Era uma vez uma Lei de Responsabilidade Fiscal: qualidade do gasto e justiça distributiva
13 de maio de 2025, 8h00
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), instituída pela Lei Complementar nº 101/2000, representa um marco no controle e na transparência das finanças públicas no Brasil. Seu principal objetivo é impor limites e regras para que haja uma gestão fiscal responsável, garantindo que os entes federativos — União, estados, DF e municípios — atuem com equilíbrio entre receitas e despesas.
O § 1º do artigo 1º da LRF versa sobre a responsabilidade na gestão fiscal, a qual “pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições (…)”. Nesse contexto, o planejamento orçamentário se tornou o verdadeiro aliado da LRF, afinal, é por meio dele que se definem as prioridades de governo e se alinham os gastos públicos aos princípios da responsabilidade fiscal. Essa junção busca, na verdade, promover maior previsibilidade, controle e eficiência na alocação dos recursos públicos, contribuindo para a sustentabilidade das contas públicas e para a melhoria na prestação de serviços à população.
Exatamente por isso é que o Capítulo II da LRF, denominado “Do planejamento”, trata da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), da Lei Orçamentária Anual (LOA), da execução orçamentária e do cumprimento de metas. Esses dispositivos, além de determinarem a avaliação do cumprimento das metas relativas ao ano anterior, evidenciam a necessidade de demonstração da metodologia de cálculo que justifique os resultados pretendidos, os quais devem estar alinhados com as suas premissas e os objetivos da política econômica nacional. Isso significa dizer que esses dispositivos legais obrigam os gestores a comprovarem que a definição das metas levou em consideração, da forma mais próxima possível, a realidade em que foi inserida.
Em suas análises mais recentes publicadas na revista eletrônica Consultor Jurídico, Elida Graziane posiciona o “Orçamento Secreto”, operacionalizado através das emendas de relator, então conhecidas como RP 9, um tipo de mecanismo flagrantemente incompatível com os pilares constitucionais da istração pública brasileira. A autora enfatiza a sistemática violação dos princípios da transparência, impessoalidade, planejamento e ability, argumentando que a ausência de critérios claros e públicos para a distribuição desses recursos transformou parte significativa do orçamento federal numa “caixa-preta”. Essa opacidade, segundo Graziane, não apenas dificultou o controle social e institucional sobre vastas somas de dinheiro público, mas também fomentou práticas clientelistas (“toma lá, dá cá”) e comprometeu a racionalidade do planejamento orçamentário. A análise situa essa problemática no contexto desafiador da transição governamental de 2022, apontando que a herança fiscal deixada, agravada pela magnitude e falta de transparência das RP 9, impôs obstáculos adicionais à gestão das contas públicas pelo novo governo.
Em tempos de uso de inteligência artificial, há ainda pessoas que leem e não compreendem numa sociedade a cada dia mais dependente de toda sorte de aplicativos e vivências no mundo digital. Segundo dados recentes do Indicador de alfabetismo funcional (Inaf) , não obstante, uma melhoria nos níveis mais baixos de alfabetização, o índice de proficientes se mantem inalterado e os ganhos se acumulam nos níveis Elementar e Intermediário, consideradas meras etapas de transição. Um exemplo é a cifra de 67% dos alfabetizados em nível elementar tiveram médio desempenho no contexto digital.
Em Relatório de Auditoria TC 014.924/2023-4 [1], O TCU avaliou a evasão escolar na Rede Federal de Educação Profissional. O cenário mostra as desigualdades regionais e o papel da omissão que elide discursos políticos sobre a centralidade da educação na pauta orçamentária onde não há condições para permanência de jovens na escola. O quadro somado à ausência de dados que expliquem as causas do abandono da escola e considerem recortes de renda e cor, segurança alimentar e culmina com a ineficácia dos planos estratégicos e do próprio Pnaes. Já na esfera da Saúde e as relações entre município e empresas ligadas ao ramo alimentício, o acórdão TC-026.060/2017-5 teve como objeto avaliar os serviços emergenciais de saúde [2] no município de São Luís, Maranhão cujos rees do SUS está na casa do bilhões de reais.
A dinâmica de leitos hospitalares não pode ser dissociada das práticas de financiamento e alocação orçamentária no setor de saúde. Um fator relevante no contexto brasileiro é o volume expressivo de recursos direcionados à saúde por meio de emendas parlamentares. Em 2024, por exemplo, cerca de 60% do total de emendas pagas foram destinadas a ações e serviços públicos de saúde (ASPS), totalizando R$ 22,9 bilhões. A perda de leitos SUS em áreas críticas como saúde mental, pediatria e obstetrícia é particularmente preocupante, pois pode resultar em piores desfechos de saúde para grupos populacionais vulneráveis e aumentar a pressão sobre os serviços existentes, incluindo a judicialização da saúde.

O orçamento público ultraa a sua dimensão meramente contabilística ou técnica, configurando-se como um instrumento jurídico e político fundamental, intrinsecamente ligado à concretização da justiça distributiva numa sociedade. Ele representa o plano de governo, na linha de Aliomar Baleeiro, traduzindo, assim, as escolhas políticas e prioridades governamentais em alocações concretas de recursos. Nesse sentido, o orçamento reflete as dinâmicas de poder existentes o que impacta a distribuição de bens, serviços e oportunidades. A sua elaboração e execução deveria, portanto, orientar-se por imperativos de justiça fiscal, abrangendo tanto a equidade na arrecadação tributária quanto na aplicação dos gastos em consonância com os objetivos constitucionais de redução das desigualdades sociais e regionais, de garantia dos direitos fundamentais (Ávila, 2009).
Centralidade do orçamento
A construção de um planejamento orçamentário alinhado com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, notadamente a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais, conforme o artigo 3º, inciso III, da Constituição de 1988 exige outro tipo de ação governamental. Essa visão constitucional impõe a diminuição das desigualdades como norma obrigatória, alicerce da ordem jurídica. Nesse contexto, para Fernando Facury Scaff emerge a centralidade do orçamento republicano, instrumento que identifica a origem dos recursos, a destinação dos gastos e a instância decisória governamental sobre essas matérias.
Scaff argumenta, ainda que um sistema orçamentário é teoricamente mais perverso quanto mais onera aqueles com menos recursos e mais virtuoso ao tributar os mais ricos em benefício dos menos favorecidos. Sob a ótica da arrecadação, Scaff propõe que um modelo é oligárquico se o peso tributário recai predominantemente sobre os menos abastados, enquanto um modelo republicano concentra o ônus nos mais ricos, conforme explicitado em sua obra Orçamento Republicano e Liberdade Igual: Ensaio sobre Direito Financeiro, República e Direitos Fundamentais no Brasil (2018).
Porém, a captura do processo orçamentário por interesses particulares (Grau, 2008), a persistência de estruturas tributárias regressivas, a falta de transparência, comprometem a função redistributiva do orçamento. A superação desses entraves aria também pela ampliação da participação social no ciclo orçamentário (Alves; Piscitelli, 2017) pelo incremento da transparência e da ability, e, em certas circunstâncias, pelo escrutínio judicial que assegure a observância dos mandamentos constitucionais de justiça.
Com relação à LOA, o artigo 5º da LRF determina que esse projeto de lei deve ser elaborado de forma compatível com o plano plurianual, com a lei de diretrizes orçamentárias e com as normas desta respectiva Lei Complementar. Vale a pena destacar que o §4º do art. 5º veda a consignação de crédito com finalidade imprecisa ou com dotação ilimitada na lei orçamentária. Esse dispositivo visa assegurar a clareza e a especificidade na alocação dos recursos públicos, permitindo um controle mais efetivo sobre as despesas governamentais e prevenindo o uso indevido de verbas públicas. Ao exigir que cada crédito orçamentário tenha uma destinação clara e limites definidos, a LRF fortalece a transparência e a responsabilidade na gestão fiscal.
Ainda com relação ao planejamento orçamentário, os artigos 48 e 48-A da LRF tratam dos denominados instrumentos de transparência da gestão fiscal. Destaca-se, dentre esses instrumentos, aqueles que visam à participação popular durante os processos de elaboração e discussão dos planos e das leis orçamentárias e a liberação das informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira.
A LRF representa, portanto, um importante instrumento de planejamento e controle das finanças públicas. Esse controle da ação governamental pode significar a materialização dos princípios istrativos da legalidade, impessoalidade, moralidade, eficiência, dentre outros, pois define critérios que devem ser observados na alocação de recursos. Limita, assim, a discricionariedade nessas tão importantes tomadas de decisão.
Significa dizer que os ciclos que definem as escolhas alocativas não podem ser autossuficientes. É preciso que haja uma efetiva integração entre as etapas do planejamento e do orçamento, de modo que os objetivos e as metas traçadas a curto prazo coadunem, de fato, com aquelas traçadas a longo prazo. Além disso, os resultados das medidas de controle, monitoramento e avaliação devem ser utilizados para retroalimentar o ciclo decisório.
Já se aram 25 anos e o atendimento a tais dispositivos legais tem sido, muitas vezes, simulado pelos gestores. Audiências públicas que sequer foram publicizadas; liberação de dados orçamentários no formato bruto, para que haja apenas sua disponibilização à sociedade, sem qualquer preocupação que ela entenda os que eles significam; definição de metas pro forma, sem qualquer procedimento ou identificação da realidade. E, como se não bastasse, atualmente ainda estamos vivenciando uma verdadeira guerra por quotas orçamentárias travadas entre o Executivo e o Legislativo
De um modo geral, observa-se que esses poderes estão alocando recursos de forma arbitrária, sem apresentar, sequer, a finalidade a ser cumprida pelo poder público. A preocupação com a definição de critérios técnicos ou racionais tem sido cada vez mais negligenciada. A integração entre planejamento e orçamento é um mecanismo essencial para a efetividade das políticas públicas – sendo, essas, entendidas como um programa de ação governamental resultante de um ciclo decisório juridicamente regulado e estritamente vinculado ao ciclo orçamentário. Esse ciclo deve determinar quais atividades do Estado são necessárias para o cumprimento das prioridades estabelecidas pela sociedade – as quais devem almejar a realização de objetivos universalizáveis e permitir a avaliação das suas ações, a qual servirá para realinhar as metas pré-definidas
As decisões governamentais precisam ser tomadas com base em informações concretas e avaliações contínuas. Esse alinhamento fortalece a transparência e a racionalidade na alocação de recursos, assegurando que o orçamento reflita as reais necessidades da sociedade e contribua, efetivamente, para o desenvolvimento sustentável do país.
Se a educação e a saúde tem o endereço dos municípios brasileiros, por vezes emparedados entre os Estados e União na disputa por recursos, seu privilegiado o à realidade social, econômica, cultural deveria se conformar à avaliação das políticas públicas, do efetivo resultado das legislações em conformidade com a Emenda Constitucional e claro, aos princípios e regras da Lei de Responsabilidade Fiscal, em vigor, faz 25 anos.
As novas legislaturas municipais têm uma grande oportunidade ao concretizarem, de fato, o “interesse local” através de ações governamentais que utilizem dados e evidências. Afinal, boa educação e o à saúde deveria dar lugar, por exemplo, às pautas de bem estar, muito além dessa desigualdade abissal pavimentado pela má qualidade do gasto público.
[1] 20. Devido à insuficiência de recursos para a assistência estudantil e alimentação escolar, à falta de pessoal para compor as equipes multiprofissionais, às deficiências na infraestrutura das instituições de ensino e à lacuna de previsão de transporte escolar para estudantes residentes em áreas rurais nos programas existentes (Programa Caminho da Escola e Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar), ocorreu a expansão e a interiorização da Rede Federal EPCT sem as condições necessárias para viabilizar a permanência e o êxito dos estudantes, o que dificultou a aplicação da estratégia de intervenção pelas instituições de ensino, impactando no aumento da evasão.
[2] “As irregularidades constatadas se referiam especialmente à existência de quantidade elevada de pacientes internados em macas, colchões e até em cadeiras nos corredores do Hospital Municipal Djalma Marques (Socorrão I) e do Hospital de Urgência e Emergência Dr. Clementino Moura (Socorrão II), ambos sob a gestão da Prefeitura Municipal de São Luís/MA (v. item 43 da peça 128, p. 8).Outros problemas verificados naquela fiscalização, com impacto sobre a qualidade do atendimento prestado, referiam-se a deficiências no abastecimento de medicamentos e outros insumos no Socorrão II e a ausência de adequada regulação dos serviços hospitalares (v. itens 102 e 129 da peça 128, p. 17 e 21).
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