico, sendo essenciais em todas as situações em que a discriminação impõe a aferição da origem [5]. Sobre a temática, um esclarecimento preliminar é distinguir procedência de origem. Como registra José Rijo, “a origem das mercadorias não se confunde com a procedência das mesmas, porquanto a primeira daquelas noções consubstancia uma construção jurídica e a segunda uma realidade meramente material” [6].

Tarifaço e as regras de origem
Recentemente, com o tarifaço do governo Trump [7], a definição da origem das mercadorias ganhou relevância, na medida em que é elemento primordial para se saber qual a alíquota de importação para aquele país. Outrossim, torna-se essencial verificar as regras de origem vigentes nas importações para os EUA. Nesse sentido, as dificuldades não estão naqueles produtos originários de um único país ou território, assim considerados aqueles neles inteiramente obtidos. Como exemplo dessa espécie de produtos, vejamos algumas definições das normas aduaneiras da União Europeia: a) minerais extraídos no país ou território; b) produtos vegetais aí colhidos; c) animais vivos aí nascidos e criados; d) produtos de caça e pesca aí praticados; d) produtos extraídos de solo e subsolo marinho das águas territoriais; e) mercadorias fabricadas apenas com produtos inteiramente obtidos naquele país ou território [8].
A questão surge se, por exemplo, a fabricação da mercadoria se dá com a utilização de insumos originários de dois, ou mais, países. A título de ilustração, se a mercadoria fosse exportada do Vietnã e, após o tarifaço, por ar a ser tributada em mais 46% para ser importada nos EUA, o fabricante decidisse mudar sua produção para o Brasil, cujo adicional de alíquota foi de 10%, quais as condições para o produto ser considerado de origem brasileira pelas autoridades aduaneiras dos EUA?
Essa é uma das vertentes práticas e atual das regras de origem. Multinacionais, com sede no Brasil e em outros países especialmente na Ásia, exportadoras para os EUA, questionaram se poderiam transferir sua produção para daqui exportarem para o mercado consumidor norte-americano.
Para essa análise, importante verificar a existência de acordo preferencial entre os dois países. Como não há, aplicam-se as regras de origem do regime não preferencial. Nos Estados Unidos, ele é regulamentado pelo Code of Federal Regulations (CFR), especificamente no Título 19, Capítulo I, Parte 134 (19 CFR 134.1), que define o país de origem como sendo “o país de fabricação, produção ou crescimento de qualquer artigo de origem estrangeira que entre nos EUA” [9]. A disposição se assemelha com a previsão da legislação brasileira, no artigo 9º, do Decreto-Lei no 37/1966, reproduzida no artigo 117, §1º, do Regulamento Aduaneiro (Decreto no 6.759/2009).
Esse é um dos grandes desafios relativos à origem das mercadorias, quando a fabricação envolve insumos que não são integralmente obtidos no país exportador. Nesse ponto, surge o conceito de transformação substancial adotado pelos países para identificar o país de origem. Nos termos da legislação americana, caso haja trabalho ou adição de material em outro país, é necessário ocorra uma transformação substancial para que esse país se torne de origem e, portanto, seja aplicada a tarifa a ele prevista. A Aduana norte-americana entende que não basta a alteração tarifária para caracterização de uma transformação substancial, sendo necessário que o produto seja decorrente de um processamento, com uma nova identidade (nome, características e funcionalidades), diferente dos itens (separadamente) utilizados na sua produção, não sendo suficiente a simples montagem, ou reunião de artigos.
O artigo 60º, §2o, do Código Aduaneiro da União (CAU), a seu turno, contempla a seguinte previsão: “Considera-se que uma mercadoria em cuja produção intervém dois ou mais países ou territórios do país ou território onde se realizou o último processamento ou operação de complemento de fabrico substancial, economicamente justificado, efetuado numa empresa equipada para esse efeito, que resulte na obtenção de um produto novo ou que represente uma fase importante do fabrico.” Tânia Carvalhais observa que “a densificação destes conceitos não foi expressamente prevista no CAU, devendo ser analisada em função do caso concreto em apreço” [10][11].
Ainda sobre a delimitação da transformação substancial, analisando soluções de consulta (customs rulings) publicadas pela Customs and Border Protection (CBP), o órgão de controle aduaneiro dos EUA, observa-se que seguem as diretrizes internacionais, especialmente, o Anexo Específico K, da Convenção de Quioto Revisada (CQR) e estão em sintonia com o conceito de transformação substancial da Lei nº 12.546/2011, em seu artigo 31, §§ 2º e 3º. Sobre a transformação substancial e o conceito utilizado nos EUA, a conclusão que se chega é que as diretrizes legais servem como base para orientar a análise de origem, mas não permitem a definição de critérios objetivos para a verificação da sua ocorrência, ou não, que deverá ser avaliada caso a caso, com base no processo produtivo de cada item, identificando-se as características e funções dos componentes individualmente e comparando-as com as do produto final obtido.
Autodeclaração de origem
A declaração da origem, em grande parte dos países, é obtida pelos exportadores junto a entidades autorizadas pelo governo (Câmaras de Comércio, Associações), sendo esse o modelo tradicional e aceito pelas Aduanas de destino da maioria dos países. Até o ano de 2024, o Brasil adotava apenas esse modelo de certificação de origem. No entanto, com a mudança das Regras de Origem no Mercosul, a partir da Decisão CMC no 5/2023, incorporada ao Mercosul pelo 218º Protocolo Adicional ao ACE 18, os países membros aram a permitir um modelo híbrido de certificação, à medida que os operadores poderão optar, atendidas as demais condições necessárias, entre a autodeclaração e a certificação de origem. A autodeclaração de origem simplifica o processo, permitindo que empresas preencham faturas comerciais como prova de origem. O modelo híbrido atende tanto a grandes empresas, quanto a pequenas e médias, oferecendo flexibilidade na escolha do método de certificação. O novo regime exige que documentos de apoio sejam mantidos por cinco anos para garantir a transparência e comprovar a declaração [12].
A Portaria Secex nº 373, de 18/12/2024, regulamentou o procedimento de autocertificação de origem. O objetivo da autocertificação é oferecer maior agilidade e redução de custos, aumentando a competitividade das empresas brasileiras. A inovação está em sintonia com os princípios e diretrizes previstos no artigo 4º do PL no 4.423/2024, em trâmite no Senado, que visam assegurar controle aduaneiro e facilitação comercial, agilidade, previsibilidade e redução de custos nas operações.
Na autodeclaração de origem, o produtor ou exportador é quem atesta a origem da mercadoria. Ela substituirá o Certificado de Origem Preferencial emitido por entidades, tornando possível a autocertificação como prova de origem no Brasil para todos os acordos que autorizem essa prática. Ela será emitida na fatura comercial, ou em documento previsto no acordo, contendo informações mínimas, como dados do exportador, produtor, descrição do produto e . Os registros devem ser mantidos por cinco anos para quaisquer averiguações e fiscalizações posteriores. O princípio reitor é o da boa-fé, prevendo a norma brasileira sanções de inabilitação para emitir a declaração para os que cometerem erros ou agirem com dolo. É fundamental que o exportador tenha conhecimento das regras de origem adotadas no país de destino, para declarar com segurança a origem dos produtos exportados. Ademais, como é previsto para o OEA, v.g, é importante manter procedimentos de trabalho que assegurem que os responsáveis pelas declarações sigam padrões e que as mesmas sejam auditadas, periodicamente, para evitar ivos ocultos. A autocertificação entrou em vigor em 1/3/2025, sendo válida, inicialmente, no âmbito do Mercosul.
Conclusões
Em outros tempos, o “made in” determinado país era real e significativo. Com a globalização e as cadeias globais de valor, circulando pelo globo seus insumos para fabricação em determinados países, estrategicamente, definidos pelas corporações, as regras de origem é tema cada vez mais relevante, seja no que tange a se reconhecer a transformação substancial exigida pelas diretrizes internacionais e adotadas por vários países para a definição da origem, seja no que tange aos modelos de certificação que tendem a confiar essa responsabilidade ao exportador, em valorização à boa-fé, à conformidade, assim como à facilitação comercial, incluindo-se a redução de custos, simplificação e agilidade de procedimentos. No caso do Vaticano, foi mais fácil porque a origem não implicou em restrições, ou limitações, para votação, ou eleição. Lá os desafios são outros, de outro nível, de planos superiores e de fé.
[1] Um conclave é uma reunião do Colégio de Cardeais convocada para eleger o bispo de Roma, também conhecido como papa. Por decreto do papa Gregório X, durante o Segundo Concílio de Lyon, em 1274, determinou-se que os cardeais eleitores deveriam ser trancados em seclusão cum clave (latim para “com chave”).
[2] A escolha do nome papal foi uma homenagem ao papa Leão XIII e sua defesa da justiça social durante a Revolução Industrial. Disponível em: link. o em 10/05/2025.
[3] Disponível em: link. o em 09/05/2025.
[4] Disponível em: link. o em 10/05/2025.
[5] PEREIRA, Tânia Carvalhais. Direito Aduaneiro Europeu. Vertente tributária. Lisboa, Universidade Católica Editora, Kindle, 2020, p.142.
[6] RIJO, J. A dimensão fiscal do direito da União Europeia – Notas de enquadramento normativo, doutrinário e jurisprudencial. 1. ed. Lisboa: Almedina, 2020. p. 445.
[7] Tema amplamente abordado na coluna nos artigos de: “Tarifaço, Trump e reciprocidade: perspectivas no Brasil”, de Liziane Meira (Disponível em: link); “As tarifas estão de volta!”, de Rosaldo Trevisan (Disponível em: link). “O peso invisível do protecionismo”, de Fernanda Kotzias (Disponível em: link); Reciprocal Tariff, ato de aumento de tarifas: disponível em link, o em 09/05/2025.
[8] PEREIRA, Tânia Carvalhais. Direito Aduaneiro Europeu…p 171. Ver artigo 60º, §1º, do Código Aduaneiro da União – CAU e artigo 31 do AD-CAU.
[9] “Country of origin” means the country of manufacture, production, or growth of any article of foreign origin entering the United States. Further work or material added to an article in another country must effect a substantial transformation in order to render such other country the “country of origin” within the meaning of this part; however, for a good of a NAFTA or USMCA country, the marking rules set forth in part 102 of this chapter (hereinafter referred to as the part 102 Rules) will determine the country of origin,”
[10] PEREIRA, Tânia Carvalhais. Direito Aduaneiro Europeu… p. 172.
[11] Em 2023, na XVI Reunião Mundial de Direito Aduaneiro, José Rijo fez relevante apresentação sobre esse tema intitulada “As intepretações das Cortes Nacionais sobre o critério da transformação substancial” (disponível em: link) Convidamos o leitor a conhecer a programação da XVII Reunião Mundial de Direito Aduaneiro, cuja sede será a cidade do Porto, em Portugal, de 03 a 05/09/2025: https://www.iclaweb.org/porto-portugal2025 .
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