Entre meações e modernidades: o futuro da herança conjugal no novo Código Civil
13 de maio de 2025, 6h04
O debate em torno da exclusão do cônjuge da condição de herdeiro necessário, presente no artigo 1.845 do Código Civil de 2002, ganha contornos ainda mais delicados com o PL 4/2025, que transfere ao testador a faculdade de dispor livremente sobre sua totalidade patrimonial, mantendo apenas a reserva de legítima para descendentes e ascendentes. Essa mudança reflete um forte impulso liberalizante, em consonância com correntes do Direito Civil contemporâneo que priorizam a autonomia da vontade e o planejamento patrimonial personalizado.

O atual artigo 1.845 do CC/2002 reconhece cônjuge, descendentes e ascendentes como herdeiros necessários, garantindo-lhes 50% do patrimônio do de cujus. O PL 4/2025 retira o cônjuge dessa categoria e extingue a concorrência sucessória, inserindo-o na linha sucessória apenas na ausência de descendentes ou ascendentes, sem prejuízo da meação em regimes de comunhão de bens.
Entretanto, ao privar o cônjuge de sua posição tradicional, corre-se o risco de marginalizar aquele que, muitas vezes, dedicou esforços ao lar e à istração doméstica, sem o devido reconhecimento econômico.
Para mitigar a possível dependência econômica, o projeto prevê usufruto de bens ou direito real de habitação ao cônjuge que demonstre insuficiência de recursos, com cessação ao constituir nova família ou obter patrimônio próprio.
Necessário equilíbrio entre autonomia privada e dignidade da pessoa humana
A alternativa prevista pelo projeto — usufruto de bens ou direito real de habitação para o cônjuge em situação de vulnerabilidade — carece de critérios objetivos e pode ser insuficiente diante da complexidade de famílias modernas, especialmente considerando patrimônio digital e investimentos conjuntos de longa data.

Ademais, sem parâmetros claros como renda familiar mínima, tempo de união ou contribuição econômica comprovada, cabe ao Judiciário decidir sob pena de aumentar a litigiosidade e gerar insegurança jurídica, ferindo o princípio da previsibilidade nas relações privadas. Em outros ordenamentos, como o espanhol e o italiano, observa-se a adoção de meação automática proporcional ao regime de bens e requisitos de dependência econômica reconhecidos por lei, medidas que combinam autonomia privada com proteção mínima garantida (Galindo, 2023).
Reitera-se que a Constituição de 1988 protege a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), a igualdade (artigo 5º) e a família (artigo 226) e que a reforma, apesar de valorizar a autonomia privada, pode fragilizar a tutela constitucional do cônjuge vulnerável, conflitando com o princípio da função social da família e da proteção especial conferida pelo artigo 226.
Nesse sentido, uma proposta integradora poderia contemplar um procedimento de conciliação prévia obrigatória, mediado por tabeliães de notas, em que o cônjuge vulnerável tivesse oportunidade de negociar uma previdência complementar ou fundo de pensão privada, evitando o recurso imediato ao Judiciário.
Ademais, quiçá, far-se-ia necessária a inclusão de um artigo complementar que estabeleça indicadores objetivos de vulnerabilidade — tais quais percentual de contribuição para o esforço econômico familiar e patrimônio individual inferior a 30% dos bens comuns — conferindo segurança ao testador e proteção ao sobrevivente.
Portanto, embora necessária a modernização frente às novas realidades familiares e patrimoniais, a proteção ao cônjuge dependente deveria contar com critérios objetivos de vulnerabilidade e mecanismos extrajudiciais de conciliação, equilibrando autonomia privada e dignidade da pessoa humana.
Referências
BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-47, 11 jan. 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. o em: 06 maio 2025.
BRASIL. Projeto de Lei n. 4, de 31 de janeiro de 2025. Senado Federal. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/154910>. o em: 06 maio 2025.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. o em: 05 maio 2025.
GALINDO, María. Sucesiones y derechos de cónyuge en la reforma civil. Revista Iberoamericana de Direito, v. 12, n. 3, 2023.
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